domingo, 25 de dezembro de 2011

Depois que tudo termina

Há algo de único na vida.
Um caminho traçado,
um risco iminente,
o que se faz consciente,
com o que restou do passado,
e o que se quer do presente.


Há algo de lindo na vida.
Uma inquietude perene
feito a saudade que fica
de alguém que se vai para sempre,
ou de brindar aos que chegam,
porque tantos outros ainda estão por vir.


Há os que não querem partir,
há os que se sabem distantes,
os que se fazem ausentes
e desaparecem aos poucos.
Misturam-se na poeira do dia
indiferentemente.


Procuro.
Encontro.
Divido.
Multiplico.
Explico.
Explodo.

É tudo muito rápido na vida.
É como piscar os olhos
Ou estalar os dedos
E quando se vê, tudo escapa.
termina,
acaba,
finda.

Assim é a vida.

Não morro de medo da morte.
Mas quem sabe eu tenha sorte
e me faça imortal, posto que já fui imoral,
rei, réu, vítima, culpado,
testemunha da minha única história,
condenado de um só tribunal?

Há algo de mágico na vida.
Um movimento incessante,
uma amplitude interessante,
que nos inspira e nos renova
e nos recicla e nos refaz e reanima.
O recomeço depois que tudo termina.

Num instante.
Em poucos segundos,
questão de minutos,
horas,
meses,
anos.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Feliz Natal pra você e pra mim

Esta semana li no perfil de um pseudoamigo meu numas destas redes sociais a brilhante frase: "Natal é o momento em que todos são falsos consigo mesmos". Aquele surto de pseudointeligência me chamou a atenção. Confesso que volta e meia publico umas frases meio absurdas, na tentativa de também ser pseudointeligente, mas aquela, em especial, eu li, reli, li mais umas tantas vezes e não entendi muito bem o que ele quis dizer. Ou talvez tenha entendido tudo, sabe-se lá. A verdade é que eu, particularmente, gosto de Natal. Talvez porque ainda tenha filhos pequenos, e agora um neto, e enxergue neles muito do meu passado e das noites de Natal felizes que eu vivi na casa da minha avó Altair na minha mais remota infância, não sei. Só sei que gosto e pronto. Mas reconheço e respeito aqueles que não veem graça nesta data, talvez por considerá-la comercial demais, onde deixa-se de lado o verdadeiro significado do que é a noite de Natal e passa a valer apenas a figura caótica do bom velhinho derretendo dentro da fantasia e toda aquela correria pelos presentes e os shoppings lotados, as filas quilométricas dos supermercados, os preços absurdos e toda aquela gente se esbarrando nas ruas enquanto a juventude se bronzeia na praia lambuzada ao sol de 40 graus e as cariocas cada vez mais gostosas e quase nuas feito as índias de outrora e os marombeiros, os 'legalize', a playboyzada e a rapaziada reunida em cada esquina, sem camisa, um calor danado, o churrasco de final de ano, a cerveja no boteco, a caixinha dos porteiros, o bolão da mega-sena da virada, a saudade apertada daquele que você não encontra mais, a receita do pernil, um bom vinho, o bacalhau, as rabanadas, noite feliz.



Não.



Talvez seja melhor mesmo remoer aquela mágoa que existe entre os entes queridos da sua família e relembrar o incômodo daquele parente distante que só aparece nestas épocas e sempre com o mesmo assunto irritante. Pode ser o tal primo problemático, filho daquela sua tia histérica, viúva rica deslumbrada e que acabou de se mudar para uma mansão lá pelos lados da Barra e que o tempo todo não para de repetir que morre de medo de passar pela Linha Amarela depois das nove da noite e que sabe histórias terríveis de sequestros-relâmpagos com mulheres que dirigem sozinhas, ainda mais com o carro que ela tem agora, um importado coreano, tração nas quatro rodas, câmbio automático, computador de bordo, dvd e entrada usb, seu presente de Natal. Tem também toda aquela obrigação de estar sorrindo e desejando os melhores votos quando na verdade você acha aquilo tudo um saco e quer mais é que tudo se acabe pra você poder ficar sozinho, quieto no seu canto, sem falar nada e sem querer saber de mais ninguém.



Tudo bem.




Eu vou trabalhar neste Natal. Ano passado também trabalhei. Por incrível que pareça, não vou contrariado. Não é novidade para quase ninguém que eu detesto plantão, mas vida de jornalista é assim e eu já meio que me acostumei com toda esta urgência das notícias do dia a dia e de toda a agitação e tensão que é o trabalho numa redação de um grande jornal. O mundo realmente não para e as coisas acontecem a cada instante numa velocidade cada vez mais estonteante, on-line, on time, full time. Não é só porque é noite de Natal que vai ser diferente depois de um ano inteiro entre quedas de ministros, escândalos do governo Dilma, manifestações anticorrupção, faxinas, herança maldita, privatarias, o câncer do Lula, o do meu sogro, a morte da minha tia e também a do Sérgio Britto e do Joãosinho Trinta e da Cesária Évora todos no mesmo dia. Não. Pelo simples fato de ser noite de Natal estarei contente. E não estarei contente por obrigação, não carregarei o meu sorriso largo como um peso, um fardo, uma farsa, porque mesmo que alguma coisa me aborreça, que alguma eventualidade aconteça, vou sair do jornal a tempo de encontrar com algumas das pessoas que eu mais amo porque graças a Deus eu tenho amor para dar e vender e distribuir e semear assim mesmo sem pausa porque seja lá o que for é o que faz a minha vida ter mais sentido mesmo que tudo ao meu redor muitas vezes me diga não.




É o amor que me faz ser verdadeiro e é o amor que eu celebro nas noites de Natal. Não sou um seguidor fiel, puro e casto de religião alguma mas tenho sim minhas crenças e minhas falhas e meus pecados, confesso. Não sou perfeito mas minha fé é inabalável. Tudo vai dar certo no final desde que haja amor, eu penso, e lembro que há dois mil e onze anos nascia um cara que conseguiu decodificar um pouco este sentimento que chamamos amor e até hoje aquilo que ele pregava, as palavras que ele dizia, aquela parte da verdade que ele trazia estão vivos embora algumas vezes o homem pareça não se dar conta e prefira se esconder na falsidade de sentimentos que nada têm de nobres e esquecem e magoam e ferem e matam o amor.



Nas noites de Natal eu não sou falso comigo mesmo, como dizia a tal frase do meu pseudoamigo. Nunca fui. Nas noites de Natal, como nas outras noites do ano, eu sou verdadeiro. Porque eu só quero amor.



Pra você e pra mim.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Diagnóstico

Tudo o que há em mim sangra.
Escorre.
Vaza.
Molha.

Dói o corte abrupto que eu mesmo abri em minha pele.
E me expus carne.
E nervos.
E ossos.

E só.

Eu me esvazio.
Eu me mostro.
Eu falo.
Eu rio.

Eu ainda choro o que não cicatriza da ferida aberta.
É o tipo do mal que não há remédio.
Doença sem cura.
Loucura.

Na certa.

sábado, 10 de dezembro de 2011

Porque tudo se acaba

Se eu pudesse escrever sobre mim agora, no que penso e vivo exatamente neste momento, ou se eu tivesse o poder de me expressar como fazem os literatos, eu tudo contaria. Mas desconfio que não teria tamanha capacidade nem talento para fazer com que o que eu pense ou diga ou faça seja entendido por quem porventura lesse tal texto. Talvez eu viesse a ser mal interpretado e ficasse suscetível a análises e julgamentos rasos daqueles que acreditam que existe uma fórmula para viver e que a vida nada mais é que uma equação racional. Pode ser até que eles estejam certos, já que creem ser assim, mas eu não creio. Não que eu suponha que a vida para eles seja simples ou rasteira porque sei que não é. Ela pode até ser uma equação, porém irracional e no sentido literal da palavra, ou seja, desprovida de razão. Portanto, nem eu nem eles nem ninguém têm razão. E só o simples fato de eu perceber tamanha irracionalidade na vida me deixa cada vez mais preso à ideia de que não tenho amarras. Eu, longe de qualquer razão, sou livre.



Andei relendo Nietzsche e toda aquela soberba, toda aquela autoconfiança, todo aquele discurso existencialista fizeram com que eu me descobrisse ainda mais inteligente do que eu acreditava ser. Assim como o filófoso alemão, eu sei que sou um ser superior, que tenho dentro de mim todo um potencial infinito de transformação, de criação e de sabedoria. E quando digo que sou um ser superior, não é por falta de humildade ou qualquer coisa que o valha. É por uma simples constatação mesmo. E isso não me torna uma pessoa diferente de ninguém, não faz com que eu mude meus hábitos ou me considere num patamar acima de quem quer que seja. Não é isso. Mas é justamente por ter esta consciência que me diferencio. E me diferencio de mim mesmo, como se eu soubesse onde termina e onde começa aquele que é o outro em mim. Porque na verdade, a diferença maior é com aquele outro eu que eu era há poucos segundos e que eu sequer cheguei a conhecer muito bem. Nem ninguém.



Não sei quantos eu já fui e muito me assusta saber quanto tempo eu perdi tentando ser outros tantos que eu jamais seria. Assim como me assusta saber que mesmo sendo irracional e por este motivo, livre, a vida me impõe alguns limites. Logo eu, que tanto prezo o infinito das coisas, me vejo limitado a um só corpo, preso entre braços e pernas e movimentos lentos e por vezes até coreografados, ensaiados, meio que repetidos à exaustão. Porque mesmo que eu abra bem meus olhos e exercite todo o poder da minha visão, jamais enxergaria nitidamente o que a vida poderia me mostrar em sua plenitude. Daí que me sinto cego, impotente, fraco, humano demais. Mas se fecho meus olhos, aí sim, me enxergo de verdade. É quando vejo o que há de mais bonito e então encontro um amor sem limites, uma vontade sem tamanho, uma alegria imensa que supera a dor de me saber único e solto num ciclo ininterrupto mesmo que lá fora tudo se acabe.




Há um ser infinito dentro de mim.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Preferências

Gosto do sorriso largo daqueles que mostram o siso sem receio,
Dos que gargalham e se encontram imperfeitos por inteiro,
sem medo.
Distancio-me do que fere e reflete a alma cheia de espinhos
que afasta, repulsa, expulsa de mim a alegria
rouba-me dia a dia.
Inquieto, fico em silêncio durante a noite que revela minhas sombras
Até deixar-me sem pudor entre tantas dores
de amores.
Danço conforme a música que eu ouço do samba das meninas
E da falta que me consome o compasso em que tropeço
um gesto em falso.
Um corte que não cicatriza na ferida exposta que ainda sangra,
No talho profundo do que sinto de saudade do que falta
do vazio.
Do oco.
Do eco.
Do louco que reverbera em mim
E grita palavras de ordem desordenadas em frases sem destino,
Buscando o verbo solto entre conjugações perdidas.
Qual a forma mais bonita.
Sonoridade.
Plasticidade.
Estética perfeita
Do amor desfeito entre lençóis e o suor da carne que arde
Por quem queima a brasa dos que se iludem
e jamais esquecem.
E erram.
E não se escondem.
E se entregam com fé
Porque sabem que é preciso vestir a fantasia da vida
e sair por aí.
Despidos de si.

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

cego surdo mudo

é como se a imagem fosse desfocando aos poucos
desaparecendo contra a minha vontade
sumindo do meu campo de visão
para sempre.

feito a água que evapora com o calor
ou o barco que se deixa levar no horizonte
sobre as ondas que ainda escorrem em minhas mãos
e o sal que eu limpo em minha pele

Lentamente.

se eu pudesse doutrinar o vento
confiaria a ele a minha voz
um novo canto ele sopraria
estancaria então meu pranto

se eu fizesse do vermelho o branco
pintaria as nuvens de aquarela escarlate
desenharia o leite derramado
entre seios e braços numa tela qualquer

Displicentemente.

faço então só o rascunho
o traço rabiscado na parede
quadro negro onde um dia o giz apaga
a imensidão do mar onde o meu amor se afoga

meus olhos náufragos já não o veem.
há muito que não lhe ouço.
carregou com ele as tintas, os versos e algumas tantas palavras.
foi então que fiquei mudo.

Conscientemente.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Ainda dá tempo?

Não é de hoje que ele trava uma enorme batalha contra o tempo. Já há alguns anos ele se dera conta de que vivia num mundo acelerado, corrido, tenso. Um mundo onde os segundos são preciosos e num piscar de olhos passam-se os dias, os minutos, os meses, a vida, enfim. Toda esta efemeridade o fazia pensar na distância que percorrera até aquele momento, na sua trajetória, naquilo que construiu, naquilo que viveu, nas pessoas que amou, nas que não tiveram coragem de amá-lo e nas outras tantas que deixou para trás. Ele procurava não se arrepender do que fizera de errado no passado. Poucas coisas ele considerava erradas, aliás, mas tinha uma enorme vontade de acertar dali para frente. Um misto de ansiedade e medo o acompanhava desde sempre e talvez fosse isso o que dificultava ainda mais as suas escolhas, ele pensava. Já havia tentado a ioga, a meditação transcendental, seitas esotéricas, centros de umbanda, candomblé, magia negra, igrejas evangélicas, chás alucinógenos e drogas, muitas drogas. Nenhuma pior que o cigarro, de certo. Mas o fato é que ele já experimentara de tudo. E continuava sem entender nada.


Eu também entendia muito pouco do que ele dizia.


Há coisa de duas semanas ele chegou na repartição calado. Seus olhos estavam inchados como se tivesse chorado ou então vitimado por uma alergia braba. Conjuntivite? Perguntei e ele não respondeu. Fez que não ouviu. Sequer esboçou reação. Passou a tarde inteira mergulhado nos processos, assinando petições, lendo cláusulas de contratos entre um gole de café e respiração ofegante, como se estivesse exausto. Desceu umas duas vezes para fumar, meio contrariado, é verdade, já que não conseguia se livrar daquele vício. Nem dos outros que só ele sabia quais eram. Não saiu para almoçar, não pediu o lanche, como de hábito, e nem ao menos levantou para beber um gole d'água. Os colegas estranharam aquele comportamento, mas como aquela repartição não era lugar para se fazer amigos, ninguém teceu longos comentários. Apenas um olhar ou outro meio que perguntando na surdina o que poderia estar acontecendo. Mais nada.

Eu também preferi ficar calado e agilizar o meu trabalho.


As horas pareceram se arrastar naquela tarde e a impressão que eu tive era a de que os ponteiros do relógio que repousava em cima da minha mesa estavam congelados. Só aos poucos a repartição foi ficando vazia e um até amanhã aqui e uma boa noite ali denunciaram o passar do tempo. Quando me dei conta eram mais de 20h e só restávamos eu, ele e a secretária, dona Cleonice, uma mulata de corte sensual, que retocava a maquilagem ali na nossa frente, o mesmo gestual que repetia há quase 15 anos para deixar bem claro que chegara a sua hora. Eu também já não tinha muito mais o que fazer por ali, apenas precisava enviar alguns e-mails para meu assistente e conferir os itens que deveriam ser entregues na manhã seguinte quando passasse o rapaz do primeiro malote. Dona Cleonice deu umas borrifadas de perfume barato no pescoço e se despediu. Eu comecei a recolher a papelada em cima da mesa, a fechar minhas gavetas e percebi que ele também já se preparava para sair. Foi quando ele perguntou numa voz soturna
se eu poderia lhe ouvir um minuto.


Não pensei duas vezes e disse que sim, claro, eu poderia ouvi-lo o tempo que fosse, respondi.


Um breve silêncio se fez entre nós até que um rosário de lamentos e frustrações foi sendo desfiado pouco a pouco bem ali na minha frente. Aquele homem se revelava frágil, sozinho, tenso, preocupado, querendo se livrar das amarras, tentando a todo custo ser um espírito livre, humano, ele dizia. Tão demasiadamente humano que ecoou dentro de mim feito a filosofia das realidades eternas e verdades absolutas que um dia li e muito pouco entendi num livro do Nietzsche. Ele discorreu sobre metafísica e tudo o mais que supunha incompreensível, sobre a existência ou a farsa de Deus, sobre as limitações da vida, sobre a certeza da morte e se havia mesmo o tal do destino. Eu estava mudo, porém atento a todas aquelas palavras proferidas com tamanha sinceridade ali, no meio da noite, naquela repartição vazia, por um homem que lutava para se libertar e enfim se descobrir.


Eu prestei muita atenção no que ele disse, confesso.


Ele falava de uma maneira bonita, apesar de toda a melancolia. Ele parecia ter todas as respostas que eu mesmo buscava para mim. Eu, sempre tão inconformado com a minha origem humana, que nunca entendi ao certo o por quê de tantas atrocidades e tanta ignorância cometidas pela minha raça, me peguei ouvindo aquilo tudo como se fosse eu mesmo falando em frente a um espelho. Como se aquela voz que dele saísse fosse a minha voz interior reverberando, martelando, despertando ideias adormecidas lá no fundo da minha mente. E ele também falava sobre o amor, sobre perdas, sobre a saudade, sobre o papel de cada um na sociedade, sobre representar uma personagem, ilusões, fantasias, escolhas e mais todas essas coisas que nos deixam meio apreensivos quando paramos para refletir de verdade. A maioria de nós apenas passa pela vida, deixa o tempo correr e nunca para para pensar. Feito máquina de comer, processar e cagar. E vive assim até morrer porque é mesmo muito mais cômodo não pensar, ele afirmava categoricamente com todas as letras. É muito mais fácil aceitar a vida da maneira como ela se estabelece e se apresenta. Por que ir contra ao arroz e feijão de cada dia, ao papai e mamãe no escuro do quarto aos finais de semana, ao contracheque magro no final do mês se tudo parece tão certo, tão seguro, tão prontamente estabelecido?


Ele não queria mais nada daquilo, ele dizia.



A única coisa que ele realmente queria era ter tempo. E o tempo, como ele mesmo já dissera outras vezes, parecia voar, como se escapasse de suas mãos. O tempo o deixava apavorado porque era a única coisa que ele sabia que não teria volta. Passa, escorre, apaga, enterra, esquece. Não dá para interromper o tempo. Nem com todo o esforço humano. Nem com a ajuda da Ciência. Nem com reza forte. Nem nada. Foi quando, de súbito, ele parou de falar. Não olhou mais em meus olhos. Baixou a cabeça. Guardou algumas pastas. Fechou as gavetas e se despediu com um aceno, sem esboçar nenhuma palavra. Eu também não consegui falar nada.

Naquela noite eu voltei para casa andando mais devagar e pensando no tempo que ainda me restava.

domingo, 20 de novembro de 2011

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

De tempos em tempos

O tempo apaga
O tempo muda
O tempo leva
O tempo jaz

O tempo cura
O tempo vira
O tempo segue
O tempo vai

O tempo vem
O tempo traz
O tempo lento
O tempo voa

O tempo todo
O tempo à toa
O tempo bom
O tempo certo

O tempo inteiro
O tempo passa

Tempo é dinheiro

O tempo ultrapassa
O tempo urge

O tempo surge
O tempo foge
O tempo para
O tempo acaba

Dê tempo ao tempo

(agora leia de novo, desta vez mais rápido)

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Respostas

Faz tempo que eu venho procurando em mim determinadas respostas para sabe-se lá quantas perguntas. De uma hora para outra minha mente se tornou um campo fértil para inúmeros questionamentos que brotam incessantemente. Se antes eu dormia pouco, agora durmo menos ainda. A insônia chega junto comigo do jornal quase que todas as noites. É a companheira, cúmplice e testemunha mor das minhas eventuais angústias. E angústia, você bem sabe, é um desassossego só. Traz o cansaço, o desânimo, a inquietação. Um passo e você entra em depressão. Loucura.

Há mais ou menos seis meses que faço análise. Tem sido um processo prazeroso e ao mesmo tempo doloroso, sofrido, tenso até. Se por um lado eu consigo ter clareza naquilo que eu sou e naquilo que eu um dia fui, é barra pesadíssima reconhecer que este eu - que agora já se entende como vários - não tem certeza do que virá a ser. Muito provavelmente este eu já não é o mesmo de alguns minutos atrás porque a cada segundo este eu me descobre em nuances diferentes. Outro dia mesmo me vi diante de um espelho e o meu analista ali do meu lado, pedindo que eu me aproximasse cada vez mais daquele que eu via no reflexo. De longe eu era bem diferente daquele de quem eu chegava perto. E ao pedir que eu me afastasse do espelho, aquele que estava perto ficou com muito do que estava longe. E vice-versa.

Nada fácil de entender.

Eu não tenho entendido mesmo muitas coisas ultimamente. Tenho pensado muito e tenho sonhado muito também. Tenho sentido saudades de coisas que jamais imaginei. Tenho percebido mais nitidamente as marcas que o tempo tem deixado em meu rosto. Meus cabelos cada vez mais ralos - e raros -, minha barba cada vez mais branca, o vinco na minha testa, os pelos nas minhas orelhas. Saber que muito provavelmente já vivi mais da metade do que me foi designado a viver me assusta. E meus planos de ser eternamente jovem, onde ficam? E meu corpo que talvez já não acompanhe a velocidade da minha mente? Eu tenho pensado muito nisso tudo. Tenho olhado fundo nos meus olhos. Tenho ficado muito tempo sozinho. Tenho chorado como nunca chorei. Mas tenho rido também. Carrego comigo desde sempre um certo deboche e um certo desdém pelas armadilhas da vida. Não que eu ignore os tropeços, muito pelo contrário. Tenho ficado mais atento, só isso, para na hora exata do tombo não me machucar por demais. Porque tombos são inevitáveis, agora eu sei.

Há que se levantar e se reencantar pela vida, eu costumo dizer a mim mesmo. Há que se deixar banhar no mar gelado num meio de semana de um céu azul sem nuvens e nada mais com o que se preocupar. Há que se permitir uma tarde sob o sol do Aterro a cruzar os olhos às margens da baía até onde os olhos puderem enxergar. Há que subir as Paineiras e lembrar que foi feliz ali outro dia. E então registrar na memória só o que restar de bom. Feito turista de si mesmo fotografando a cidade mais bonita, em busca do melhor ângulo. Aqui e ali, pouco importando se a luz está perfeita ou se o cenário e o figurino são adequados. Porque no fundo ele sabe que nada é perfeito ou adequado. Por que eu deveria ser? Aliás, o que eu deveria ser?

Eu tenho mesmo muitos questionamentos e tão poucas respostas.

sábado, 29 de outubro de 2011

Nu. Vem.





Para se desfazer em nuvens é preciso estar leve.
É preciso estar entregue e se permitir.
Porque o vento sopra e você nem percebe.
Quando se dá conta já é hora de ir.

Entre as montanhas.
Aos pés do redentor.
Nos arranhacéus.
Sobre toda a cidade.

De todas as formas.
Com nuances de cor
No por do sol
À procura do amor.

Partícula.
Água.
Gelo.
Vapor.

Condensação.
Sólido.
Líquido.
Seja lá o que for.

Para se desfazer em nuvens é preciso estar livre.
Soltar as amarras, seguir a corrente.
Deixar a máscara cair, se despir por inteiro.
E deixar desprender do varal.

Com a delicadeza da brisa,
A força da ventania,
Ou a fúria de um vendaval.
É preciso ter coragem.

Para se desfazer
Em nevoeiro,
Chuva fina,
Tempestade.

Então vem, nuvem,
Vem.
Nu.
Vem.

domingo, 23 de outubro de 2011

Raíssa

Mais uma semana e ele ainda não estava curado. Sentia-se mal com frequência. Uma letargia, uma falta de apetite, a vontade de não fazer nada, sequer de sair de casa, mãos geladas e uma dor nas têmporas constante. Estava assim desde que Raíssa partiu, há pouco mais de dois meses, naquela tarde fria de agosto.



Ele sempre soube que ela iria embora e que muito provavelmente eles nunca mais se encontrariam. A história dos dois tinha todos os ingredientes para se transformar num romance, destes que a gente chama de pocket book, curto, do tipo que a gente lê rapidinho numa viagem de trem, com princípio, meio e fim. Não parecia ter enredo de novela.



Ele não estava preparado para se apaixonar. Tinha acabado de sair de um relacionamento desgastado, com brigas frequentes, filhos traumatizados, advogados, partilhas de bens. Uma confusão só. Ela estava focada na vida que ia levar em Berlim, precisava resolver os trâmites burocráticos de quem vai morar fora do Brasil, um corre-corre danado e ainda queria aproveitar ao máximo o tempo que teria junto de sua família e de seus amigos.



- Tudo, menos me apaixonar - ela repetia feito um mantra.



Foi por acaso que eles se conheceram. Uma troca de mensagens por engano resultou num bate-papo bem-humorado e despretensioso que se repetiu por mais três dias. Até que depois de dezenas de mensagens, tantas coisas em comum e um misto de curiosidade e carência, resolveram se conhecer.



Raíssa morava com um irmão em Vila Isabel, numa espécie de sobrado bem na esquina de uma rua tranquila, com ar de cidade de interior. Foi fácil chegar lá. Na manhã daquela quinta-feira de outono, com o céu pintado de azul e o trânsito da Grajaú-Jacarepaguá fluindo bem, da Freguesia até a casa dela foram menos de vinte minutos. Ele estava nervoso. Ela também. No carro, Nine of ten na voz de Caetano Veloso. A boca seca. O coração acelerado. Parecia que estava fazendo algo proibido.



Ela também se auto-censurava, contou depois. Disse que pensou muito antes de aceitar sair com ele, que aquilo nunca tinha acontecido antes, que ele era mais velho, que ela ia viajar, que eles não deviam se envolver. Ele também não queria, dizia. Estava fragilizado com o término recente do casamento. Não queria saber de compromisso tão cedo. No máximo seriam bons amigos.



Ela entrou no carro com uma garrafa de água mineral nas mãos, vestia uma camiseta vermelha de algodão leve e gola v, uma bermuda cinza, bastante magra, seios rijos, cabelos negros soltos na altura do ombro, olhos grandes, repuxados, donos de uma profunda tristeza e uma voz serena de arrepiar. Ele sorriu, tirou os óculos e, olhando firme para ela, perguntou se tinha cara de mau.



- Não.



Sem saber onde levá-la, resolveu subir o Alto da Boa Vista e seguiu rumo à Floresta da Tijuca. Conversaram o tempo todo. Um contava um pouco o que achava que o outro podia saber. Afinal, era um primeiro encontro e todo primeiro encontro tem uma certa polidez e só se mostra o que cada um tem de mais bonito. Mas falaram da vida, das suas alegrias, suas frustrações, coisas íntimas até. Não havia por que se esconder, não havia nada a perder e no mais, ele teve a impressão de que já se conheciam há anos.



Parou o carro em frente a um mirante, desceram em meio aos mosquitos, ele soube que a mãe dela havia morrido, ela soube que ele sentiu vontade de morrer. Falaram também daquela situação em que se encontravam, que não deviam se envolver, que nenhum dos dois queria sofrer, que talvez aquela seria a primeira e última vez, mas ela cedeu a um beijo. Ele ainda roubou-lhe outro e todo o discurso racional começou a desmoronar ali.



No dia seguinte, já tarde da noite, ele estava no meio do trabalho quando ela mandou uma mensagem: preciso de um abraço. Em questão de segundos ele terminou o que tinha para terminar e num piscar de olhos estava em Vila Isabel envolvendo Raíssa em seus braços dentro do carro e numa explosão de sentimentos a tentar lhe confundir a vida. O coração batia forte, descompassado, esperançoso e feliz. A cabeça não parava de pensar que aquilo não poderia acontecer, que ele ia se dar mal mais uma vez, que tudo o que ele não precisava naquele momento era se envolver com alguém. Tudo ao mesmo tempo. A eterna disputa da razão versus coração.



E Raíssa ali, com o corpo leve em seu colo, entregue, frágil, linda. Ela também não sabia se o que estava fazendo era o certo, se devia ter mandado a mensagem, se não teria sido melhor nunca mais procurá-lo. Mas alguma coisa havia de mais forte ali com aqueles dois. Entre os olhares e beijos e sussurros, perderam a noção da hora e a madrugada avançava sobre eles. Alguns bêbados passavam ao lado do carro sem se dar conta do casal que ali estava. Àquela altura o casal já não se dava conta de muita coisa. O tempo foi passando, as madrugadas passaram a ser mais constantes. Ele insistia. Ela dizia que não queria. Ele sofria. Ela então cedia.



Faltando pouco mais de um mês para que ela fosse embora para Berlim foi que deixou escapar que o amava. Ele, que já se entregara há muito tempo, não se conteve de tanta felicidade. Parecia mesmo um sonho tudo aquilo que estava vivendo. Logo ele, que tinha certeza que nunca mais voltaria a amar outra mulher na vida e que - mais grave - não se achava merecedor do amor de mais ninguém. Ouvir que alguém o amava, especialmente ouvir que Raíssa o amava, era como encontrar um novo final nessa trama mal escrita que é a vida.



Mas Raíssa o amava racionalmente. Era como se ela fosse feita de uma casca dura, grossa, e só lá no fundo, a muito custo, amaciava. Ela o amava. Ele sabia disso. Mas ela se contentava em vê-lo uma ou duas vezes na semana, quando não tinha compromissos com os amigos, quando não tinha roda de samba, quando não tinha que defender um troco ou quando não estava cansada. Mas ela o amava, ele sabia disso. Mas ela não falava coisas bonitas, não o convidava para as festas, não telefonava, sumia, só aparecia quando queria.



Ele foi ficando triste porque ele sabia que a amava. Ele gostava de falar coisas bonitas, de sair para encontrá-la onde quer que fosse, a hora que fosse. Pouco importava. Ele a amava. Sabia que não deveria, mas amava. Sabia que era loucura, mas amava. Sabia que não teria chance, mas amava. Ele quase ficou louco de tanto amar.



Mais louco ficou quando se deu conta que teria de dar um fim àquele amor. Mas como? Como ele ia conseguir se desfazer de todo aquele amor depois que ela fosse para Berlim viver plenamente tudo o que ela teria para viver por lá? Onde ficava a tecla que ia fazer com que aquele jogo terminasse? Como fazer para surgir na tela o game over?



Raíssa cumpriu o seu destino e foi embora. Na véspera de partir repetiu que o amava. Disse também que era para ele se cuidar, seguir a vida em frente. Raíssa, vinte anos mais jovem, parecia tão coerente. Raíssa não se deixava revelar quase nunca. Ele, sim, sofria e ao mesmo tempo ficava cada vez mais fascinado. Ele estava fraco. Raíssa parecia tão forte. Raíssa não chorava. Não na frente dele. Ele vivia com os olhos cheios dágua porque sabia que ela o amava.


Raíssa está em Berlim. Ele continua na Freguesia. Raíssa tem novos amigos. Ele quase já não encontra os seus. Volta e meia Raíssa manda umas mensagens. Esteve em Barcelona, Amsterdam, Londres. Da última vez ela contou sobre uma tal ponte dos artistas, em Paris, onde ia comer queijos e beber uns vinhos à noite com uns amigos. Ele teve vontade de pegar o primeiro avião para encontrá-la e dividirem uma garrafa de tinto. Mas ele não podia. Ele não tinha muito o que contar. Não quis falar das dores, muito menos da saudade e da falta que ela fazia em sua vida.



Só ele sabia. E isso bastava.

sábado, 24 de setembro de 2011

eco ou "para ler repetidas vezes"

E se viesse a poesia que eu tanto espero
nem sei se saberia escrevê-la
sequer talvez nem pudesse percebê-la
eu me ocupo demais com besteira.
bobagens

Pode ser que esta poesia nem chegue
feito a carta que se escreve e se deixa perder no caminho
feito a água que corre sobre o limo das pedras no riacho
e se acomoda quando chega na represa.
triste destino

Talvez sejam apenas pequenos versos tímidos
mínimos detalhes, até mesmo despercebidos,
destes que a gente olha mas não vê
porque se escondem
por quê?

Mas quem sabe sejam versos quentes,
como os dos amantes que se deixam levar por um sopro na nuca
e se rendem ao contato da carne, esfregando a pele na pele,
chupando as entranhas na dança dos corpos.
rima profana

E se forem versos sagrados, imaculados,
destes que falam de Deus, que contêm a verdade da vida,
com mensagens de esperança e a certeza de um novo dia
eu acho que não seriam versos.
homilia.

Às vezes é só uma frase que não sai da cabeça,
uma oração sem sujeito, um verbo sem sentido
palavra por palavra martelando soltas no ar
corrente de vento que repete sempre os mesmos versos.
feito eco.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Um silêncio ensurdecedor

A última coisa que ele ouviu foi um grito agudo, histérico, estridente, inquietante. Daqueles de pavor. E então veio a náusea, o vômito, o desespero e aquela dor que estourava-lhe os tímpanos. Era cedo ainda. Não passava das sete da manhã de um dia quente de verão no subúrbio esquecido e maltratado do Rio de Janeiro. Chegou na janela. Não havia uma única nuvem no céu. Lá embaixo, a fila no ponto final do ônibus da linha Abolição-Copacabana era de dobrar o quarteirão com as barracas de praia e os chinelos de dedo e as pranchas de isopor e os sanduíches de pasta de sardinha com pão dormido esperando por um lugar ao sol.


No botequim da esquina, o cheiro de café fresquinho e os ovos coloridos no balcão atraíam a fiel clientela. Um coroa de cabelos grisalhos e olhos fundos de desesperança tirou do bolso da camisa azul displicentemente abotoada umas poucas moedas. Parecia pedir um trago, um gole de cachaça àquela hora, mal começava o dia. Sem esboçar qualquer reação, o cearense que trabalhava no boteco sabe-se lá há quantos anos, esticou o braço, pegou um copo, desses de geleia, entornou uma dose generosa da mais pura aguardente, recolheu uma xícara no tempo exato em que o coroa bebia de um só gole a pinga, serviu outra dose e deixou a garrafa ali por perto. Até que o tal coroa pegasse o ônibus, mais duas ou três doses seriam servidas. E outras tantas xícaras de café e não sei quantos pães na chapa. E cigarros, muitos cigarros. O cearense não entendia como aquelas pessoas conseguiam fumar tanto logo pela manhã.


Do alto daquela janela, ele, que já não conseguia escutar mais nada, sequer entendia o que estava acontecendo. O mundo externo havia se calado. Não havia as buzinhas, as freadas, os apitos, os latidos do cachorro da vizinha ao lado ou a música do radinho de pilha do faxineiro que recolhia o lixo no corredor. Nada. O único barulho que ele ouvia era o que sua mente cismava em fazer. Fruto da confusão mental que lhe tirava o sono e transformava suas noites um suplício interminável. Era quando teimava em dizer para si mesmo as verdades que ele considerava absolutas, incontestáveis, imutáveis. Então vinha a verborragia, a discussão, muitas vezes agressiva. Chegava mesmo ao ponto de partir para a briga sem argumentar o que estava certo ou errado. Pouco importava quem tivesse razão. Porque não havia ninguém. Muito menos razão. Era só ele ali naquele apartamento.


Quando se deu conta de que poderia ter ficado surdo veio junto o desespero. Tentou gritar, pedir socorro, mas teve a nítida impressão de que ninguém poderia ouvi-lo. Nem os que estavam na fila do ônibus, nem o cearense do bar, nem a vizinha ao lado e muito menos o faxineiro que recolhia o lixo. Ouviu um riso sórdido vir de dentro dele, como uma gargalhada debochada, destas que nos pegam de surpresa e nos deixam sem reação. A garganta parecia apertar, chegava mesmo a doer, e a voz não saía, não reverberava. Apenas um leve murmúrio, feito um lamento, não sei. Ele também não sabia.


Foi quando debruçou no parapeito e chorou copiosamente. Soluçava forte, feito criança desamparada que acabou de levar uma surra. Ele erguia os braços pesados, gesticulava, balançava a cabeça para cima e para baixo num ritmo eletrizante e procurava olhar para o alto, tentando fixar o olhar no infinito, como se implorasse por ajuda divina. Uma tortura. Dava pena de ver. As lágrimas escorriam molhando toda a face, a barba por fazer, o peito desnudo, o cheiro de suor da noite que passou acordado e todo aquele silêncio ao redor. Como se o mundo já não tivesse mais nada a lhe dizer. Ficou então parado, imóvel, até conseguir se acalmar, até que seus batimentos cardíacos voltassem ao normal. Um sopro de vento levantou as cortinas e o fez sair da janela. Voltou para a sala, acendeu um cigarro, leu uma ou duas notícias no jornal. Só desgraça, pensou. Esticou o corpo cansado no sofá, fechou os olhos, mas não conseguiu dormir. Apesar de todo o silêncio que fazia lá fora.


É que dentro dele algo continuava gritando.

sábado, 10 de setembro de 2011

Mosaico

Se eu pudesse pedir que você ficasse
Eu lhe mostraria outros lugares ainda mais bonitos.
Se eu pudesse impedir que você se fosse
Eu criaria as rimas mais preciosas,
Eu deixaria tudo em verso e prosa,
Eu juro.
Só para você,
Se eu pudesse.

Se eu pudesse estancar a minha dor,
Fazer parar agora,
Jogar os restos todos fora.
Cicatrizar.
Esquecer o que passou,
Tirar dos ombros o peso do mundo,
Limpar em mim o que ainda está sujo
E beber da água que me purifica.

Eu ficaria então mais leve.
Eu viveria mais alegre.
Eu teria enfim um porquê.

A vida parece não me dar sentido,
Parece até mesmo brincar comigo,
Feito que fosse me enlouquecer.

Se eu pudesse ia agora me banhar na fonte,
Dos pés à cabeça me lavar por inteiro,
Deixar-me levar numa outra poesia.

Mas a vida não me deixa escolher.

Ela finge permitir o fluxo
E me confunde com tantos caminhos,
Me coloca num redemoinho,
Um labirinto de decisões.

Se eu pudesse me fazer correnteza
Eu ia encher meu peito de ar,
Descer as curvas do rio sem medo,
Deixar meus restos de encontro ao mar.

Só então ia juntar meus pedaços,
Ia colar caco por caco,
Feito um mosaico de mim mesmo.

Como se eu pudesse me completar por inteiro.

(Mas sem você eu não posso)

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Quando a paz é uma farsa

Não é de hoje que eu estou com a sensação de que o Rio de Janeiro vive uma farsa. A chegada das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) nas comunidades cariocas aconteceu com o apoio maciço da mídia. A tal pacificação nos foi vendida como algo triunfal, uma grande vitória do Governo do Estado contra o crime organizado. A emblemática invasão dos policiais na Vila Cruzeiro, que culminou com imagem de uma bandeira com a palavra paz hasteada no alto do morro, em pleno caldeirão que é o Complexo do Alemão, em novembro do ano passado, ilustrou inúmeras reportagens e vídeos publicitários do nosso governo. Um verdadeiro marco. Não se falava em outra coisa na cidade e a repercussão alcançava esferas internacionais. Sede dos Jogos Olímpicos de 2016 e palco de jogos da Copa do Mundo de 2014, o Rio de Janeiro, mais do que nunca, se transformou na meca para qualquer marqueteiro de plantão. E como política infelizmente não vive sem um marqueteiro, a imagem positiva que o governo tanto queria estava, enfim, criada.



Muito embora eu tenha me decepcionado com o episódio envolvendo a corporação do Corpo de Bombeiros, ainda acredito na seriedade da grande maioria dos que servem e arriscam suas vidas no Batalhão de Operações Especiais, o temido Bope. Só nunca entendi muito bem como é que ao invadirem os morros quase nenhum bandido era preso. Um ou outro pé de chinelo e olhe lá. Eu sempre nutri a impressão de que o Bope só invadia as favelas depois de tudo acertado com a bandidagem local ou com o dono do morro, vai saber. O certo é que as UPPs foram se espalhando pelas mais diversas comunidades do Rio de Janeiro, as autoridades se vangloriavam, a sociedade parecia estar mais segura, e a mídia cumprindo seu papel de vender a história da pacificação. Mas e os bandidos, onde estavam? Evaporaram? Esta era pergunta que nunca me saía da cabeça. Até porque, ainda não esqueci a cena dos traficantes fugindo no alto da Vila Cruzeiro sem que nenhum deles fosse capturado. A sensação que eu tive ao ver aquela cena foi parecida com a de um coito interrompido. A gente estava quase lá.



Escrevo isso porque nos últimos dias os jornais têm noticiado a volta do tráfico ao Complexo do Alemão após denúncias de um conflito entre moradores da comunidade e militares da chamada Força de Pacificação. A madrugada da última terça-feira, dia 6 de setembro, foi violenta, com um intenso tiroteio na área, que levou de volta à região o clima de terror e insegurança que aparentemente era coisa do passado. Depois de mais uma noite de conflitos, o secretário de segurança reforçou o policiamento e nesta quarta-feira, feirado nacional, foi obrigado a admitir que os traficantes haviam voltado à comunidade. O governador até agora não se pronunciou. Vergonha? Mas isso é até compreensível, já que para os vaidosos não é nada fácil assumir que algo não deu certo. Ainda mais em se tratando de um tema tão delicado quanto esse. Daí o silêncio, pode apostar.



Foi em silêncio que eu voltei para a casa depois de ter dado plantão no jornal neste Sete de Setembro. Não quis ligar o rádio, não tirei o ipod na mochila, acendi um cigarro e voltei pensando que, além das marchas contra a corrupção, que vêm tentando reacender uma certa chama de esperança num Brasil, há a injustiça maior que é viver numa cidade entregue ao crime organizado. Tudo fruto da corrupção, da ambição desmedida, do descaso, da falta de seriedade dos nossos políticos. Morro de raiva em ver uma cidade linda feito o Rio de Janeiro, cantada em prosa e verso como maravilhosa, porta de entrada de um país tão rico e promissor feito o nosso, viver a mentira de uma pacificação. Isso para mim é inadmissível.



Já não é de hoje que chegam denúncias de confrontos entre policiais das UPPs e as comunidades. Há cerca de duas semanas um amigo meu, morador do Leme, relatou um ataque a uma viatura da PM numa das principais ruas do bairro. Não é de hoje, também, que no caminho do jornal até minha casa as cabines policiais ficam fechadas e vazias durante a madrugada e, não raro, vejo uma patrulhinha parada e também vazia em frente às tais cabines. Será que a PM está com medo? A sensação de abandono e insegurança é enorme. Daqui da minha janela volta e meia ouço tiros na direção de Vila Isabel, onde fica o Morro dos Macacos, outra comunidade que foi pacificada recentemente. Os bailes funks no Lins são precedidos por rajadas de metralhadoras, a venda de drogas continua no morro e no asfalto da zona sul à zona norte da cidade. Os assaltos também. Só quem é cego não vê.


Mas ouve, até porque, as balas traçantes nos céus do Alemão anunciam que o pesadelo ainda não terminou.

domingo, 4 de setembro de 2011

A parte invisível que me cabe

Chegou ao ponto de sufocar. O peito doía feito tivesse apanhado bastante. O nó na garganta, o choro contido, as mãos geladas e o outro sempre ali defronte a lhe perguntar o que há. Ele já sabia de praticamente tudo, mas o outro vivia lhe fazendo muitas perguntas. Uma curiosidade infinita. Um questionamento atrás do outro. Um verdadeiro inquérito. Chato. Tenso. Frio. No lugar das respostas, silêncio.

Ficou quase dois dias inteiros sem falar. Não saiu de casa, não atendeu interfone, desligou celular, tirou telefone do gancho. Ficou mudo. Nem um murmúrio, nem um ai, nada. Nem ele ouviu o som de sua voz. Esvaziou a mente, limpou a sujeira, sacodiu a poeira, deitou, tentou dormir, levantou, caiu. Levou junto o outro, que estava sempre ali a postos e parecia enlouquecer com tamanha indiferença. Ele havia conseguido erguer uma barreira entre os dois, como se não quisesse mais ver o outro na sua frente.

Não sou e nem quero ser invisível, dizia o outro. Dizia também que não precisava viver escondido, trancado a sete chaves, segredo de estado. Não era nenhum criminoso, fugitivo ou um ser esqueroso, portador de doença contagiosa. Nada disso. Ele existia, sim, e amava, sim, e sorria, sim, e cantava os versos da alegria, dia e noite e noite e dia. O outro também sofria, sentia na pele as feridas, tentava driblar as tantas dores da vida. Aquilo tudo o incomodava demais. E mais o silêncio. E mais a distância. Foi então que o outro, já quase louco, começou a se dar conta de que com ele estaria cada vez mais sozinho. Por mais que o outro precisasse dele.

E ele - que na verdade era o outro - para o outro - que na verdade era ele - para todos os efeitos não existia.







sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Vertigem




Definitivamente agosto é um mês estranho. Desde sempre eu ouço falar que é o mês do desgosto, mas nunca havia sentido o peso de um agosto feito este que passou. Confuso, com escândalos na política, com quedas de ministros, com tragédia num bonde de Santa Teresa, com gente partindo, outras morrendo, outras tantas para nunca mais. O mês parecia mesmo se arrastar. A morte de dois jornalistas muito queridos por todos na redação onde eu trabalho fez de agosto não só o mês do desgoto, mas um mês de tristeza e saudade.

Eu sou destes que morre de saudades.

Agosto foi tão estranho que uma tia minha, irmã mais velha da minha mãe, faleceu, aos 72 anos de idade, depois de ter sido desenganada pelos médicos aos cinco anos. Eu, que achava que ela nunca ia morrer, fui pego de surpresa em plena sexta-feira, 19 de agosto, com a noticia de que ela havia morrido. Morreu dormindo, não sentiu nada, não sofreu. Já tinha sofrido demais antes. Uma história tão triste que não me cabe aqui contar. Até porque, esta minha tia tinha como uma de suas principais características - a principal era a gulodice - o jeito alegre de encarar a vida. Como se debochasse das porradas que a vida lhe dera. E garanto que não foram poucas. Se eu parar para pensar, a vida desta minha tia foi uma sucessão de agostos.

Pensei nisso e em tantas outras histórias desta minha tia na noite daquela sexta-feira, enquanto voltava de carro para a redação, depois de ter providenciado seu atestado de óbito.

Era agosto, fazia frio e aquele atestado de óbito ao meu lado me dizendo que eu nunca mais ia ver minha tia.

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Hoje vi umas fotos de Paris feitas do alto da torre Eiffel. Já tinha visto centenas de fotos feitas do alto da torre Eiffel, claro. Mas nunca fotos feito aquelas. O talento que o fotógrafo se permitiu revelar naquelas imagens me chamou a atenção. Não que eu seja um expert em fotografia, crítico, ou algo do gênero. Longe de mim tamanha erudição. Vai ver as fotos nem são isso tudo. Embora desconfie que sejam muito mais, até. Mas é que ainda guardo uma certa sensibilidade que me permite perceber que o que teria tudo para ser lugar comum se sobressai, se destaca, provoca os sentidos. É quando a vida se eterniza em forma de arte. É quando somos capturados e nos deixamos levar.



Eu, que me deixei levar vendo aquelas fotos, tive a nítida sensação de sobrevoar Paris. Talvez influenciado por uma vontade incontrolável de conhecer aquela cidade ou talvez pelo efeito do cigarro que eu havia fumado, não sei. Só sei que cheguei a ficar tonto ao sobrevoar Paris. Uma espécie de vertigem. Uma vertigem boa. Feito um sonho que eu tive quando criança, onde eu voava pela casa.

Era setembro e os sonhos em setembro são sempre mais bonitos.

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

das ruas ele fez um deserto

ele estava só. quando tudo aconteceu ele estava só. o amor, ele perdeu. a vida, ele deixou passar. o que estava bem ali ao lado, ele não viu. não viu ou não quis enxergar. preferiu partir. sozinho. aquela viagem seria só dele, dissera algumas vezes. embora soubesse que seria impossível esquecer tudo o que ficou. por mais que tentasse. tantos momentos felizes, outros nem tanto. carinhos, abraços, sopapos, crises. há muito ele já vivia em crise. desde criança. vai ver por isso ele não tinha a menor saudade da infância. pouco falava. ultimamente sequer saía de casa. já não encontrava mais os amigos. onde eles estavam, os amigos? ele estava tão sozinho.

das ruas ele fez um deserto. apagava as imagens de quem quer que passasse por ele. desviava o foco, perdia a atenção, avançava os sinais, cruzava as avenidas, parava em qualquer lugar, mas nunca, nunca descansava. perdeu o brilho, ele pensava. perdeu a graça, ele repetia. perdeu o sentido, ele sabia. e chovia e chovia e chovia. sem parar, ele dizia que nada mais o interessava, que nada mais servia, que nada mais ele queria. tudo terminava ali. não havia ninguém. no quarto, uma luz acesa. a cama vazia. os pés descalços sobre o chão gelado e o frio que percorria toda a espinha. o vento que batia as portas vinha da varanda. as janelas continuavam fechadas. um silêncio estranho que não existia.

uma, duas, três, quatro horas e nada. ninguém aparecia. não que estivesse esperando alguém pois este alguém não chegaria. ele sabia. ele não estava cansado mas seus olhos não se abriam. não percebia mais se era noite ou se era dia. trocou o fuso, já nem dormia. não enxergava mais, apenas via o resto do que sobrou dele mesmo. o que ele havia conseguido guardar do que fora um dia. só ele podia ver. de certo que não fazia a menor importância. ver para quê? se ele pudesse fazer alguma coisa, ele se multiplicaria. porque ser um só a vida inteira é desperdício, ele achava. bom mesmo é ser muitos e ao mesmo tempo não ser nada, acreditava.

leu todos os versos do drummond, decorou as músicas do vinícius, ouviu tom, caetano, baby, milton, john. escreveu nas paredes, rascunhou na própria pele, desenhou outro cenário, fez tudo o que podia e sabia. estava tudo diferente. mesmo assim as horas não passavam, quiçá os dias, os meses, o ano. um calendário inteiro a percorrer e ele ali, esperando, enquanto suportasse. dia a dia. sem cessar. num movimento interminável, incontrolável, involuntário. como respirar. e pulsar. acelerado e bem devagar. até parar. um dia.

neste dia ele estava sozinho.




quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Eu, que estava perto

Eles foram vistos juntos pela última vez na esquina da Rua do Teatro com Senhor dos Passos, bem ali atrás do João Caetano, num começo de madrugada de lua ainda cheia num céu limpo, ao som de um jazz acadêmico e entre caminhões e mais caminhões de uma obra da prefeitura. Foi rápido. Eu, que estava perto, tive a chance de reparar que eles pouco se falaram. Sequer se encostaram. Não pareciam nervosos, mas emocionados. Os dois se olhavam com ternura.


Havia amor ali.

Até então ninguém sabia que eles haviam marcado uma despedida e muito menos que eles tinham um caso e que este caso já estava rolando há quase um ano. Feito a morte anunciada, eles marcaram na agenda uma data para aquele amor terminar. Nenhum dos dois podia continuar com aquilo, diziam. Prometeram um ao outro guardar na lembrança tudo o que viveram enquanto estiveram juntos. Prometeram um não esquecer do outro. Prometeram tentar ser felizes e tantas outras coisas. Portanto, aquela seria a derradeira, a última vez e nunca mais.


Idiotice.


Todo mundo sabe que não se deve bolinar com essas coisas de coração. Sentimento é um terreno onde não se brinca, porra. Não dá pra chegar de uma hora para outra e dizer que no dia tal o amor vai acabar. Não é assim que funciona. Seria absurdamente fácil. Cômodo. Indolor. Simplório demais. Não seria o que conhecemos por aí como amor. Seria qualquer outra coisa. Até porque, amor bom é aquele que machuca, que deixa doer a saudade, que aperta o peito, que sufoca.


Vai ver é por isso que tem gente que morre de amor.


Não. Nenhum dos dois morreu, tenho certeza. Apenas nunca mais foram vistos juntos desde aquela madrugada, quando um deles, não me lembro qual, já achava que tudo ficaria ainda mais complicado depois que eles deixassem de se ver. O outro dizia ter medo do que iria encontrar pela frente, sabe-se lá onde. Eu, que estava perto, tive a sensação de que naquele momento já pairava nos dois a desconfiança de que aquela história deveria ter um outro fim. Se eu fosse íntimo deles, teria dado minha opinião. Mas conselho não se pede e se fosse bom, eu vendia.


- Não tem jeito. Nós sabíamos que seria hoje, um deles disse.


- Não dá para voltar atrás. Pacto é pacto, disse o outro.


Eles se olharam. Eles se abraçaram. Eles se despediram. Um deles saiu chorando que eu vi.


O outro só foi chorar mais tarde.




















sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Logo ali na esquina




A carta que saiu foi a da morte. Não que algo de muito ruim fosse acontecer. Nada disso. O que ela queria lhe dizer era da necessidade de se renovar, de morrer para nascer de novo. Porque assim são os ciclos. E o que não se renova, não sobrevive. Fica no meio do caminho, feito lagarta que não chega a borboleta.


Chegar até ali não tinha sido nada fácil. Assumir que era preciso mudar para seguir adiante estava sendo ainda mais difícil. Uma batalha árdua, dia a dia, noite após noite, fora a enxurrada de ideias e pensamentos muitas vezes inúteis. Desde que se entedera por gente era assim: uma aparente tranquilidade, mas por dentro era um agito só. Feito o mar quando esconde a correnteza.


Sua cabeça não dava trégua. Uma frase martelando, uma imagem que ia e voltava, uma lembrança remota, uma saudade esquisita, umas coisas malucas, outras tantas bonitas. Era de embaralhar. Chegava a esquecer as letras, confundir os gestos, procurar socorro. Chegava mesmo a pensar em parar. Feito chuva forte quando acaba de repente.


Depois então continuava e falava com quem bem quisesse ou lhe desse atenção. Tinha um quê de carência nisso tudo também, claro. Ninguém dá passos tão seguros de si assim. Muito embora para seguir no caminho fosse preciso culhão, encarar as feras, sangrar as feridas. Feito chaga que se abre a sua frente.


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Ouviu aquilo tudo sem dizer nada. Pagou o combinado e saiu de lá sentindo frio. Na avenida Nossa Senhora de Copacabana, um verdadeiro caos. Ônibus demais, carros demais, gente demais e uma vontade muito grande de chegar em casa. Ainda tinha de comprar alguma coisa para comer, embora não sentisse fome. Talvez um leite, bem mais tarde, quando fosse deitar. Agora, ali, naquela esquina, só pensava em não interromper o ciclo, em se reinventar, em deixar morrer para renascer e poder seguir eterno.




Sequer teve tempo de ouvir a freada.

sábado, 23 de julho de 2011

Está tudo assim tão diferente

Deixa tudo como está:
a cama desfeita,
as roupas no chão,
o cheiro de cigarro impregnado no ar.

Vem.

Lembra da tarde perfeita,
da luz em seus seios,
das mãos em meus pelos,
das juras de amor que deixei escapar.

Já faz algum tempo, lembra?

Eu te falava segredos, eu te fazia carinho.
Eu te falava baixinho que eu morria de amores.
Personagem de um sonho que eu nunca esqueci.

Você olhava em meus olhos,
você morava em meus olhos,
você se via em meus olhos,
eu só tinha olhos para você.

Fiquei cego de amor.

Completamente vendado,
totalmente vendido,
me despi menino, me fiz amante, me vesti poeta.
Reescrevi meus versos sobre a linha do destino já traçado nas palmas de nossas mãos.

Rascunhei outras histórias,
reinventei outros roteiros.
Rabisquei,
pintei e bordei.

Agora vem.

Deixa tudo como está:
o mesmo cheiro de cigarro impregnado no ar,
as mesmas roupas no chão,
a mesma cama desfeita.

Mas vem diferente.

Porque eu não sou mais o mesmo.

sexta-feira, 8 de julho de 2011

Estranho

Bateu a angústia. Foi quando ele resolveu sair de casa. Era noite já. Céu estrelado e um frio intenso de fazer tremer a alma do mais caloroso cristão. Desceu a rua encolhido na jaqueta azul surrada, a única que ele tinha. No pescoço, uma corrente fina e uma medalha de São Jorge. Ganhou de presente da avó, pouco antes dela morrer, há dois anos. Foi de repente. Ela estava em casa, sozinha, sentiu-se mal, uma dor no peito, deitou e nunca mais levantou. Pensaram que ela estivesse dormindo de tão sereno o semblante da morte. Parecia mesmo estar sorrrindo. Estranho, ele lembrou.

Na esquina, dois mendigos dividiam civilizadamente um cobertor e uma garrafa de cachaça enquanto liam versos do Neruda. Ao lado deles, um cachorro de pelúcia cor de rosa preso numa coleira improvisada com barbante parecia latir de verdade. Mas ele passou e sequer percebeu. Não notou também que as portas da padaria ainda estavam abertas e que lá dentro, nas prateleiras, no lugar de pães, havia restos de comida. Um carro de som em alta velocidade cruzou a avenida tocando as bachianas brasileiras de Villa Lobos. Logo atrás, um ônibus com os faróis apagados. Ele fez sinal, entrou, tirou uns trocados do bolso, passou a roleta e sentou ao lado de uma velha com um terço de prata enrolado nas mãos. Mais uma vez ele lembrou da avó. Estranho, ele pensou.


O trocador tinha cabelo nas orelhas e um dos dedos da mão esquerda tinha a unha comprida, bem feita, firme feito um casco de cavalo. Ele coçava as narinas com ela, ao mesmo tempo em que tentava equilibrar um rádio de pilha que transmitia uma partida de futebol entre Brasil e França pelas quartas de final da Copa de 86, aquela em que Zico perdeu um pênalti. A menina no banco da frente, linda, de cabelos negros, lisos, e vestido de cetim vermelho, não tirava os olhos dele. Ela escondia um sorriso de canto de boca e revelava as coxas tenras, de pele macia, os pés descalços. Um cheiro doce exalava daquela menina e por um instante ele imaginou se não seria o cheiro da sua buceta. Quis provar, derramar-se em seu seio rijo, roçar seu pau duro naqueles mamilos, passar a língua sobre a nuca, esfregar a barba em suas costas, pegá-la por trás e ali mesmo, naquele ônibus, açoitá-la num coito frenético, ritmado, intenso, feroz até. Só então gozar, disse a velha, olhando pela janela e com o terço de prata ainda enrolado nas mãos. Muito estranho tudo isso, disse alguém lá nos fundos.

A voz soou familiar. Era seu pai, a barba por fazer, o hálito forte. Com o mesmo pijama listrado, as meias de lã e os tamancos de madeira, desses que portugueses costumavam usar. O pai dele sempre estave em todos os lugares, observando cada passo, cada lira com defeito, feito o olho que tudo vê. E julgava. E percebia. Como se soubesse o que devia ou não devia falar. O pai dele nunca se calava. Talvez por isso mesmo parecesse tão rouco, como se a voz fizesse um enorme esforço para sair. Mas ele sempre ouvia seu pai, mesmo que não entendesse ou não fizesse muita questão de escutar. É estranho explicar, eu sei.


A angústia não passava. Uma freada brusca. O rádio de pilha do trocador cai no chão. Anda mais devagar, ô filho da puta, berrou a menina linda do vestido de cetim vermelho. O motorista, um adolescente franzino, com goma nos cabelos e aparentando menos de dezesseis anos de idade, mandou que ela tomasse no cu e acelerou. A velha, o tempo todo com o terço enrolado nas mãos, riu e abriu a janela do ônibus e pôs a cabeça para fora e a boca aberta e o vento gelado a estapear-lhe as bochechas. O pai, falando baixinho, esticou-se no banco traseiro do ônibus e acendeu um cigarro sem filtro. Foi então que ele fez sinal para sair do ônibus. Outra freada. A porta do ônibus abre para ele saltar. A velha quer que ele fique, a menina quer que ele vá. Pela primeira vez o pai não quis se pronunciar. O motorista não olhou e o trocador fingiu que não viu. Ele então tomou a decisão de voltar.


Mas ele ia voltar estranho.

quinta-feira, 30 de junho de 2011

Minha fé é meu código de conduta




Na tarde daquele sábado, dia 4 de junho, quando assisti ao vivo pela tevê a entrevista coletiva em que o governador do Rio de Janeiro chamou os bombeiros de vândalos, fiquei chocado. Você pode até achar que os bombeiros realmente tenham cometido alguns excessos ao invadirem o Quartel Central e levarem mulheres e filhos menores para a manifestação. Mas nada, repito, nada justifica uma autoridade pública da importância de um governador de estado ofender toda uma corporação que sempre contou com o apoio e a simpatia da população. A mesma população que adotou as fitas vermelhas nos carros, numa impressionante demonstração de apoio à causa dos bombeiros. Demonstração, aliás, que eu não lembro de ter visto outra com tamanha força entre os cariocas em todos estes meus 42 anos de vida. Resultado: anistia para os bombeiros que haviam sido presos e a mea-culpa do governador, que disse - 25 dias depois do ocorrido - que errou ao chamá-los de vândalos. O mesmo governador que propôs criar um código de conduta para estabelecer limites nas relações entre o Executivo e empresários. Isso porque uma tragédia evidenciou a sua relação de amizade com empresários que lucram milhões em negócios com o governo. A conduta do interesse.

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Quarta-feira, 29 de junho de 2011, 15h40.


Naquela tarde eu fazia o meu trajeto habitual para chegar ao jornal quando fui surpreendido por uma cena que também me deixou chocado. Eu estava no carro, a dois quarteirões da minha casa, e vejo em frente a um prédio uma senhora desesperada com uma criança completamente ensanguentada nos braços. Levei um baita susto. Tenho horror a ver sangue e mais horror ainda a ver criança ensanguentada. Meio que por instinto parei o carro e não foi preciso mais de um segundo para que eu cedesse aos apelos daquela avó e levasse seu neto para ser socorrido num hospital. Abri a porta traseira e o cheiro de sangue e adrenalina tomaram conta do meu carro.



Dali ao hospital foram poucos minutos, mas muito desespero e aflição.


A vizinha que os acompanhava foi quem conseguiu me contar que o menino estava brincando na sala enquanto a avó estava na cozinha. De repente um estrondo. A avó corre para a sala e encontra o neto caído e sobre ele a estante e uma televisão de 29 polegadas em sua cabeça. Uma fatalidade. Lembrei dos meus filhos, do meu neto e a única coisa que conseguia dizer era para que tivessem fé e que o menino ia ficar bom. Naquele momento o que eu mais queria era que aquele menino tivesse forças para não parar de respirar e que fosse atendido a tempo. Ele não se mexia, não tinha reação alguma, a avó chorava e implorava que ele falasse com ela, a vizinha pedia calma, eu também pedia calma mas estava tão nervoso que entrei na emergência do hospital cantando pneu. A avó saltou correndo do carro, nossos olhares se cruzaram e não foi preciso dizer mais nada. Eu ainda fiquei ali parado por um instante, tentando me recuperar daquele susto e pedindo silenciosamente para que aquela história tivesse um final feliz.


Naquela tarde eu cheguei atrasado no jornal, completamente abalado com aquilo tudo que eu havia presenciado momentos antes, mas com uma sensação boa: a de ter podido ajudar alguém num momento de pleno desespero. Não deve ter sido por acaso que eu passei ali em frente àquele prédio exatamente na hora em que o menino precisava de socorro. O cheiro do sangue parecia entranhado no meu nariz e eu passei o resto do dia pedindo a Deus que salvasse aquela criança. Eu estava realmente preocupado. Mas eu estava feliz. Feliz com a minha conduta.


No dia seguinte, quinta-feira, ao passar novamente em frente ao prédio, parei o carro e perguntei ao porteiro sobre o estado de saúde do menino que eu sequer sei o nome. O porteiro disse que o estado era grave e que ele respirava com ajuda de aparelhos no CTI. Mas estava vivo, eu pensei. Na sexta estive lá de novo. Parece que está melhorando, disse o porteiro. No sábado eu soube que ele já não precisava mais de aparelho para respirar, mas que continuava no CTI. Ele vai ficar bom, eu disse para mim mesmo, porque faz parte do meu código de conduta esta estranha mania de ter fé na vida.

sábado, 25 de junho de 2011

Não sabia?

Vem comigo, não me deixa ir sozinho. Eu não quero chegar lá sem conhecer ninguém. Mostra como eu faço para encontrar o caminho. Vou de avião, de trem, de barco, pago a sua passagem, vem. Segura firme a minha mão. Me diz coisas bonitas para eu lembrar que existe um lado bom na vida. Sussurra em meus ouvidos verdades que eu nunca mais vou esquecer. Eu só me sinto protegido quando estou abraçado a você. E eu sei que você sabe. Se não falo, é por pirraça. Mas meus olhos deixam escapar, assim como os seus, que eu sei que exergam bem. Veja, as horas já se passaram e nem faz tanto tempo que chegamos aqui. Nos conhecemos? Onde foi mesmo? Quando? Como? Quem? Ninguém sabe. Mas será que aquele fulano viu? Puta que pariu. A viagem está marcada e eu não sei quando vou querer voltar. Decerto que não sei o que vou encontrar por lá, mas, au revoir, faz tempo que procuro. Eu juro. Você me diz que é para eu aproveitar. Diz que vai sentir saudades. Diz que um ano passa rápido e que com o tempo a gente esquece. Você diz um monte de bobagens. Cresça, apareça e vamos ver de novo o por do sol na Joatinga. Antes que seja tarde. Me dê de presente outro dia daqueles - quem sabe um mergulho no mar? - um sorriso sincero, mão na minha mão, pele na minha pele, palavras que foram ditas, frases que não foram escritas, versos, rima, poema enfim.


O amor tem dessas coisas, não sabia?

sábado, 11 de junho de 2011

et cetera

eu quero mesmo é escrever poesia
me drogar desta fonte inesgotável que é a poesia
deixar me contaminar

de hipocrisia me liberar
entre versos pelos poros
todas minhas toxinas

pobre da palavra que não foi escrita
feito rima que fatou sílaba
feito peito que ficou sem ar

letras que já eram mortas
frases muitas vezes tortas
desencontro vocálico é o que há

na oração da menina linda
falta o verbo não conjugado
o intransitivo no livro é direto

tudo o que se lê deve ser concreto
o sujeito e a ligação com o predicado
ponto, vírgula e et cetera

porque página em branco é feito deserto
é como caminhar por aí sozinho
calado

então vou e escrevo poesias

domingo, 5 de junho de 2011

Duas ou três coisas que eu queria esquecer




Faz duas semanas que bati o martelo e resolvi fazer terapia. No final do século passado, lá pelos idos de 1993, eu cheguei a fazer umas sessões de psicoterapia corporal. Eu tinha acabado de sair da faculdade, já estava divorciado, meu filho mais velho tinha dois anos, eu não tinha namorada, estava desempregado, meus cabelos começavam a cair, eu tinha um monte de planos e uma vez por semana eu subia a Rua Alice, em Laranjeiras, para tratar das minhas angústias. O resultado foi mais que positivo. Negativo era o meu saldo no banco. Então fui obrigado a dar um tempo.

18 anos para ser mais exato.

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Noite fria de sábado, 21 de maio de 2011, casa do Raul, depois de uma tentativa frustrada de ir ao show do Arnaldo Antunes na lona montada no Arpoador por conta do Viradão Carioca. No playlist, Marcelo Petit e Leonard Cohen se misturavam às revelações sobre amores, alegrias, dores, frustrações, planos, viagens, amigos, idade. Baseados nisso tudo, foram muitos os nossos questionamentos sobre as emoções que nos acometem e uma só conclusão: a importância da terapia e do bem-estar mental que ela pode nos proporcionar. Naquela noite, depois de uma taça de vinho tinto e alguns copos d´água, voltei para casa decidido a procurar um terapeuta.

Foi o que eu fiz.

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Segunda-feira, 29 de maio de 2011. A entrevista com o terapeuta era às duas da tarde e eu estava pelo menos meia hora adiantado. Ansiedade, de certo. Fazia sol, eu estava com sede, subi e desci a ladeira da Cândido Mendes, na Glória, pelo menos umas duas vezes até que deu a minha hora. De cara eu gostei do terapeuta. A metade do meu tamanho, uns vinte anos mais velho, cabelos fartos e grisalhos, a fala mansa, os gestos contidos, os olhos atentos e os ouvidos bem abertos. Trabalha com o método reichiano. Me deixou tão à vontade que eu, que estava ali com o firme propósito de entender o por quê de tantas angústias, não desperdicei meu tempo e falei muito naquele primeiro encontro. Disse também que no dia seguinte eu tinha uma outra entrevista com um outro profissional. Eu precisava fazer uma pesquisa, inclusive de custos, fui sincero, mas que eu ligava para dizer se sim ou não.

Três dias depois eu estava de volta à Glória para dar início, de fato, à terapia.

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Outro dia escrevi aqui neste blog que cada um de nós traz as suas próprias tragédias pessoais. Não que eu viva me remoendo ou que eu tenha pensamentos negativos. Longe disso. Mas o certo é que eu penso muito, sofro as dores do mundo, carrego pesos que muitas vezes não são meus, como se os meus já não me bastassem. Eu penso muito. Minha cabeça não para. Presto atenção em mim mesmo, nas minhas reações, no que cada um que habita em mim tem para me dizer. Sempre fui assim. E para completar o álbum, trago lembranças das mais remotas. Boas e ruins: o chão gelado da varanda da casa da minha avó, em Pilares; as brincadeiras na vila da minha prima Mônica; o gosto do doce de côco ralado em casa que só minha tia Ida sabia fazer; o dia em que meu avô ameaçou tirar o cinto para me bater porque eu, ainda criança, falei um palavrão na hora do almoço; a inveja que senti do meu irmão e sua camisa azul com um desenho de um urso que ele usou no seu aniversário de dois anos; o dia em que meus pais se separaram; a primeira vez que fiquei em casa sozinho; e a primeira vez em que me senti sozinho de verdade.



Se eu pudesse, eternizava algumas destas lembranças. Outras, eu quero mesmo é que a terapia me ajude a esquecer.

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Início da tarde do dia 26 de novembro de 2010, Vila Cruzeiro, Complexo do Alemão. Vivíamos um clima de guerra no Rio de Janeiro, com atentados por toda a cidade. Na redação, os olhos fixos na tevê enquanto as imagens mostram uma quadrilha fugindo por uma trilha no alto do morro. Não houve troca de tiros e praticamente nenhum bandido foi preso. Uma atuação exemplar do Bope, diziam os especalistas em segurança pública. Mais uma comunidade pacificada. Mais uma UPP instalada e o discurso inflamado de orgulho dos nossos políticos.

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Início da manhã de sábado, dia 4 de junho de 2011, Quartel General do Corpo de Bombeiros, em frente ao Campo de Santana. Desde a noite anterior mais de mil bombeiros haviam invadido o quartel em protesto por melhores salários. Eles também reivindicavam por melhores condições de trabalho e queriam ser recebidos pelo comandante-geral da corporação. A insatisfação dos bombeiros, que sempre contaram com a aceitação da população carioca, já não era novidade há meses e o clima entre eles estava, com perdão do trocadilho, pegando fogo. O estopim da crise foi a invasão do quartel. Madrugada tensa, helicópteros sobrevoavam a área, mulheres e crianças também estavam no local, sem dormir, com frio. Amanhece. O Bope, que em suas incursões "pacíficas" às comunidades do Rio de Janeiro, dificilmente prende um traficante, cerca o quartel e prende os manifestantes de uma corporação que sempre foi parceira da polícia militar do Rio de Janeiro.

Mesmo que eu passe o resto da minha vida na terapia, nunca vou esquecer a imagem daqueles mais de 400 bombeiros humilhados, chamados de vândalos pelo governador, rendidos e cercados pelos policiais do Bope. Assim também como nunca mais vou esquecer os bandidos em fuga na Vila Cruzeiro, que escaparam sob os olhares daqueles mesmos policiais.


Que Deus esteja com eles e que Reich esteja comigo.

Amém!

quinta-feira, 26 de maio de 2011

O lado ruim




Armaduras,
Músculos atrofiados,
Defesa,
Frieza,
Distância,
Altos e baixos.

Desencontros,
Diferenças,
Incertezas,
Saudades,
Proibido,
Beijos e abraços.

Tesão,
Pele,
Pelo,
Poros,
Suor,
Um puta cansaço.

Encontros,
Certezas,
Promessas,
Calor,
Cigarro,
Só mais um trago.

Cinema,
Romance,
Um livro,
Um drama,
A comédia,
A complexidade humana.

A dúvida,
A prece,
Depressa,
Esquece,
Desaparece,
É preciso ter fim?

Sofre,
Chora,
Grita,
Berra,
Entristece,
O amor tem um lado ruim.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Dark room




Ele só percebeu que estava preso naquele quarto escuro horas mais tarde. Pior ainda: foi como se depois dos quarenta anos só fizesse sentido somente a partir dali, daquele ponto em que se deu conta de que estava preso. Pés e mãos atados. Os olhos vendados, a boca amordaçada. Ficou paralisado, consciente de que não teria mais como fugir de si mesmo. Lembrou da sua terapeuta e das massagens que ela fazia nele após as sessões semanais de tortura mental. Era uma espécie de alento após a dor profunda. E para ele nunca fora fácil expor as suas dores, muito menos reconhecer que a vida não era feita somente de amores. Ele já não era tão jovem, mas conservava os sonhos e os ideais que considerava os mais justos.

Que melhores armas ele poderia ter para enfrentar as batalhas do dia a dia, senão acreditar no amor e na justiça?

Não que ele já não tivesse experimentado as lágrimas. Claro que já. Mas não havia sobrado mácula, mágoa, ressentimento. Nada. Sob a redoma da ingenuidade, conscientemente ou não, ele se resguaradava, ele se protegia. Para apagar de vez um gesto mais ríspido, bastava-lhe um sorriso de bom dia e o de ruim que tivesse acontecido ficava no passado. Não precisava nem de desculpas.

Ele era feliz assim, mas não sabia.

Foi mais tarde, bem mais tarde que ele soube que a vida tinha um lado frio e cruel. E não foi preciso que mãe ou pai morressem ou algum outro tipo pior de desgraça para ele entender que cada um traz consigo as suas próprias tragédias. Elas permanecem feito código genético, passam de geração em geração, são como marcas perenes da existência humana. E não há nada que se possa fazer quanto a isso. A não ser enfrentá-las sem medo de encarar a dor.

Completamente nu, deitado naquele chão frio e sujo, o ar pesado, o cheiro de urina misturado ao mofo e à umidade das paredes. Um cenário triste e até mesmo assustador. Não havia barulho lá fora. O silêncio era tanto que ele conseguia ouvir o ritmo descompassado do seu batimento cardíaco, o que o perturbava ainda mais. Sua voz não existia, quase não conseguia se mover, sequer enxergava um palmo a sua frente. O simples ato involuntário de respirar era sacrificante. Era como se puxasse o ar e o ar não viesse. Asfixiante.

Por que, meu Deus, aquilo tudo?

Não conseguia supor quem o abandonara ali. Com o passar das horas e dos dias aquele alguém era o que menos importava. Quem era ele? Sentir sua carne apodrecendo e aquele odor insuportável de excrementos ao seu redor, mais a cabeça que não parava de latejar e pensar um só instante, já eram passatempos que bastassem. Enquanto isso, tudo mais se desfazia. Aquele que um dia ele fora se dissolvia, escorria pelo ralo sujo do destino sem volta. Feito a morte.

Mas ela não vinha.

Durante anos ele permaneceu trancado naquele quarto escuro sem que ninguém soubesse. E durante todo o tempo ele tentou sair dali. Nunca desistiu. Mas ninguém nunca percebeu nada.

A vida é mesmo um vai e vem de cegos.

quinta-feira, 5 de maio de 2011

A beira do cais





Ainda ontem mesmo mergulhei no mar
Sem sequer me importar com a maré das incertezas.
Nadei sem perceber onde ia dar a correnteza
E deixei-me levar pelas ondas que inundavam minha vida.

Foi ali que eu vi que eu já não era mais aquele que um dia eu conheci.

Ainda ontem mesmo fiz de mim um oceano
E entendi que a água só passa pela areia porque a areia deixa a água passar.
Então o que era grão em mim se desfez
E o que era sujo eu deixei lavar.

Foi ali que eu vi que eu já não era mais aquele em quem um dia eu me reconheci.

Porque ainda ontem eu era o náufrago de mim mesmo.
Feito um barco sem âncora que ruma ao sabor do vento
Eu também deixei o vento me soprar ao encontro da arrebentação.


Ainda ontem eu era só mais um corpo à deriva.

Ainda ontem.

Hoje não mais.

Agora vejo o menino no horizonte e da minha proa já consigo encostar a beira do cais.

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Para o meu neto Kadu, que acabou de nascer.

sexta-feira, 29 de abril de 2011

A travessia





Para quem teve a oportunidade de viajar, o feriado da Semana Santa este ano não poderia ter sido melhor. O sol e o calor civilizado de outono abençoaram ainda mais o significado daqueles dias. Este ano não viajei, não fui à igreja e nem acompanhei a procissão, como é de costume. Na sexta-feira da Paixão eu estava de plantão no jornal e com a missão de preparar o peixe para o almoço da família. No dia anterior, além de ter sido aniversário do meu filho mais velho e chá de bebê do meu neto, eu, Claudia e Rosa, amiga de longa data, emendamos a noite num show e depois numa outra festa. Dançamos e nos divertimos até as três da manhã, coisa que não fazíamos há anos. Resultado: acordei tarde e perdi a hora da missa.

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Eu já contei aqui que plantão é uma coisa pra lá de horrorosa que acontece na vida de todo jornalista uma vez por mês, não é? Plantão em pleno feriado consegue ser pior ainda, acredite. Por sorte, este meu plantão na Semana Santa foi tranquilo. Sem terremotos e tsunamis no Japão, sem guerra do tráfico, sem visita de presidente norteamericano, sem enchentes ou deslizamentos. Tudo correu na santa paz. A notícia que mais me mobilizou foi a de que Rosinha Garotinho, prefeita de Campos, cidade de meus avós maternos, teria sido expulsa do PMDB. Mas o que me chamou a atenção não foi o fato de ela ter sido expulsa do partido, mas sim porque a expulsão havia ocorrido há três dias e ninguém, até então, noticiara. Teria Rosinha Garotinho perdido a importância para a política nacional?

Fica aqui a pergunta.

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Segunda-feira pós-feriado. O céu está nublado, as horas se arrastam no jornal, nada acontece em Brasília, não sabemos nem se teremos manchete e eu crente que vou sair no meu horário habitual. Afinal, é segunda-feira, a capital federal está um marasmo que só, nossos políticos ainda não voltaram do final de semana prolongado e as notícias só falam sobre o número de mortos nas rodovias federais. Depressão é pouco.

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A natureza, vendo aquele cenário triste de jornalistas em busca de um fato realmente relevante para publicar, resolveu que estava na hora de providenciar uma chuvinha. E já que o sol reinou toda a Semana Santa, mandou logo um temporal que é para não deixar dúvidas da sua força. Em poucos minutos, a área da Tijuca, Maracanã e Praça da Bandeira virou uma enorme banheira e o trânsito, um verdadeiro caos. Em questão de segundos o clima na redação era outro. Olhos arregalados. Uma certa tensão no ar. Alguém lembrou que foi justamente na segunda-feira após a Páscoa do ano passado que outro temporal havia arrasado com a cidade.

- Coincidência - eu disse.

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Estava preocupado em adiantar meu trabalho e torcendo para que a chuva desse uma trégua para eu poder voltar para casa. Mas nada aconteceu como eu gostaria naquela noite e só saí da redação às duas da manhã, quando os motoristas que conseguiam voltar para o jornal disseram que tinha um caminho em que os carros poderiam passar. Era só seguir pelo viaduto São Sebastião até o Santo Cristo, contornar o largo à esquerda, entrar na primeira à direita, ir em frente, passar nos fundos da rodoviária, virar de novo à esquerda e subir o viaduto da Francisco Bicalho. De lá, decidir se vai pela Quinta da Boa Vista ou pela Linha Vermelha e depois, Linha Amarela.

Foi o que eu fiz.

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Fora dois bolsões dágua nos fundos da rodoviária, fui bem até chegar ao viaduto da Francisco Bicalho, onde encontrei o trânsito completamente parado. A pista da esquerda, a que eu estava, tomada por ônibus e caminhões enormes. Lá embaixo, uma infinidade de faróis prestes a boiar nas águas podres do Canal do Mangue me fez pensar no apocalipse. Ao meu lado vejo passar uns fotógrafos, todos atrás das melhores imagens. A chuva aperta. Não perdoa. Percebo o tempo passar quando o cd do Marcelo Jeneci chega ao fim. Assim como na canção, eu também estava longe. De repente, a pista da direita começa a andar. Sem pensar duas vezes, embiquei o carro, consegui uma brecha e segui o fluxo para ver onde ia dar. A pista para quem ia pegar a Linha Vermelha ficou livre e eu fui com a cara, a coragem e a certeza de viver numa cidade despreparada.


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Páscoa, do hebraico Pessach, quer dizer passagem, travessia. Eu, que até então não tinha me dado conta de que a Páscoa se fora, lembrei disso assim que pisei em casa, depois de ter cruzado a cidade de madrugada e debaixo daquele temporal.




Que venha, agora, a renovação.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Indispensável


É preciso celebrar a vida.
Deixar-se levar pelas tardes de outono.
Apaixonar-se na luz de cada esquina.
Embriagar-se de amor.
Revelar-se.

Fotografar o ângulo mais bonito.
Registrar o que jamais foi dito.
Nunca deixar de tentar.
E amar.
Sobretudo amar.

É preciso.

Não tenha medo. Tente.
Alimente seus desejos mais nobres.
Sacie todas as suas vontades.
Encha o peito de amor.
Experimente.

Depois, respire fundo.
Aquiete-se.
Volte-se para o seu silêncio.
Só então solte o ar.
Bem devagar.

Num mesmo ritmo.
Repetidas vezes.
Incessantemente.
Sem parar para pensar.
Porque a vida é precisa.

Indispensável é o amor.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Eu só sei fazer poesia


Ainda bem cedo percebi que tem gente que não sabe doar.
Só mais tarde me dei conta que eu também não sabia.
Eu não soube lidar.
Eu não soube sequer entender o que eu era.
Quisera eu compreender.
Quem dera.

Algum tempo depois aprendi que é preciso dividir para multiplicar.
E me troquei por mais de mil pedaços.
Distribuí salivas em milhões de beijos.
E me perdi na conta e no suor dos seus abraços.
Até me juntar por inteiro.
E de novo repartir.

Incessantemente.

Misteriosamente então parti.

Furiosamente me joguei sem saber por onde ir.
Silenciosamente vi a ciranda que não para.
Eu entrei na roda, eu rodei na gira.
Eu virei criança.
Recriei versos com as rimas que eu trazia da minha infância.
Eu me reconhecia.

Era eu ali.
Bem perto.
No sentido daquelas palavras.
No arfar daquele peito.
No eco de tantas vozes.
Por dentro, por fora e ao redor de mim.

Porque eu só sei fazer poesia.

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Parece loucura


Já faz algum tempo e eu passava ali pela Fonte da Saudade quando vi uma cena que nunca me saiu da cabeça. Era final de uma manhã ensolarada. Destas em que a palheta de cores que nossos olhos refletem fica muito mais intensa. Nas manhãs ensolaradas o tempo também anda bem mais devagar.

Foi em câmera lenta que eu contornei o largo em direção ao engarrafamento que me levaria ao Humaitá quando, à minha esquerda, um grupo de meninas com no máximo nove anos de idade, com uniforme de escola pública, atravessava a rua, em fila indiana. A professora ia na frente e atrás dela aquelas meninas - umas dez, talvez - com praticamente a mesma altura e todas, sem exceção, com mochilas nos mais variados tons de rosa nas costas. A professora, inclusive.

Aquelas meninas estavam felizes naquela manhã. E eu também.

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Tenho acordado cedo estes últimos dias. Muito por conta da criançada que desde às 7h começa a chegar ao colégio que tem bem ao lado do meu prédio. Tem um menino - um dia vou descobrir o nome dele - com o tom de voz acima do que é permitido por lei, que vive aos berros. Já consegui descobrir que seus melhores amigos são a Camila, o Igor e o Bernardo de tanto que ele grita seus nomes. Acho que ele gosta da Camila, mas a Camila gosta do Igor, que não gosta dela. Já o Bernardo, eu não sei. Só sei que tenho acordado cedo por conta do movimento no colégio ao lado.

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Aí, levanto, leio o jornal, dou um giro na internet. Nunca como nada de manhã. Não consigo. No máximo bebo um suco. Segundas e quartas os professores de violão e desenho dos meus mais novos amanhecem lá em casa. Nos outros dias, eles dormem até mais tarde. Os meus filhos. Os professores, eu não sei. Nunca ligo a TV pela manhã. Nesta quinta-feira, sabe-se lá por que cargas dágua, eu liguei.

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As cenas de um massacre numa escola americana que tanto me impressionaram há alguns anos já estavam escondidas no meu baú de lembranças ruins. Os filmes Tiros em Columbine e Elefante também. Não poderia imaginar que, ao ligar a TV na manhã daquela quinta-feira, todas aquelas cenas que eu pensava ter esquecido voltariam à tona. Eu só queria ver se a Ana Maria Braga - e daí? - ia fazer alguma receita que valesse a pena. Só isso. Mas Ana Maria e seu inseparável Louro José estavam conversando com uma menina que havia sofrido bullying - o tema da moda - na escola. A mãe, costureira, achava que a filha sofria preconceito por ter vindo do interior do Paraná.

- Lá no interior do Paraná, de onde nós viemos, nós temos o sotaque carregado mesmo -justificava a mulher, com todos os "esses e erres" bem torcidinhos, antes de ser interrompida por uma chamada do plantão do RJ TV.

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Uma escola municipal na Zona Oeste do Rio de Janeiro havia sido invadida por um bandido. A única informação era que tiros foram disparados dentro da escola e a sensação de que alguma coisa muito grave estava acontecendo por lá. Olhei pela janela do meu quarto e vi cruzar no céu nublado dois helicópteros. O barulho que eles fizeram despertou a ira do meu vira-latas, que deu o ar da graça na varanda. Meus filhos continuavam dormindo, minha mulher tinha levado meu sogro para fazer exame de sangue, e eu ali na cama, com a TV ligada e as imagens de um crime sem precedentes invadindo a minha manhã e contaminando todo o meu dia.

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Saí do quarto, tomei meu banho, me arrumei e corri para o Largo do Machado. Desde a semana passada eu tinha marcado um compromisso que me tomaria todo o início da tarde. Fui ouvir que preciso aprender a falar francês, que tenho de levar meus textos a uma editora, que necessito urgentemente voltar a fazer exercícios físicos e que, ora bolas, a Claudia era a mulher da minha vida. Ouvi também que não sou filho do meu pai, que minha mãe só veio aqui para me encontrar, que não posso nunca usar acento no meu nome, que meu filho mais velho já foi filho da minha mulher e que eu só fiz 18 anos em 1995. Portanto, só tenho 34 anos e não 42. Parece loucura.

Naquelas duas horas eu ouvi muita coisa. Mas nada a respeito da louco que invadiu o colégio em Realengo e matou 12 crianças inocentes.

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Cheguei na redação mais cedo que de costume naquela quinta-feira. Clima pesado. Todos, cada um a seu modo, chocados com as notícias que, infelizmente, teríamos de publicar. A editoria Rio precisando de reforço, as pautas que não paravam de surgir, as histórias dramáticas daquelas vidas interrompidas, a impotência de nossas autoridades, o choro da nossa presidenta, o desespero dos pais que perderam seus filhos e em mim a certeza de que sou de outro planeta.

Eu estava triste e tinha a sensação de que todo mundo também estava.

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- Agora vai todo mundo achar que só porque você é tímido, retraído, que gosta de ficar sozinho e que passa horas na Internet, que você é louco, me disse um amigo, no dia seguinte à tragédia.

- É um risco que não corremos sozinhos, respondi. Respondi também que outros fatores deveriam ser observados e que se analisássemos a fundo história de vida daquele rapaz que invadiu a escola e que disparou contra os alunos poderíamos encontrar algumas explicações. Só não iríamos encontrar uma coisa: amor.

- Ou a gente ama ou a gente enlouquece, eu falei.

E aquela brutalidade toda, naquela escola em Realengo, naquela manhã nublada de quinta-feira... meu Deus, que loucura!