sábado, 13 de março de 2010

Entre cegos e porcos


Era sexta-feira e já passava das três da tarde quando eu cheguei na gare da Central do Brasil. O movimento me pareceu maior do que o normal para o horário. Muita gente se espremendo em enormes filas antes das catracas. Não pensei duas vezes e dei um jeito de me espremer também. Eu estava cansado e queria chegar cedo em casa. Calor. Sede. Fome. Sono. Muito sono.

O painel eletrônico informava que o parador para Bangu sairia às 15h16 da plataforma 4 D. Tive de correr para não perder o trem, que estava cheio. Tudo bem. Da Central ao Méier são apenas 15 minutos e eu já havia ficado a manhã toda e o começo da tarde sentado na redação. Precisava fazer meu sangue circular. Um dos milhares de vendedores ambulantes que ficam num vai-e-vem entre os vagões gritava ao meu lado que o tal picolé moleca é o que tem melhor sabor e melhor paladar. Nunca tive coragem de comprar nada dentro do trem. Segundos antes de partir um segurança da Supervia entra no vagão com um cego pelas mãos. "É o parador para Bangu"?, o ceguinho perguntou . "É sim", respondeu uma mocinha, que foi logo levantando e cedendo seu lugar para que o cego sentasse. Ao lado da tal mocinha estavam dois rapazes, de olhos bem abertos, mas que se fizeram de cegos, surdos e mudos para não notarem a gentileza da moça. Sentados estavam, sentados ficaram.

Assim que o trem fez sinal de que ia partir, uma mulher com um semblante sofrido conseguiu correr e entrar no vagão com duas crianças que não deveriam ter mais de dois anos. Passou por mim a passos rápidos, mas pude notar que ela estava grávida de mais um. Conseguiu que um rapaz lhe cedesse lugar mais à frente. Tão logo o trem começou a andar, o menino, mais novo, fez que ia chorar. "Não é hora de manha", disse-lhe a mãe, num misto de firmeza e grosseria. O menino engoliu o choro, só que quem começou a chorar foi ela. Àquela altura eu já imaginava que a viagem até o Méier duraria muito mais que apenas os 15 minutos de praxe. Um silêncio constrangedor tomou conta do vagão e a história daquela mulher, que há quase dois meses devia o aluguel para uma tal de dona Ivete numa comunidade que eu não entendi bem qual era, passou a tomar conta da viagem. Ela dizia, aos prantos, que precisava arrumar R$ 170,00 até o final daquele dia e que só tinha conseguido R$ 40,00. Tinha saído cedo de casa com os filhos na tentativa desesperada de conseguir o dinheiro do aluguel. Ainda não tinham comido nada. Ela já não sabia mais o que fazer. Se voltasse para a comunidade sem o dinheiro do aluguel, o chefe do morro iria bater nela e expulsá-la de lá. "E os meus filhos"?, ela perguntava. "E os meus filhos"? A tal da dona Ivete já havia avisado ao tal chefe do morro que o prazo para que ela pagasse o que devia era aquela sexta-feira. É a lei do cão. Um horror.

Eu, que tenho ido ao Frei Luiz desde meados do ano passado, procurando um alento espiritual e ensinamentos que me deixem mais sereno, coloquei a mão no bolso e vi que tinha uns R$20,00. Na hora eu pensei nas facilidades que tenho em minha vida e nas vezes em que eu reclamo de barriga cheia. Aquelas duas crianças no colo daquela mãe desesperada me encheram de um sentimento que eu nem sei dizer ao certo qual foi. Lembrei dos meus três filhos e de todo o amor que eles têm, fora as facilidades materiais que a vida sempre lhes proporcionou. Saí de onde eu estava, fui até à mulher. Tirei todo o dinheiro que eu tinha no bolso e entreguei a ela sem dizer uma só palavra. Ela ergueu as mãos, pegou o dinheiro, me olhou no fundo dos olhos e agradeceu. Sem graça, meio que sem saber se eu deveria ter deixado que "minha mão esquerda visse o que fez minha mão direita", voltei para o lugar onde eu estava. Talvez aqueles R$ 20,00 não fossem resolver os problemas daquela mulher. E talvez não resolvessem mesmo. Mas tenho certeza que algo em mim estaria me perturbando muito mais até agora se eu não tivesse aquela reação de sair de onde eu estava e lhe entregar todo o dinheiro que eu tinha no bolso. "Eu tinha feito a minha parte", repetia para mim mesmo como um mantra.

Não demorou muito para que um rapaz, negro, de bermudas e chinelos, também fosse até ela com alguns trocados. Confesso que não reparei se muitas outras pessoas fizeram o mesmo. Creio que não. Estamos todos muito alheios ao que se passa ao nosso redor. Pouco nos importa o que acontece com o outro. Achamos tudo normal. Não sei se nos tornamos frios ou anestesiados diante de tantas mazelas, mas o fato é que essas histórias acabam se tornando comuns. Só que não deveriam ser. E não pense você que é pelo fato de eu estar escrevendo estas linhas, narrando esta história, que eu esteja me autoproclamando um ser superior, bonzinho, iluminado, ou o escambau. Nada disso. Eu faço parte desta massa que também anda às cegas por aí _ tal e qual o mito da caverna _, que não vê ou não quer enxergar que alguma coisa ainda pode ser feita para que o mundo seja um lugar mais bonito. Só que de vez em quando eu abro o olho.

P.S.: Pouco antes do trem chegar ao Méier, um rapaz, branco, vestindo uma camisa de corte moderno, e que estava bem na minha frente, terminava de beber sua água mineral. Foi só o trem abrir as portas para ele jogar a garrafa de plástico nos trilhos na maior cara de pau. "Este, além de cego, é porco", eu pensei.

terça-feira, 9 de março de 2010

Mea culpa


Estou em falta aqui com meu blog. Na verdade, sábado à noite sentei e escrevi um texto enorme. Na hora de postar digitei alguma tecla misteriosa e o danado do texto desapareceu. Eu havia escrito sobre meus demônios. Sim, eu tenho alguns, mas ando a fim de me desfazer deles. É uma tarefa pra lá de difícil, eu sei. Mas acho também que meus anjos da guarda, que me protegem e sempre me protegeram, não querem que eu dê muita atenção a eles, os tais demônios, e por isso mesmo fizeram o favor de sumir com o tal texto. De lá pra cá não tive mais tempo de me dedicar a escrever o que quer que fosse, afinal, tenho acordado às 5h30 da manhã, pois preciso estar no jornal às 7h em ponto por conta do online. Ou seja: estou que nem zumbi, num sono danado durante todo o dia. Só consigo escrever no jornal e assim mesmo porque as pautas surgem a cada cinco minutos na minha frente e ai de mim se não transformar cada pauta daquelas em notícia. Para completar ainda tem o caderno de artes onde uma vez por semana tem uma matéria minha. E das grandes, com entrevistas, fotos e tudo a que tenho direito. Espero conseguir dar conta.


Portanto, só vim aqui rapidinho, pra dar uma satisfação a vocês e a mim mesmo.


Eis aqui um mea culpa.

segunda-feira, 1 de março de 2010

Ler é o melhor remédio


Dias chuvosos são sempre estressantes para mim. Não gosto. Nunca gostei. E nem adianta aquela lenga-lenga de que o barulhinho de chuva caindo lá fora é uma delícia, um convite ao romance e à preguiça. Concordo apenas com a preguiça e muito por conta do transtorno que é sair de casa em meio àquela chuvinha incessante. Porque quando eu tenho a opção de ficar em casa em dias de chuva, eu fico. Sem traumas. Mas não esperem me encontrar debaixo de um edredom assistindo Sessão da Tarde. Isso nunca. Faz pelo menos uns 25 anos que não assisto Sessão da Tarde e, se não me engano, da última vez era um filme do Jerry Lewis. Eu achava muita graça nos filmes do Jerry Lewis. Hoje, não mais. Continuo gostando de filmes, claro. Mas prefiro ir ao cinema do que ver pela TV. Em casa eu prefiro um bom livro. Isso quando me sobra tempo, lógico. Afinal, vocês sabem que meus três filhos quase não me permitem um tempo livre para ler o que quer que seja. Jornal? Só bem cedo, antes mesmo dos mais novos acordarem.
Sempre gostei de livros. Desde muito pequeno, quando as gravuras e as encardenações eram o que mais me atraíam. Lembro que quando fiz oito anos minha tia Marília me deu um livro de presente. Era um livro grosso, de capa dura, com alguns desenhos e repleto de fábulas do Esopo, que só muito tempo mais tarde vim saber que se tratava de um escravo contador de histórias e que as tais fábulas nada mais são do que contos com moralidade popular. Mas isso é papo para outro post. O certo é que aquele livro que minha tia me deu ficou pra sempre registrado na minha lembrança como sendo o primeiro livro que eu tive curiosidade de ler. Depois vieram outros. Muitos outros. Desde então o hábito de ler nunca me abandonou.
Talvez o gosto pela leitura tenha sido o meu diferencial diante do mundo, já que nunca fui um aluno brilhante, daqueles que sempre se destacavam. A não ser pelas minhas redações, que sempre foram motivo de orgulho e de elogios, posso me considerar ter sido um aluno medíocre. Não gostava mesmo de estudar, tinha verdadeiro pavor de matemática e não entendia como alguns amigos e primos conseguiam ficar horas debruçados sobre um livro de física, por exemplo, tentando decorar todas aquelas fórmulas. Eu preferia me envolver pelos crimes que saíam da imaginação de Agatha Christie, pelos contos de Machado de Assis, pelas histórias fantásticas das Brumas de Avalon, pelos dramas de Shakespeare e mais tarde, bem mais tarde, pelas Ilusões Perdidas de Balzac e pela filosofia de Nietzsche.
Nunca na minha vida vou esquecer da emoção de ler pela primeira vez um livro do Carlos Heitor Cony chamado Pilatos, que ele escreveu no ano em que eu nasci, 1969. O livro conta a terrível história de um homem que teve seu pênis decepado e passa o tempo todo com ele, seu pênis, dentro de um pote de maionese. Pode soar estranho, mas foi o livro mais engraçado que eu já li durante estes meus 41 anos. Cony, o autor, tem uma relação polêmica quando o assunto é ditadura e os militares, mas Pilatos trata justamente da castração em que se encontrava a sociedade naqueles anos de chumbo.
Confesso que eu estava meio sem inspiração para vir aqui neste meu blog e escrever sobre o que quer que fosse, mas ontem, quando soube da morte de José Mindlin, alguma coisa despertou em mim. A história daquele senhor de 95 anos que dedicou sua vida aos livros e ao Brasil me comoveu. Desde criança ele se dedicava a montar uma das maiores bibliotecas do país, com mais de 45 mil livros, entre eles exemplares pra lá de raros, como o original do Grande Sertão Veredas, um dos livros que mais me impressionaram, seja pelo seu conteúdo ou seja pela forma como foi brilhantemente escrito. Hoje eu li no blog da Míriam Leitão que o sonho de Mindlim era que o Brasil lesse mais. Eu também sonho este mesmo sonho. Porque sou exemplo vivo de como a leitura pode ser benéfica na vida de alguém. Afinal, se eu sou o que sou hoje, muito se deve ao meu prazer pela leitura. Não que eu seja alguma coisa ou que tenha cargos importantes. Nada disso. Quando digo "o que eu sou hoje" é simplesmente em relação ao que se transforma em mim a cada frase que leio ou a cada verso que escrevo. Só isso. E isso, no Brasil de hoje, já é muito.
Que venham as novas gerações e com elas o gosto pela leitura. E que o sonho de José Mindlim e de outros brasileiros como eu se concretize.

P.S.: Nas imagens do velório de José Mindlim eu vi vários políticos: FHC, Serra e até Marta Suplicy. E o Lula? Ah... este não gosta de ler, não é mesmo? Uma pena.