quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

A crueldade do mundo

Noite dessas andou fazendo frio por aqui. Já não é tempo disso. Ninguém nas ruas dessa cidade sem esquina e enormes distâncias. Um vento silencioso e gelado, daqueles de cortar os lábios, invadia a sala do apartamento, quinto andar, de fundos, janelões de madeira voltados para um muro de concreto e cal. Na vitrola, bem baixinho, Gymnopédies N1, e todo aquele minimalismo da música de Erik Satie, refletindo muito bem o que se passava naquele ambiente. 

No fundo da parede, ao lado de um sofá de canto, um abajur de ferro fundido, medindo mais ou menos um metro e meio de altura, iluminava timidamente seu rosto embrutecido, olhar ansioso, respiração curta, deitado ali fazia horas e quase entrando numa espécie de desespero, daqueles que só sente quem se dá conta de que não sabe mais o que pode vir a acontecer dali para frente. 

Há meses que ninguém o visitava. E ele não parecia se importar com isso. Muito provavelmente fora escolha dele viver cada vez mais sozinho. Desde moleque sempre gostou de se isolar. Por muito tempo escondeu de muita gente, e até dele mesmo, que muitas coisas ao redor o machucavam e doíam nele como doem os olhos quando a gente sai do mais absoluto escuro e dá de cara com aquela enormidade de luz à nossa frente. Palavras, gestos, olhares feriam-no muito mais do que as surras que seus pais nunca lhe deram, muito embora as merecesse. Estar só foi a maneira que ele encontrou de se preservar daquilo que mais tarde ele mesmo batizou de a crueldade do mundo. 

Há meses, também, que ele começou a escrever umas cartas. Diariamente. O curioso é que são cartas que ele resolveu escrever para ele mesmo. Envelopadas, endereçadas e com o nome do remetente e do destinatário. Muitas delas tiveram direito a respostas, réplicas e tréplicas. Outras geraram ressentimentos, mexeram em feridas profundas. Mas todas, sem exceção, revelavam uma infinidade de reconciliações profundamente íntimas. Como se ele tivesse conseguido entrelaçar todos aqueles que até ali se apresentaram e os textos se esparramaram pelos cômodos do apartamento.

"Sinto saudades de você e de toda essa sua vontade, essa gana, essa pressa estranha que tantas vezes chega metendo o pé na porta, escancarando, sem meias palavras, fazendo barulho, rindo, acelerando e mudando o percurso do meu caminho. Eu, que me vejo tão parado, letárgico, caótico, e você vem e me puxa pelas mãos, encontra tempo para um carinho, abraça, arrasta, beija e não deixa ninguém esquecer que uma hora ou outra a gente também vai precisar ser feliz."

"Cansado da sua covardia, desse teu medo que te suga e faz o colágeno dessa tua cara feia derreter ainda mais rápido do que deveria. Segue em frente, porra, deixa pra trás teus erros. Uma hora ou outra você vai aprender com eles. Ou não. Talvez você seja do time daqueles que não vão aprender nunca e vai ficar por isso mesmo porque essa é a sua história, e daí? Você não é sinônimo de perfeição, cara. Ninguém é. Nem eu. Relaxa."

"Lembro de uma festa na casa de uma das suas tias, você deveria ter uns seis, sete anos, trilha da novela Estúpido Cupido tocando bem alto, você começou a ensaiar uns passos desencontrados junto da sua prima mais velha, quando seu pai chegou e viu você ali. Na mesma hora você parou de dançar. Ficou todo duro, paralisado. Eu lembro da sensação de frio na espinha que você teve porque viu, refletido no olhar do seu pai, o repressor que já naquele tempo te habitava. Você só voltou a dançar na época da faculdade. E mesmo assim muito pouco. Você precisa dançar mais, cara. Teu pai não tem nada a ver com isso."

"Mentira sua quando você diz por aí que eu me arrependi de ter amado do jeito que eu amei. E eu amei quem eu quis e bem entendi. Alguns amores eu vou amar para sempre, eu sei disso, e essa talvez seja a minha cruz. O amor, acredite, me deu muitas coisas boas nessa vida. As melhores, eu diria. E eu sempre tive muita clareza a esse respeito. Talvez por sempre ter trazido dentro do peito esse tanto de sentimento que mexe comigo e que eu mesmo custei a entender como é que funciona, como é que faz para usar. Até hoje não sei, te confesso. Não tem fórmula. Mas eu vou e uso. São coisas que acontecem, histórias bonitas com personagens mais bonitos ainda. E eu gosto de ser protagonista de histórias bonitas. Você não?"

"Eu tenho andado angustiado. Faz tempo que as notícias não são boas. Lembra de quando você era adolescente e estourou a Guerra das Malvinas? Você voltava do colégio todo dia naquele Chevrolet Veraneio verde oliva, uma bagunça danada, e você calado, para variar, prestando atenção nas notícias que você ouvia no rádio. A ideia de uma guerra te deixava desestruturado, vinham cenas na sua cabeça, histórias que seus avós contavam sobre a primeira e a segunda guerras mundiais, Hitler, câmaras de gás, bomba atômica, destruição. Você morria de medo. Eu também.  A crueldade do mundo ali bem na nossa frente. Não mudou muita coisa, reparou? Isso não te deixa angustiado?"

As cartas foram escritas compulsivamente. A última ele escreveu naquela manhã, dia 8 de dezembro, dia de Nossa Senhora da Conceição, ao voltar de uma consulta no cardiologista, depois de ter visto um rapaz num semáforo segurando um cartaz onde lia-se "Fome. Pelo amor de Deus, ajude-me". Mais uma vez, aquilo que estava ao seu redor o machucava. Ele de fato não entendia como tamanha desigualdade poderia existir. Há muita crueldade no mundo, essa é a realidade. E aquilo doía nele como doem os olhos quando a gente sai do mais absoluto escuro e dá de cara com aquela enormidade de luz à nossa frente, eu repito. Ainda cego, pegou todo o dinheiro que tinha na carteira, pouco mais de cinquenta reais, esticou o braço para fora do carro e tentou de alguma maneira se livrar daquela culpa que não era dele. 

Mas ele achava que era.

Eu também acho que é culpa minha.

Quando eu escrevo é pra me livrar de muita coisa.