quarta-feira, 30 de maio de 2018

Convicta

Dia desses lembrei, assim, do nada, dela me contando quando viu a lua cheia, enorme, surgir de repente nesse céu que é mar aqui na secura do Planalto Central. Era noite fria na capital e as luzes dos faróis dos carros que cruzavam apressados as superquadras pareciam não enxergá-la. Muitas vezes ela se escondia mesmo. Tinha o sonho de se tornar invisível quando bem entendesse que é para só observar, voyeur numa cidade sem esquinas, distâncias, monumental. Ela confessou mais tarde que estava ali, de pé, fazia um tempo já, procurando seu eixo entre as curvas traçadas pelo arquiteto, entre espaços vazios, entre tantos silêncios, novos amigos, outros amores.

Não importa onde, a vida é sempre um risco, ela dizia convicta.

Eu prestava muita atenção em tudo o que ela me falava, apesar de tê-la encontrado muito poucas vezes por aqui. Muito menos do que eu gostaria. Vivia cheia de histórias, personagens incríveis, planos sedutores, uma facilidade para entreter quem quer que fosse, dona de uma gargalhada sonora e aquele olhar verdadeiro que te desnudava, você querendo ou não. Sempre gostei de gente assim, muito embora por muitos anos eu jurasse de pé junto que não. Isso foi antes de eu entender que timidez e orgulho são farinha do mesmo saco e me colocar humilde diante das muitas verdades que um dia eu peguei como se fossem minhas, absolutamente minhas. Hoje em dia eu tenho muitas dúvidas sobre mim mesmo. Ainda bem.

Pouco importa o homem, mas sim, a mensagem, ela me diria.

Ela me diria também que eu não me preocupasse com nada, que no final dá tudo certo, que é possível sim escrever torto em linha reta, que a vida pode e deve ser uma festa, que o amor é de fato o que há de mais importante nesta existência, que é preciso olhar para o lado, estender a mão, que tudo é experiência, que é para se permitir, compartilhar, compreender. Só que ela não está mais aqui. Não me disse para onde foi. Celular sempre desligado. Nunca mais mandou nenhum recado, sequer me deu tempo para uma despedida, um bate papo na varanda, um trago, uma birita. Apenas se foi. E eu deixei que ela se fosse, luzes se apagando, desaparecendo dentro de mim. Melhor assim. Quase ninguém soube, quase ninguém viu. Saudades, lembranças, frases que não foram ditas e a falta do abraço que ficou para depois, quem sabe, um dia. A vida é uma sucessão de encontros, agora eu sei, coisa que antes eu não sabia.

Hoje eu vi a lua cheia.




segunda-feira, 14 de maio de 2018

Despedidas

Quando eu vim morar em Brasília, longe de todas as minhas referências afetivas mais viscerais, uma das coisas que mais me afligia era pensar que eu poderia estar vendo aquela pessoa querida pela última vez sem saber. E, pior, que eu não estaria por perto na hora da despedida. Essa sensação talvez fosse em parte porque volta e meia ainda me vem à lembrança tudo o que passei há pouco mais de dois anos com minha mãe e meu irmão internados em estado grave numa São Paulo deserta para mim. Minha mãe se foi. Meu irmão está aí firme e forte. E eu agradeço por ter tido o privilégio de estar presente do início ao fim daquele ciclo que se encerrou e deixou um ensinamento único nas nossas vidas. Dona Lígia fechou com chave de ouro sua passagem por estas bandas. E eu estava ao lado dela. 

Na manhã desta segunda-feira, uma prima-irmã, dessas com as quais a gente já nasce com os laços estreitados, unidos, raros, cientes serem de uma mesma raiz, se foi. Estive com ela pela última vez em março, no hospital, no dia em que ela acabara de ter alta depois de ter ficado internada por algumas semanas em estado grave no CTI. Eu nunca lidei muito bem com doença, com médicos, hospitais, agulhas, exames, nada disso. Quando precisei cuidar do meu irmão e da minha mãe, foi como se eu tivesse respirado fundo e mergulhado naquele mar revolto num fôlego só, sem tempo de parar e pensar em nada. Portanto, ver minha prima ali naquele leito era ter noção de que o caminho era sem volta, de que mais um ciclo se encerrava, que nós, nessa aventura humana, independente de raça, cor e credo, somos finitos. 

Naquela tarde em que nos vimos pela última vez, ela ainda preservava o sorriso largo e o jeito doce e carinhoso de olhar pra gente e dizer que estava tudo bem. Eu havia chegado de Brasília e fui direto do aeroporto para o hospital de mala e cuia. Lá estavam ela e minha tia num exercício pleno de amor entre mãe e filha que sabiam que iam precisar se despedir muito em breve. Só eu sei o quanto me segurei para não desabar ali na frente daquelas duas mulheres que eu tanto admirava. Por dentro, eu era só o pó. Quando nos falamos de fato pela última vez, num bate-papo rápido via celular, há uns vinte dias, minha prima me confessou, com a voz bem fraca, que já estava cansada de tentar encontrar forças, que estava difícil, que tudo doía muito. Aquilo doeu profundamente em mim também. Ruim demais imaginar o sofrimento daqueles que você ama. Ainda mais estando longe, como eu. Dá um nó na garganta, sabe? 

A verdade é que as últimas duas semanas foram de muita apreensão. Minha prima havia piorado e voltado para o hospital. Minhas tias por parte de mãe sempre foram muito unidas, sempre estiveram muito presentes nas nossas vidas e, por conta disso, as relações que temos entre os primos é muito forte. Coisa de irmão, sangue, família. Amor mesmo. Vivíamos uns nas casas dos outros e a casa dessa minha prima era meio que o porto seguro de todo mundo. Era para lá que corríamos quando havia festa ou algum problema. Ou seja, estávamos todos muito fragilizados, preocupados, entristecidos com o que estava acontecendo. A gente sabia que estava chegando a hora de a Mônica ir embora, mas a gente não entendia por que tinha que ser ela, por que tinha que ser daquele jeito, por que tão cedo, por que tanta dor. A gente só sabia que estava chegando a hora e pronto. 

Aí, então, nessas horas a memória resolve brincar e chega trazendo as imagens de uma infância cheia de histórias, das brincadeiras na vila de um subúrbio ainda ingênuo e tranquilo, dos primeiros bailes da nossa adolescência no Clube dos Sargentos de Cascadura, da primeira vez que fomos à praia de Ipanema sozinhos de ônibus, do primeiro porre, da vigilância cerrada do meu tio, das tardes na piscina, das sacanagens que eu falava, das merdas que eu aprontava, do comportamento exemplar da minha prima que não falava nome feio e não se revoltava com nada. Eu, o doido. Ela, a boazinha. A gente se completava assim desde que nos entendemos por gente. Casei, ela foi minha madrinha. Ela casou, eu fui seu padrinho. Mal ou bem, a gente estava sempre perto um do outro. Mas na manhã desta segunda-feira ela se foi e eu estava aqui, longe dela. 

Agora ela é mais uma que vive dentro de mim.