quarta-feira, 31 de maio de 2017

Despir-se

Noite adentro, lua crescendo lá fora, umas nuvens rabiscando o céu, e ele lá, daquele jeito, coração acelerado, aquelas lembranças todas. As mais recentes. As mais remotas. As festas de família na casa da avó e as poucas palavras que trocou a vida inteira com o avô. As cadeiras na calçada, o perigo que era a linha do trem, o posto de gasolina Atlantic bem na esquina e o cheiro de óleo queimado que vinha de lá.

Eram sempre umas histórias mal contadas, meias palavras, coisas que crianças não precisavam saber. Tabus, amores, a música de Keith Jarrett, o cheiro bom do sexo, o vício desnecessário do cigarro, as tardes cinzas de inverno e a mente a misturar-lhe o antes, o agora e o depois.

Parecia loucura.

Ele, então menino, já percebia aquela coisa toda. Desconfiava de que tudo era parte de uma correnteza perene daquele que era rio - e que era ele mesmo o próprio rio - desaguando, cedo ou tarde, caudaloso, em brancas páginas de papel.

Bastava-lhe só um sopro, e a inspiração, que é feito brisa, muitas vezes se transformava em vendaval. Um vento ensurdecedor, que derrubava todas as árvores, que agitava todas as ondas, que escancarava as portas, invadia as casas, levantava a poeira, levava todas as roupas do varal.

E ele ali, agora homem, a pisar descalço nesse chão sagrado, completamente nu, revelado em rima, em verso, em prosa, em coisa e tal.

Escrever é se despir.

quarta-feira, 24 de maio de 2017

Essa coisa toda

sei lá...
é um aperto que dá.
é um nó no meu peito,
uma falta de ar,
um país às avessas,
essa sede,
essa fome,
essa ira,
essa sujeira toda
e a saudade que eu sinto do mar.