Era sexta-feira e já passava das três da tarde quando eu cheguei na gare da Central do Brasil. O movimento me pareceu maior do que o normal para o horário. Muita gente se espremendo em enormes filas antes das catracas. Não pensei duas vezes e dei um jeito de me espremer também. Eu estava cansado e queria chegar cedo em casa. Calor. Sede. Fome. Sono. Muito sono.
O painel eletrônico informava que o parador para Bangu sairia às 15h16 da plataforma 4 D. Tive de correr para não perder o trem, que estava cheio. Tudo bem. Da Central ao Méier são apenas 15 minutos e eu já havia ficado a manhã toda e o começo da tarde sentado na redação. Precisava fazer meu sangue circular. Um dos milhares de vendedores ambulantes que ficam num vai-e-vem entre os vagões gritava ao meu lado que o tal picolé moleca é o que tem melhor sabor e melhor paladar. Nunca tive coragem de comprar nada dentro do trem. Segundos antes de partir um segurança da Supervia entra no vagão com um cego pelas mãos. "É o parador para Bangu"?, o ceguinho perguntou . "É sim", respondeu uma mocinha, que foi logo levantando e cedendo seu lugar para que o cego sentasse. Ao lado da tal mocinha estavam dois rapazes, de olhos bem abertos, mas que se fizeram de cegos, surdos e mudos para não notarem a gentileza da moça. Sentados estavam, sentados ficaram.
Assim que o trem fez sinal de que ia partir, uma mulher com um semblante sofrido conseguiu correr e entrar no vagão com duas crianças que não deveriam ter mais de dois anos. Passou por mim a passos rápidos, mas pude notar que ela estava grávida de mais um. Conseguiu que um rapaz lhe cedesse lugar mais à frente. Tão logo o trem começou a andar, o menino, mais novo, fez que ia chorar. "Não é hora de manha", disse-lhe a mãe, num misto de firmeza e grosseria. O menino engoliu o choro, só que quem começou a chorar foi ela. Àquela altura eu já imaginava que a viagem até o Méier duraria muito mais que apenas os 15 minutos de praxe. Um silêncio constrangedor tomou conta do vagão e a história daquela mulher, que há quase dois meses devia o aluguel para uma tal de dona Ivete numa comunidade que eu não entendi bem qual era, passou a tomar conta da viagem. Ela dizia, aos prantos, que precisava arrumar R$ 170,00 até o final daquele dia e que só tinha conseguido R$ 40,00. Tinha saído cedo de casa com os filhos na tentativa desesperada de conseguir o dinheiro do aluguel. Ainda não tinham comido nada. Ela já não sabia mais o que fazer. Se voltasse para a comunidade sem o dinheiro do aluguel, o chefe do morro iria bater nela e expulsá-la de lá. "E os meus filhos"?, ela perguntava. "E os meus filhos"? A tal da dona Ivete já havia avisado ao tal chefe do morro que o prazo para que ela pagasse o que devia era aquela sexta-feira. É a lei do cão. Um horror.
Eu, que tenho ido ao Frei Luiz desde meados do ano passado, procurando um alento espiritual e ensinamentos que me deixem mais sereno, coloquei a mão no bolso e vi que tinha uns R$20,00. Na hora eu pensei nas facilidades que tenho em minha vida e nas vezes em que eu reclamo de barriga cheia. Aquelas duas crianças no colo daquela mãe desesperada me encheram de um sentimento que eu nem sei dizer ao certo qual foi. Lembrei dos meus três filhos e de todo o amor que eles têm, fora as facilidades materiais que a vida sempre lhes proporcionou. Saí de onde eu estava, fui até à mulher. Tirei todo o dinheiro que eu tinha no bolso e entreguei a ela sem dizer uma só palavra. Ela ergueu as mãos, pegou o dinheiro, me olhou no fundo dos olhos e agradeceu. Sem graça, meio que sem saber se eu deveria ter deixado que "minha mão esquerda visse o que fez minha mão direita", voltei para o lugar onde eu estava. Talvez aqueles R$ 20,00 não fossem resolver os problemas daquela mulher. E talvez não resolvessem mesmo. Mas tenho certeza que algo em mim estaria me perturbando muito mais até agora se eu não tivesse aquela reação de sair de onde eu estava e lhe entregar todo o dinheiro que eu tinha no bolso. "Eu tinha feito a minha parte", repetia para mim mesmo como um mantra.
Não demorou muito para que um rapaz, negro, de bermudas e chinelos, também fosse até ela com alguns trocados. Confesso que não reparei se muitas outras pessoas fizeram o mesmo. Creio que não. Estamos todos muito alheios ao que se passa ao nosso redor. Pouco nos importa o que acontece com o outro. Achamos tudo normal. Não sei se nos tornamos frios ou anestesiados diante de tantas mazelas, mas o fato é que essas histórias acabam se tornando comuns. Só que não deveriam ser. E não pense você que é pelo fato de eu estar escrevendo estas linhas, narrando esta história, que eu esteja me autoproclamando um ser superior, bonzinho, iluminado, ou o escambau. Nada disso. Eu faço parte desta massa que também anda às cegas por aí _ tal e qual o mito da caverna _, que não vê ou não quer enxergar que alguma coisa ainda pode ser feita para que o mundo seja um lugar mais bonito. Só que de vez em quando eu abro o olho.
P.S.: Pouco antes do trem chegar ao Méier, um rapaz, branco, vestindo uma camisa de corte moderno, e que estava bem na minha frente, terminava de beber sua água mineral. Foi só o trem abrir as portas para ele jogar a garrafa de plástico nos trilhos na maior cara de pau. "Este, além de cego, é porco", eu pensei.
P.S.: Pouco antes do trem chegar ao Méier, um rapaz, branco, vestindo uma camisa de corte moderno, e que estava bem na minha frente, terminava de beber sua água mineral. Foi só o trem abrir as portas para ele jogar a garrafa de plástico nos trilhos na maior cara de pau. "Este, além de cego, é porco", eu pensei.