sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Um silêncio ensurdecedor

A última coisa que ele ouviu foi um grito agudo, histérico, estridente, inquietante. Daqueles de pavor. E então veio a náusea, o vômito, o desespero e aquela dor que estourava-lhe os tímpanos. Era cedo ainda. Não passava das sete da manhã de um dia quente de verão no subúrbio esquecido e maltratado do Rio de Janeiro. Chegou na janela. Não havia uma única nuvem no céu. Lá embaixo, a fila no ponto final do ônibus da linha Abolição-Copacabana era de dobrar o quarteirão com as barracas de praia e os chinelos de dedo e as pranchas de isopor e os sanduíches de pasta de sardinha com pão dormido esperando por um lugar ao sol.


No botequim da esquina, o cheiro de café fresquinho e os ovos coloridos no balcão atraíam a fiel clientela. Um coroa de cabelos grisalhos e olhos fundos de desesperança tirou do bolso da camisa azul displicentemente abotoada umas poucas moedas. Parecia pedir um trago, um gole de cachaça àquela hora, mal começava o dia. Sem esboçar qualquer reação, o cearense que trabalhava no boteco sabe-se lá há quantos anos, esticou o braço, pegou um copo, desses de geleia, entornou uma dose generosa da mais pura aguardente, recolheu uma xícara no tempo exato em que o coroa bebia de um só gole a pinga, serviu outra dose e deixou a garrafa ali por perto. Até que o tal coroa pegasse o ônibus, mais duas ou três doses seriam servidas. E outras tantas xícaras de café e não sei quantos pães na chapa. E cigarros, muitos cigarros. O cearense não entendia como aquelas pessoas conseguiam fumar tanto logo pela manhã.


Do alto daquela janela, ele, que já não conseguia escutar mais nada, sequer entendia o que estava acontecendo. O mundo externo havia se calado. Não havia as buzinhas, as freadas, os apitos, os latidos do cachorro da vizinha ao lado ou a música do radinho de pilha do faxineiro que recolhia o lixo no corredor. Nada. O único barulho que ele ouvia era o que sua mente cismava em fazer. Fruto da confusão mental que lhe tirava o sono e transformava suas noites um suplício interminável. Era quando teimava em dizer para si mesmo as verdades que ele considerava absolutas, incontestáveis, imutáveis. Então vinha a verborragia, a discussão, muitas vezes agressiva. Chegava mesmo ao ponto de partir para a briga sem argumentar o que estava certo ou errado. Pouco importava quem tivesse razão. Porque não havia ninguém. Muito menos razão. Era só ele ali naquele apartamento.


Quando se deu conta de que poderia ter ficado surdo veio junto o desespero. Tentou gritar, pedir socorro, mas teve a nítida impressão de que ninguém poderia ouvi-lo. Nem os que estavam na fila do ônibus, nem o cearense do bar, nem a vizinha ao lado e muito menos o faxineiro que recolhia o lixo. Ouviu um riso sórdido vir de dentro dele, como uma gargalhada debochada, destas que nos pegam de surpresa e nos deixam sem reação. A garganta parecia apertar, chegava mesmo a doer, e a voz não saía, não reverberava. Apenas um leve murmúrio, feito um lamento, não sei. Ele também não sabia.


Foi quando debruçou no parapeito e chorou copiosamente. Soluçava forte, feito criança desamparada que acabou de levar uma surra. Ele erguia os braços pesados, gesticulava, balançava a cabeça para cima e para baixo num ritmo eletrizante e procurava olhar para o alto, tentando fixar o olhar no infinito, como se implorasse por ajuda divina. Uma tortura. Dava pena de ver. As lágrimas escorriam molhando toda a face, a barba por fazer, o peito desnudo, o cheiro de suor da noite que passou acordado e todo aquele silêncio ao redor. Como se o mundo já não tivesse mais nada a lhe dizer. Ficou então parado, imóvel, até conseguir se acalmar, até que seus batimentos cardíacos voltassem ao normal. Um sopro de vento levantou as cortinas e o fez sair da janela. Voltou para a sala, acendeu um cigarro, leu uma ou duas notícias no jornal. Só desgraça, pensou. Esticou o corpo cansado no sofá, fechou os olhos, mas não conseguiu dormir. Apesar de todo o silêncio que fazia lá fora.


É que dentro dele algo continuava gritando.

Um comentário:

  1. Fazia tempo mesmo que eu não aparecia por aqui. Correria desses tempos digitais. Mas sempre bom passear pelos teus textos! Grande abraço

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