terça-feira, 26 de março de 2013

Agora folha

Os ventos de outono me espalharam feito eu fosse folha de amendoeira amarelada que cobre todo o chão das ruas da cidade quente. Não adiantou gritar que sou gente, que eu não queria, que eu não esperava. Foi um grito estridente, amedrontador. Voei solto pelo ar que sujava meu rosto de fumaça e pó e ninguém viu. Só eu mais uma vez sozinho me dei conta de que as estações vão e vêm e trazem todas as certezas de que o mundo é mesmo um palco único, um teatro absurdo, um drama, uma comédia perdida entre esquinas que se cruzam e é preciso rir de si mesmo. Não há marcações, não há direção. É tudo um foco de luz apenas. Apaga-se o dia ou acende-se a noite entre as brisas frescas que surgem do nada, enquanto a plateia assiste atenta ao que se passa aleatoriamente. Há o silêncio, a pausa no texto, a descoberta da personagem inquietante que eu represento sem saber. 

-Onde está você?

Quando o outro se aproxima é então que mais me apavora. O não saber de nada, o desconhecido que me incinera o peito e arde a sua chama certeira na cicatriz que me revela, a marca que fica em minha pele suada, carne crua de poros úmidos que ainda implora suas mãos. Tudo o que eu espero é a verdade escrita, falada pausadamente em meus ouvidos, porque de resto em minha mente é só confusão. E eu peço tanto por dias mais tranquilos, aguardo ansiosamente por sopros de felicidade, sonho com gestos mais simples, imploro sorrisos mais sinceros, abraços mais apertados. 

Saudade é o que me invade nessas horas.

Olho pela janela do meu quarto e minha rua está vazia. A vizinhança dorme o sono que eu não encontro e vejo gatos pardos tropeçando nos telhados das casas apagadas, insetos que insistem em se queimar na luz pálida do poste alto que ilumina o rastro do que fica daquele que já não passa, que jaz na hora exata em que o meu relógio para. Eu me dou conta que não preciso do tempo, que meus músculos já perderam o tônus, que meu coração bate desaceleradamente e eu nem sei bem ao certo o que deixei escorrer entre meus dedos há poucos minutos. Quisera eu ter certezas absolutas, encontrar as palavras certas, as frases mais bonitas que escrevi e não sei onde guardei o bilhete de amor que eu deveria entregar àquela que me fez companhia todos esses anos.

- Talvez ela nunca entenda, eu sei.

Ainda há pouco mesmo era verão e todo aquele calor e eu me refrescava nas águas claras da montanha entre pedras e riachos que me inundavam e massageavam meu corpo que continua o mesmo, muito embora eu agora seja outro. O outro que eu não conhecia muito bem, mas no fundo sabia que existia. Foi preciso a ventania e os ventos da nova estação que me espalharam feito eu fosse folha. Sequer entendi por que caí e me deixei levar. Sob o céu azul e cintilante deste outono que hoje se anuncia eu sou quase todo incertezas. 

- Onde será que eu, agora leve feito folha, vou parar?      

sexta-feira, 1 de março de 2013

Ele já sabia

Foi quando ele me disse que se sentia honrado em ter me conhecido que me dei conta do quão nobre era tudo o que eu estava vivenciando naqueles últimos dias. Tentei fazer com que ele entendesse que era como se meu peito se expandisse, como se minha caixa torácica tivesse se transformado num balão de gás, desses que você sopra até quase estourar. Confessei-lhe que desde aquele encontro eu vivia deixando-me corroer pela ansiedade, tinha como companheiras a saudade e uma agitação maior que as de costume. Que os dias me pareciam mais curtos, relógios de horas encolhidas, e que o silêncio fazia das minhas noites companhia. Fiz questão de dizer-lhe coisas que jamais disse a ninguém. Me expus. Me revelei. Me deixei desenhar por suas mãos e só então, depois, em seus traços, foi que me reconheci.

Era como seu eu não tivesse existido antes, como se meu passado pouco importasse, página em branco, zero à esquerda, como se nada que eu vivera até então tivesse muita importância. O que verdadeiramente valia era dali para frente, aquele mundo de possibilidades que se apresentava agora. Não que ele fosse obrigado a me fazer companhia eternamente, a caminhar comigo por todo o sempre, forçar juras infinitas. Muito pelo contrário. Tínhamos, isso sim, firmado um pacto de felicidade, e a liberdade era a condição maior para a expressão do que estávamos experimentando juntos nessa vida. Não sobrava tempo para cair em armadilhas, emaranhados, redutos de tristeza, eu sabia. Ele também me dizia que não era hora para se ter juízo e que era preciso um pouco mais de loucura e coragem para ser feliz. Aspectos que eu tinha de sobra.

Eu cheguei a contar-lhe que nós éramos um o rascunho do outro e que a sombra dos nossos corpos que surgia na parede daquele quarto mais parecia o contorno da luz refletida a preencher todos os espaços. Lembro de uma vez tê-lo escrito dizendo-lhe que o meu mundo ao lado dele parecia bem melhor. Era como se a armadura que vesti durante tantos anos se desmanchasse e trouxesse à tona meus conflitos mais internos, minhas dúvidas transformando-se em certezas, e o peso que eu outrora carregava se fizera leve como as palavras mais bonitas que saíam de sua boca em minha direção.

A surpresa me pegou naquela noite, confessei-lhe. Nunca acreditei nessas histórias que me contavam sobre tudo o que envolve o coração. Pensava eu e meus botões: comigo não! O meu coração batia tão sossegado, adormecido, já meio que acostumado com a anestesia contaminada do dia a dia, amnésia de um cotidiano sem graça, sem novidades, só a mesma ladainha, enquanto tudo em volta era solidão. Guardava meus versos polidos em fundos de gaveta, junto a outros escritos que eu já me esqueci. Eu tinha todas as minhas chaves, trancava muito bem todos os meus segredos, cultivava com apreço certos medos, manias, esquisitices, até que ele apareceu e me disse que se sentia honrado, como eu já contei aqui antes.

Porque ele já sabia o que era o amor. O meu acabava de tomar forma naquele exato instante.