sexta-feira, 8 de maio de 2015

Síndrome do pânico

Vieram me contar que lá pelas bandas das montanhas infinitas das minas gerais, há muito pouco tempo atrás, havia uma menina moça que sofria de pânico, essa síndrome que mete um medo danado. Disseram também que essa menina moça era muito bonita, apesar de franzina. Dona de cabelos longos, rosto pálido, braços finos, cotovelos ressecados, mãos maltratadas, unhas roídas e os olhos, estes sempre perplexos, virados para os cantos da casa simples de piso frio, umas lajotas desbotadas, manchadas de cera barata. Os pés, sempre descalços e úmidos, grudados naquele chão. O mundo lá fora gritando que já era mais do que passada a hora e o coração, sempre agitado, a sufocar-lhe o peito e a dizer-lhe não.

Ela tinha medo de tudo. De fantasma, de escuro, de barata, de cachorro, até de gente. Mas não era nenhum desses medos que a apavoravam agora. Quando criança, brincava na rua, espalhava alegria, corria, dançava, pulava e se divertia. Sabia subir em árvores, ficava de ponta cabeça, virava cambalhotas, gostava de ouvir histórias e de uma boa cantoria. Tagarelava, contava causos, piadas, imitava vozes, ralava os joelhos e ao invés de chorar, sorria. Era a dona da gargalhada mais desconcertante e debochada daquela cidade com pouco mais de mil habitantes. Todos a conheciam. Todos a adoravam. Todos sempre queriam estar com ela.

Naquela época o céu pintava a vida de azul e aos olhos dela tudo era ainda mais bonito. O sol não castigava, a chuva não faltava, a fome não doía. Tempo bom aquele em que todo mundo se respeitava, ninguém se machucava, todo mundo se ajudava, um cuidava do outro e as manhãs chegavam mansas, anunciando mais um lindo dia que então passava até que vinha a tarde e soprava a brisa. Revoavam os pássaros. Anoitecia. Lua clara bem lá no alto e ao voltar para a casa, o colo quente da mãe, a comida farta no fogão e o beijo carinhoso do pai. Era assim naquela época.

Ninguém sabe bem ao certo, nem ela, quando foi que tudo mudou. Ela apenas lembra de ter acordado sobressaltada numa madrugada em que chovia, janela aberta, quarto molhado, portas batendo, ventania, falta de ar. O coração disparou, veio na boca, voltou, uma vontade de chorar, de sair dali, de berrar para que o temporal passasse e ela pudesse voltar a respirar e a dormir sossegada até amanhã de manhã. Quando levantasse, ela queria encontrar tudo como antes, no mesmo lugar. O mesmo céu, o mesmo azul, o mesmo jeito de enxergar.

Pouco tempo depois dessa madrugada ela já não saía mais de casa. Seus ombros se curvaram, suas sobrancelhas arriaram, seu sorriso murchou, a vida não tinha mais graça, era tudo cinza, barro, agonia, nó. Ninguém da cidade entendeu nada. Todos sentiam sua falta. Onde estava toda aquela graça? O que havia acontecido com ela? Ninguém sabia. Nem ela. E o tempo foi passando, cada um foi vivendo a sua história, procurando um final feliz. Só ela havia ficado ali. Paralisada. Entorpecida. Trancafiada em seu mundo. Sofrendo sozinha. Seus nervos estremeciam só em pensar em sair de casa. Foram meses assim. Quiçá alguns anos. Pânico.

Até que um dia apareceu na cidade um circo, desses que rodam o interior do país, com malabaristas, engolidores de fogo, mágicos, palhaços coloridos e todo aquele ar decadente. Montaram a lona na praça bem ao lado da igreja e anunciaram  num carro de som estridente o espetáculo daquela noite. "Respeitável público, o Grande Circo Lúdico chegou. Venham rir. Venham se emocionar. Venham se divertir", gritava o locutor. Ela deu um pulo e levantou da cama, calçou as sandálias e foi até ao portão. Um arco-íris nos céus, sabiás cantarolaram, a mãe não acreditou, o pai quase chorou, um vento leve desarrumou seus cabelos e ela então viu a equilibrista na corda bamba, os contorcionistas, a mulher barbada, os anões e o atirador de facas, que era um rapaz bem apessoado, cabelos dourados, braços fortes, lhe sorriu um sorriso farto que fez até sentir arder o rosto. Palpitação. Coração na boca. Rubor. Calor. Amor. 

Disseram que naquela mesma noite, depois do espetáculo, ela foi embora com o pessoal do circo. Deu adeus à mãe, pediu a benção ao pai, arrumou as trouxas, tomou coragem e partiu debaixo de um céu estrelado, estrada de terra iluminada pela lua cheia, olhares incrédulos e em seu peito só havia esperança e vontade. Corre à boca miúda que hoje ela voltou a ser feliz e a contagiar a todos que estão ao seu redor. De vez em quando ainda aparece na cidade para se apresentar com a trupe e visitar os pais. Casou com o atirador de facas, aquele rapaz bem apessoado, de cabelos dourados, braços fortes, sorriso farto e vive a mais linda história de amor. É uma das principais atrações do circo. Nem parece aquela menina moça que sofria de pânico e definhava meses e anos dentro de casa com palpitações e tremores. Destemida que só, virou mulher de fibra, deixa-se amarrar numa placa giratória de madeira e, enquanto tudo roda, ela sente as lâminas afiadas passarem rente ao seu corpo seminu. Uma a uma a tirar-lhe fino da pele lisa.

Na arquibancada improvisada, a plateia em silêncio sequer respira, atenta, tensa, em pânico, até romper nos mais intensos aplausos. No picadeiro iluminado, lá está ela sorrindo, tranquila. Sem medo algum.

Foi o que me contaram.