sábado, 28 de maio de 2016

A prisão nossa de cada dia

Ele encontrou comigo já passava da meia-noite. Fazia frio, eu estava indo para casa, com fome, cansado e tudo o que eu não queria era bater papo aquela hora. Mas ele deu cara comigo na esquina da minha rua e veio logo puxando assunto, falando com aquele timbre de voz alto, acelerado, meio fora do tom e aquela mania insuportável de pegar toda hora no meu braço. Na verdade, ele era sempre assim e eu também era sempre o chato que nunca estava a fim de nada. Minha timidez já há muito que se confundia com falta de educação eu não me importava mais com isso. Fato. Só que algumas pessoas ou se faziam de desentendidas ou não estavam nem aí e me atropelavam com conversas que pouco me interessavam. 

Ele era uma dessas pessoas.

Me contou que estava indo embora, que não estava mais aguentando tudo aquilo, que por muito tempo ele andou sufocado, um ar pesado invadia seu peito e aquelas palavras todas a embaralhar sua cabeça. Confessou que não conseguira assimilar tudo o que ocorreu na sua vida nos últimos meses, tantas perdas, um labirinto esquisito, uma saudade doída, uma casa desfeita, uma vida vazia. Amigos desempregados, um dia-a-dia difícil, um país de pernas para o ar e ele ali, se sentindo sozinho e ouvindo dele mesmo que ele estava preso às suas escolhas.

- Eu não escolhi isso, juro que não, ele repetia.

Ficava nervoso porque nem escrever ele conseguia mais. Estava com dois livros praticamente prontos, faltava só editar, tinha outras tantas poesias guardadas, uns contos e alguns rabiscos.Eram esses os seus pertences mais valiosos. Mas não terminava o que tinha para terminar. Era como se os dias não rendessem, se arrastassem e junto vinha a preguiça, a letargia e a depressão. Há tempos ele abandonara tudo e, sem sentir, foi se afastando daquele que um dia ele fora. Disse que estava difícil se reconhecer e que aquela confusão toda o deixava cada vez mais atormentado.

 - Por que isso?, ele perguntava.

Num rompante, bateu com força no peito, olhou nos meus olhos, apontou para o seu coração e me revelou que algumas cicatrizes nunca fecham e que as dores são eternas, assim como algumas lembranças que teimam em nos visitar. Eu precisei concordar. Também me sentia assim muitas vezes. Eu, na minha solidão, no meu isolamento consciente, brigava silenciosamente com meus bloqueios, na tentativa de enfrentar o que preciso fosse. Eu me enfrentava a todo instante. Várias vezes eu esmorecia. 

Ele também.

Foi quando as luzes do poste se apagaram que ele se despediu de mim. Apertou minha mão com força, me deu um abraço demorado, tirou do bolso um pedaço de papel dobrado - era um bilhete - e me entregou. Sussurrou alguma coisa em meu ouvido que eu não consegui entender. Uma ambulância cruzou a rua, uma sirene ensurdecedora, e ele desapareceu na sombra avermelhada daquelas esquinas. Quando dei por mim, eu estava sozinho outra vez. 

Eu e meu silêncio.

Fui caminhando para casa devagar, enchendo meus pulmões com o ar gelado de um inverno que já se aproximava. Na minha mente, uma vastidão de pensamentos. Deu uma vontade de chorar, apertei os olhos, respirei fundo e segui em frente. Na minha mão direita, as chaves. Na esquerda, o bilhete ainda dobrado que ele havia me dado antes de sumir. Abri para ler. Havia uma frase apenas.

LIBERTE-SE.

Assim mesmo, em letras garrafais.

     


terça-feira, 24 de maio de 2016

Sem saber

Ainda ouço o grito dos aflitos
e o eco que se forma no vazio que há em mim.
Às vezes sou como a sombra mal projetada na parede úmida,
a linha mal escrita no papel barato,
a ferida na carne escura que teima em sangrar meu peito.

É quando tudo dói.

Eu vejo todos os meus abismos e cerro os olhos.
Aqui dentro é só escuridão e eu sinto medo,
Fico mudo, quieto, estou nu pelo avesso
E já não entendo nada muito bem.
Nem eu nem você.

Nem ninguém.

Os verbos que já não conjugo,
O versos que me abandonaram,
As frases feitas que eu esqueci,
O rumo que se perdeu.
E eu continuava ali.

Sem saber por quê.