quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Uma outra luz

Acaba logo porque já deu a hora.
Saiba que é preciso acompanhar o passo
do mundo que escorre e corre,
enquanto uns morrem e outros apenas vão embora.

Ontem mesmo soprou por aqui o vento do passado.
Passou por mim assim sem jeito, o vento.
Fez como se fosse um gesto lento,
quase uma brisa leve. Breve.

Antes tivesse vindo um tormento, a fúria.
A tempestade anunciada logo cedo.
O mar quebrando em ondas na minha janela.
O medo que cega e paralisa o coração em silêncio.

Ouça o que eu digo e acaba com isso.
Apague as luzes e bata a porta.
Dê adeus e veja se não esqueceu nada.
O que não tem significado deixe mesmo para trás.

Há que se pensar no novo,
que vem num dia atrás do outro, uma certa ânsia de chegar.
Como os batimentos que não param no meu pulso,
lembram que o tempo é fracionado, ritmado, curto.

Porque é de repente que tudo se acaba.
Quando se vê, é mais um ano que termina.
O sol queimando as marcas da minha pele.
Um outro brilho ainda mais intenso que se descortina.

Fiat lux.



















quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Amigo é pra essas coisas

Quase uma da manhã e o telefone toca. A figura pula da cama, vai atender. Do outro lado da linha, seu melhor amigo com voz de quem está apavorado, como se o mundo estivesse acabando.
- Fodeu, roubaram meu carro - diz ele.
- Onde você está? Te machucaram? E a Lêda? As crianças? - o outro amigo pergunta.
- Estão bem. Estão aqui comigo, mas a Lêda está dizendo que vai se separar de mim.
- Mas o que tem a ver uma coisa com a outra?
- Culpa da minha sogra...
- Dona Nêuma? O que foi que ela fez?
- Morreu.
- Para de sacanagem. Tarde pra cacete e vc ligando pra minha casa pra passar trote?
- Não é trote. Roubaram meu carro e a dona Nêuma morreu, porra!
- Os assaltantes mataram ela? Vc já chamou a polícia?
- Não, não chamei e não foram os assaltantes que mataram a velha. Ela empacotou hj cedo enquanto a gente ia pra Minas passar o final de semana na casa de uns parentes. Um susto danado. Imagina?
- Sério?
- Sério, cara. No meio da viagem eu comecei a achar estranho o silêncio da jararaca. Ela, que sempre falava pelos cotovelos, estava calada por demais. Quando paramos para comer alguma coisa, já perto de São João Del Rey, ela parecia dormir profundamente. Chamamos uma, duas, três vezes e ela nada. Daniel disse que a avó estava gelada. Foi aí que bateu o frio na espinha. Lêda só chorava e pedia pra eu trazer a mãe dela de volta. Bate na cara daqui, pega no pulso dali e nada. Mortinha.
- E aí?
- E aí que eu disse que ia voltar pra casa, que não tinha mais jeito e que era melhor colocar o corpo da velha na mala do carro porque pagar translado de defunto devia ser caro pacas e sequer o décimo-terceiro eu tinha recebido.
- Não acredito que você colocou a dona Nêuma na mala?
- Coloquei, porra. Eu ia fazer o quê? Ligar pra polícia? Achei mais fácil trazer o corpo na mala e quando chegasse aqui eu dava um jeito. Esqueceu que o primo da Lêda é médico? Ele dá uns atestados sempre que alguém precisa. Ele não ia negar.
- Que merda, cara. Mas e o carro?
- Pois é. Roubaram na Avenida Brasil. Sabe ali onde fica o Bob´s?
- Sei.
- Foi ali. A gente estava chegando, mas o Daniel pediu pra eu parar porque ele precisava ir ao banheiro. Saímos todos do carro. Só a defunta ficou, claro.
- Não acredito.
- Quando voltamos não tinha mais carro, nem dona Nêuma, nem nada. Lêda quis me matar, Daniel danou a chorar e a Clarinha no colo, sem entender nada, tadinha.
- Cara, que louco isso. E agora?
- Não sei. Não posso nem acionar o seguro. Não paguei as últimas parcelas.
- Já se benzeu?
- Uma centena de vezes. Perdi a conta. Posso dormir aí? Lêda não quer que eu fique em casa.
- Vem, né? Já perdi o sono mesmo.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Oculta

És muito mais do que isso.
És tudo aquilo que não me foi permitido.

És aquela que não vê.
A luz que clareia.
A voz doce da sereia.
O encanto do mar.

És o calor que abafa.
O fogo que queima.
A mão que me afaga.
A outra que me arranha.

És de um jeito que arde.
Morde meus lábios tensos,
Chega perto, encosta.
Mostra os seios sobre minha face oculta.

És pedra bruta.
Virgem, santa,
intensa, pouca, louca.
Puta.

És outra que não a mesma.



terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Eu nada sei

Porque eu não sei de nada e você também vive no escuro.
Tão às cegas, tão alheio, tão não sei quê de mim que nem sei.
Certas horas tudo é tão complicado que o mundo parece que está todo errado, meu Deus.

A mentira que eu conto, a verdade que você esconde,
o tanto que eu procuro e não encontro, sem jeito,
um sujeito oculto e no outro, explícito, tão eu.

A face que reflete no espelho não é a minha, mas sou eu quem crio.
Tal qual a arte que trai e fere luminosamente minha retina,
ou o traço que desconheço, feito sombra que se arrasta num final de dia.

A luz que invade por detrás da cortina da sala
ilumina exatamente o verso que eu tento eternizar em minha pele.
É quando eu desconfio que nas minhas veias correm rimas soltas.

É só uma leve desconfiança.
Daquelas que se tem quando ainda se permite ser criança.
Porque o certo mesmo é que eu não sei de nada.

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Conforme a música

O bom é quando a vida é transparente
e sem os véus se revela
na luz que encontra brechas na janela
e no ar que instintivamente deixo entrar em meus pulmões.

Porque às vezes fica tudo nebuloso
e vem um peso enorme pressionar o peito,
como se quisesse dizer: não tem jeito,
caminhos, encruzilhadas, nós.

 Algumas pessoas se arriscam e dançam a ciranda lá fora
e do lado de cá outros não sabem sequer o que eu sei.
A vida é ritmo acelerado, é música em descompasso,
instrumento desafinado cujo som eu sempre gostei.

É preciso aprender com as partituras.

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Parágrafo curto

Resiste em mim um fio tênue da lembrança que insiste em rasgar meu corpo inteiro, feito lâmina afiada que deixa na pele cicatrizes e uma certa lucidez. O que a loucura quis fazer de mim cabe apenas em breve memória, das mais remotas, parágrafo curto de uma mesma história que eu não esqueci. Ainda sei de cor todas as frases que me cabem neste texto.

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Falta um mês

Tarde tensa na repartição, como de costume. O colega ao lado não consegue terminar o relatório, mas também não pede ajuda. A demanda da sucursal de Brasília é grande, o diretor-financeiro do grupo resolveu estender sua viagem ao exterior e esqueceu das pendências, o gerente da matriz parece ter surtado com tantos pedidos de última hora e até mesmo dona Lurdes, a moça da faxina, perdeu o bom humor habitual. Vai ver é a lua fora de curso, diria uma amiga, ligada nesse papo de astrologia e tal.

Eu consigo me manter relativamente equilibrado em meio àquele turbilhão de problemas. Minhas tarefas estão todas sob controle, os contratos que deveria assinar eu assinei, liguei para quem deveria ligar, fiz minhas notificações, conferi. Tudo certo. Cheguei até mesmo a me oferecer para ajudar ao colega que estava enrolado com tantos afazeres, mas recebi um 'não, obrigado' como resposta. Olhei para o relógio do meu monitor, que marcava cinco e trinta e três. Dali até que meu gerente resolvesse sentar comigo para analisar minha parte no processo, seriam horas intermináveis. Deu um certo desânimo. Foi quando levantei para dar uma mijada e garantir o bom funcionamento dos meus rins, tomar um café, fumar um cigarro no estacionamento e dar uma relaxada daquilo tudo. Do banheiro eu ouvia todo o falatório que vinha das salas ao lado e tive a impressão de ter escutado meu gerente gritar com o estagiário. Eu nunca gostei muito de estagiários, confesso, mas em compensação, nunca fui capaz de destratar nenhum deles. Na verdade isso tem a ver com o fato de eu não conseguir dividir tarefas. Além do mais, mesmo já tendo servido ao exército, não tenho voz de comando. Acabo resolvendo tudo sozinho. Meu terapeuta me sacaneia dizendo que eu tenho potencial para virar um eremita. Vai ver ele está certo.

Termino de me aliviar no mictório repleto de bolinhas de naftalina, lavo as mãos num fio tímido de água, me olho no espelho, cansado, ajeito o pouco que que me resta de cabelo e saio dali direto para a máquina de café. Quero um capuccino. Custa setenta e cinco centavos. Se fosse um expresso ou um longo eu não pagaria nada, mas o capuccino a firma não paga. Tiro do bolso uma moeda de um real, coloco na máquina, aperto o botão do danado do capuccino, a máquina começa a preparar meu pedido - que em segundos fica pronto - mas não me dá meu troco. Foda-se. Pego meu copo de plástico cheio daquela bebida quente e perfumada e desço as escadas para fumar meu Marlboro. Vício danado esse.

Lá embaixo, no estacionamento, um entra e sai confuso dos caminhões com as entregas que chegam de todo o país, o papo furado dos seguranças, o mau humor dos motoristas e um e outro colega que, como eu, não consegue abandonar o tabaco. Lauro é um deles. Fazia tempo que não esbarrava com ele. Das últimas vezes que nos encontramos eu não fui muito receptivo e fiquei com a impressão de tê-lo magoado. Lauro era um rapaz alto, magro feito um vara pau, ombros retraídos, pele excessivamente branca, óculos quadrados que lhe acentuavam ainda mais a aparência sensível, ingênua até. Dizia já ter sofrido muito por conta de uma timidez mórbida que o acompanhou durante toda a infância e boa parte da adolescência, mas agora estava curado. De origem humilde lá das bandas de Quintino, subúrbio da Central, onde sua família tinha um armazém. O pai herdara o negócio do avô, um português corpulento que jamais permitira que o neto ficasse atrás do balcão. Esse menino tem mais é que estudar, tirar um diploma, ser alguém na vida, o velho dizia. Lauro, que sempre gostou de ler e escrevia corretamente, optou pela advocacia e hoje, ao invés de vender as mercadorias que o avô vendia e que o pai seguiu vendendo, veste ternos e anda engravatado por aí, resolvendo pepinos e abacaxis dos outros. Assim que me viu veio em minha direção.

- Falta um mês, não é? - ele disse.

- Para o Natal? - eu perguntei.

- Não. Para o fim do mundo. Hoje é dia 21 de novembro e, conforme o calendário dos maias, dia 21 de dezembro acaba isso tudo.

- E você acredita nisso?

- Não. Até porque, para mim, o mundo já era faz tempo. Não posso acreditar no que estamos vivendo. Não foi isso o que sonhei pra mim e acho que nem ninguém sonhou algo tão absurdo - ele desembestou a falar, o que me fez duvidar se ele realmente chegou a sofrer daquela timidez mórbida que um dia me contou.

Lauro parecia calmo e discursava a respeito da nossa realidade sem demonstrar revolta. Era apenas uma constatação dos dias que vivíamos. Um reflexo de tudo que se passava ao nosso redor, talvez, mas que ele, com tamanha sensibilidade, devia captar com mais facilidade. Meu terapeuta volta e meia me diz que a grande maioria das pessoas apenas vive por instinto. Respira, come e caga sem pensar e sem enxergar muito mais do que se passa além de nossos limites. Ele me diz também que estas pessoas estão presas em suas vontades, vaidades incontroláveis, e não veem um palmo à frente do nariz. Talvez eu me enquadre nessa categoria, não sei.  Faz tempo já que eu apenas vivo um dia atrás do outro, sem me preocupar com o que acontece ao meu redor. Tenho um ego muito grande, sou egoísta por natureza, costumo dizer por aí que sou autossuficiente, que eu me basto e pronto. Não é verdade. No fundo, assim como Lauro, eu também sofria. Mas por defesa, sei lá, eu procurava disfarçar.

Lauro não disfarçava o que sentia. E cada vez mais fazia questão de demonstrar sua insatisfação e suas angústias fosse com quem fosse. Falava o que lhe vinha à cabeça. Muitas vezes parecia desequilibrado, muito embora tudo o que falasse fosse pertinente. Ultimamente estava cansado das guerras que entristecem e envergonham nossa raça. Dizia que não podia mais suportar os mandos e desmandos dos governantes, os aumentos absurdos, os impostos inexplicáveis, a corrupção que corria cada vez mais solta, a exploração do trabalhador, que vivíamos todos esmagados num contexto social aquém do que merecíamos, que a violência era tratada agora como um produto de marketing político, que não acreditava na humanidade, que não havia luz no fim do túnel, que a crise econômica era uma bola de neve, que nosso país vivia uma mentira e que a hipocrisia havia contaminado tudo e mais um monte de absurdos indiscutíveis.

- Eu também sou hipócrita - ele admitiu, enquanto eu dava o último trago no meu cigarro.

Permaneci calado, ouvindo tudo aquilo. Ele continuou afirmando que estávamos todos contaminados, cegos, tontos, caminhando sem rumo, feito máquinas sem controle, robotizados. Por um instante eu fui obrigado a pensar naquilo tudo e me dei conta que ele talvez estivesse certo e que se o mundo acabasse dali a um mês eu seria apenas mais um a virar poeira, assim como ele, mas só que ele tinha algumas contestações que o faziam diferente de mim e de todos os demais. Me deu uma sensação de vazio, de que até hoje eu não fizera nada, como se eu tivesse sucumbido e entrado naquela roda viva que me deixava inerte e inútil. O que eu poderia ter sido se perdeu e eu nem soube onde foi que isso se deu. Me subiu um frio na espinha. Apaguei o meu cigarro ali mesmo no chão do estacionamento, olhei para ele meio sem graça e admiti que tinha medo,  que eu também gostaria de viver num mundo diferente, mas que era daquele modo rude que a vida se apresentava para mim e para ele e que, sendo assim, era preciso aceitar o que o destino nos reservava. Disse essas coisas todas sem muita convicção e me despedi dele sem confessar que eu também era um hipócrita, um covarde, que deixei alguns amores escaparem nesta vida, deixei de agradecer a quem devia, que esqueci de alguns amigos e parei de escrever poesias para encarar um mundo que se mostrava a cada dia mais cruel.

Subi as escadas devagar. Já passava das seis. Lá em cima, o caos. E nem era o fim do mundo ainda.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Líquido viscoso

Eu te daria um beijo na boca neste exato momento.

Daqueles que fazem perder o ar, o coração bater em disparada e tudo ao redor desaparecer. Depois eu apertaria mais seu corpo contra o meu, pegaria firme em sua nuca, roçaria minha barba em seu pescoço e teu dorso encontraria o que de mim jamais se perdeu. Seus mamilos rosados, duros, grandes, entre meus dedos tão rijos quanto o sexo que lateja em minha calça, e a minha mão, que ora desliza no toque suave da tua pele úmida, atraída pelo cheiro bom que exala enquanto alisa o que se esconde no vão de suas pernas.

É o que eu quero.

Eu te beijaria toda, nua, nesta noite clara onde a lua, tímida, seria só minha e sua. Levantaria sua blusa azul de seda, abriria seu sutiã de nobre renda e nas curvas dos teus seios fartos eu me perderia por dias e dias. Eu te apreciaria feito obra das mais valiosas, dessas que raramente vemos em exposição. Eu te usaria, abusaria de você, gastaria minha saliva em tuas ancas, misturaria o teu suor no meu, o teu gosto em minha boca, eu tentando entrar em você, você sem se importar com meu corpo pesando sobre o seu.

Eu juro.

Eu te deixaria completamente louca, vermelha de sangue jorrando em suas veias da face desavergonhada, entregue, puta, pequenos lábios inchados com o beijo sutil e meus cotovelos apoiados no encosto de couro cru no meio daquela sala vazia. Olharia para sua bunda empinada, redonda, lisa, linda, apontando para mim enquanto você se abriria suavemente a se mostrar por trás. Um tapa. Você pediria mais. Eu te obedeceria, satisfaria seus desejos mais mundanos, realizaria meus fetiches, te revelaria muitas das minhas taras.

Você imploraria.

Então eu te penetraria e te preencheria e seus músculos mais íntimos se contrairiam de prazer e me acolheriam, me sugariam ferozmente cada vez mais para dentro, bem no fundo, feito animal faminto, o cio, num vai e vem sem fim, até que eu me perdesse de mim em você.

Seríamos apenas líquido viscoso.



 

terça-feira, 13 de novembro de 2012

A dúvida

Às vezes é necessário que a poesia venha como um grito histérico de uma voz aguda há muito embargada que manda para fora aquilo que não nos serve mais.
É feito a água que transborda no copo translúcido - e até outrora sujo - apoiado sobre a mesa do centro da sala vazia e que escorre sem direção pelo chão frio e liso até molhar de leve a ponta dos nossos pés. 
É quando todas as luzes se acendem do nada e interrompem o exercício discreto e silencioso da escuridão, encontrando o que até então estava timidamente guardado, escondido, trancafiado a sete chaves presas à porta pesada de madeira nobre e talhada.
Lá no fundo a poeira, jogada displicentemente sob os tapetes desenhados e ásperos do tempo onde pisamos e sequer percebemos que os pisamos porque raramente nos damos conta de onde vamos ou o que verdadeiramente queremos e nos tornamos.
É só o pó, palavra, vento, verso, refrão, sem nexo, algum sexo, dia sim, outro não, quem sabe talvez.
Expõe-se assim a dúvida: é tudo em vão?  

domingo, 4 de novembro de 2012

Aquele que se fez de mudo

Não venha você mais uma vez tentar me fazer falar. Nem mesmo se eu conseguisse soltar minhas mordaças eu falaria. Optei por permanecer calado até o fim dos meus dias já que os demais não iam mesmo me ouvir. Nem a mim, nem a você, nem a ninguém. Não que eles tenham sido acometidos por alguma otite ou meningite ou qualquer outra desgraça terminada com o sufixo ite, e tenham perdido a audição. De jeito nenhum.

Sob o ponto de vista clínico, são todos saudáveis, diria o plantonista da emergência de uma unidade de pronto atendimento qualquer. O que talvez o tal plantonista não soubesse, o que o doutorzinho recém-formado sequer desconfiasse, é que todos ali são surdos em potencial e, portanto, não lhe dariam ouvidos.

O som da sirene atormentando lá fora, as buzinas incessantes, os gritos das crianças no pilotis e as armas de fogo comendo soltas nas ruas da maior cidade do país são apenas ruídos, sujeira urbana, o caos anunciando que a vida é um eterno conflito enquanto um cartaz entra em quadro e eu leio que a paz que eu procuro está no silêncio que eu não faço. Então, não venha você me fazer falar porque eu já avisei com toda a antecedência devida que estou mudo. Você me parece que não escuta muito bem.

Lembra que da última vez eu lhe disse que uma infinidade deles, além de surdos, têm graves problemas de visão e não enxergam além do espelho, não veem um palmo a frente, não olham para fora, perdem o foco, a clareza e o resto que sobra é só escuridão? Vivem numa solidão tão extrema que chega a sufocar, porque por mais que saibam se expressar, só conseguem falar de si mesmos, não entendendo muito bem o que se passa ao seu redor. A humanidade é mesmo um sem-número de ilhas.

Você sabe que eles falam demais e que toda esta verborragia na sua maioria das vezes não quer dizer nada, é tudo eco, apenas mais um texto mal escrito, umas frases sem significado, uma lição comum, de gente ordinária, sem papas na língua, pensamento acelerado, uísque, poder, luxúria, dinheiro, pó. Dá um vazio encontrar com gente assim.

Acredito que se você viesse conversar comigo numa outra ocasião eu sequer lhe daria atenção. Seria incapaz de ouvir toda aquela ladainha interminável de sempre, da qual eu já estou cansado de saber que poucas coisas mudaram desde a última vez que você me interrompeu no refeitório, sentando ao meu lado sem pedir licença e derramando as mesmas histórias escabrosas sobre a mesa, atrapalhando meu ritual de almoço solitário e por si só silencioso.

Assim como meu falecido pai, nunca gostei de falatório na hora das refeições. Era uma hora sagrada, ele dizia. Além do mais, hoje em dia eu procuro evitar contato mais próximo com quem quer que seja, não revelo a ninguém os meus problemas, não deixo transparecer minhas angústias, conservo minha intimidade. Há anos tento me acostumar a conversar somente o indispensável - sem deixar de lado a polidez -, que é para não parecer mal educado. Mas confesso que cansei.

Eu ando mesmo distraído, desatento, com meus reflexos mais lentos a cada dia, como se o foco fosse se desfazendo em plano sequência ali na tela imaginária que volta e meia se forma à minha frente e tudo o que resta de mim é um borrão, um pensamento inerte, alheio, sem direção.

Eu procuro não pensar muito no que pode estar acontecendo ao meu redor ou no que está me deixando deste ou daquele modo. Por mais que eu revire meus arquivos, não encontro a razão para que tudo se dissipe deste jeito. Confesso agora que não tenho noção de quanto tempo já me sinto assim. Talvez por eu me achar tão autossuficiente, tão dono do meu nariz, tão bem sucedido profissionalmente, tão egocêntrico e, por isso mesmo, tão diferente de tudo e de todos, me fecho agora numa redoma e não me importo se dela eu nunca mais sair. Porque eu fui único enquanto os demais eram só coadjuvantes, figuração sem a menor importância nesta história.

Não se assuste. Mande o pudor às favas e não venha tentar me revelar seu lado frágil. Também eu estou meio surdo e não sei se quero ouvir o que você tem a me dizer. Prefiro mastigar a carne mal passada que resta em minha boca cheia de dentes enquanto meus olhos fitam os seus, castigados pela vida e que há tempos eu conhecia, mas jamais me deixei enxergar de verdade.

Não que eu seja suscetível ao sofrimento. Meu ou seu. Muito pelo contrário. Há anos eu teria me ausentado e me encolhido numa bolha frágil e nada nem ninguém me faria ter uma outra visão. Eu também estaria cego e talvez por isso não seria capaz de perceber lágrimas nos meus olhos, já que tudo seria tão surreal para mim: um ser sempre tão duro, tão frio, que vive despertando inquietantemente com qualquer burburinho ao romper das manhãs.

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Quando o verbo escorre

Escrevo forte porque me preciso assim.
Soubesse eu verbalizar a frase precisa,
a palavra exata, a oração e o sujeito,
entre graves e agudos, eu me surpreenderia.

Escrevo por sorte.
Não fosse isso eu seria praticamente mudo,
alheio a tudo, o ser mais solitário do mundo.
Enquanto outros tantos falam demais.

Porque eu não sei me expressar tão bem.
Antes, talvez, fosse necessário aprender a gritar,
subir o tom, elevar a voz e me fazer ouvir.
É que eles falam muito, porém são surdos.

Ainda bem que não sou cego.
Enxergo tão perfeitamente
que em mim reflete
o que neles se esconde.

É quando então eu me revelo em versos,
transformo tudo em prosa,
o céu assume tons de cinza e rosa
e escorre a tinta sobre o meu papel.


terça-feira, 18 de setembro de 2012

Continuo vivo

Entretanto eu continuo vivo.
Mesmo que não exista mais razão
para que todos lá fora
afiem suas lâminas
e mirem em minha carne,
eu continuo vivo.

Por que sangra em mim todas as feridas
de um mundo que se desfaz em chagas
abertas na dor sem sentido?

A espada que me corta.
O tiro certeiro em minha testa.
A festa de despedida.

Eu continuo vivo.

Entre tantos que não acreditam
e que me fitam.
Incrédulos.
Pobres.
Coitados.
A mim dói muito mais que a eles.

Porque são todos cegos,
presos em suas cavernas,
submissos às menores vontades,
alianças do inimigo comum.
Porque a vida é um infinito de vaidades
enterradas a sete palmos de meus versos.

Aqui jaz não eu,
mas você,
que jamais saberá de mim.

Muito embora eu continue vivo.


quarta-feira, 12 de setembro de 2012

O sonho da tatuagem na coxa

Não fique chateado se eu lhe disser que sonhei com você e seu irmão gêmeo na noite passada. Fazia frio em meu quarto, mas as ruas as quais atravessamos estavam ensolaradas e de longe pude perceber que eram vocês. Idênticos. O mesmo corte de cabelo, as mesmas pernas finas, a mesma barba rala por fazer a sombrear-lhes as faces, os olhos arregalados e expressivos até que me fitaram e correram para dentro de um bonde sobre trilhos que desciam ladeiras numa velocidade além da permitida e desapareceram outra  vez.

Era uma manhã azul, com algumas nuvens baixas, abafadas e a assombrar-me claustrofobicamente. Muito barulho a perturbar-me, a desconcentrar-me e eu ali tentando fitar tanto um quanto o outro, sem saber ao certo quem era quem, mas feliz por vê-lo fosse quem você fosse porque eu sabia que só em sonho mesmo para poder encontrá-lo outra vez. Até agora não sei bem ao certo onde eu estava e o que eu fazia. Das minhas mãos pingava um suor amargo e minha pele branca ruborizava ao menor pensamento. Insano. Eu era louco. Sempre fui louco. Mamãe dizia que eu era um descompensado e que tinha medo das minhas reações, dos meus gritos, da minha voz grossa que até hoje ecoa em verso e prosa e histeria. Já uma outra tia me disse em seu leito de morte, na UTI coronariana de um hospital particular, em meio a tubos e aparelhos que ainda a mantinham viva, que eu era especial. Especial por quê? Eu era como todo mundo deveria ser, tinha um certo cuidado no trato com o outro, uma preocupação tola em tirar as coisas da ordem natural, mas de especial eu não tinha nada.

Esta minha tia morreu há mais de vinte anos e volta e meia vem me visitar em meus sonhos e vive a me encher de dúvidas sobre o que eu sou, o que eu fui, quem eu poderia ser e quem eu jamais seria. Estas dúvidas sempre me abateram, mas nunca me importei de fato. Certo mesmo é que eu, ali sozinho no quarto frio, nem percebia que estava dormindo e que ao abrir os olhos estaria tudo bem, muito embora naquele sonho eu tivesse uma certeza: eu estava doente e tinha noção do pouco que me restava. Rostos desconhecidos passavam ao meu lado e me diziam que eu ia morrer, que eu estava magro demais, que meus cabelos estavam caindo, que minha barba estava por demasiado branca e então, naquele devaneio onde eu por acaso vira ele e seu irmão gêmeo, no fundo sabia por que sofria e por que me deixara abater.

O medo da morte fez com que eu telefonasse para uma outra tia, esta sim viva, que em instantes foi ao meu encontro. Nua. Completamente despida ela atravessara a rua movimentada sem que ninguém a percebesse e foi ter comigo, me socorrer, pois eu estava morrendo e antes de morrer sofria de um medo inexplicável. Como se ela pudesse me salvar, pôs-se a desfiar um rosário de conselhos inúteis, dicas estranhas e outras tantas palavras absurdas que eu já me esqueci. Receitou fórmulas prontas, dessas que mandamos manipular em farmácias que proliferam nas esquinas dos bairros mais afastados. Eu não queria remédio. Eu queria é sorver sem culpa e sem demora o veneno da redenção. Era essa a falta que meu corpo sentia. Queria em doses cavalares do mesmo jeito que eu tomara há alguns meses e que de tempos em tempos me corroía e contraía minhas artérias sem dó nem piedade, adormecendo-me os braços, amortecendo-me a queda, ecoando em minha mente a imagem daquele que eu não encontraria jamais.

Mas você veio em minha direção, invadiu meu sonho, atendendo a um pedido que eu fizera desde sempre, desde que você deixou de existir naquilo que consideramos real. Porque você também morreu, eu sei, e jaz a figura que passou a permear minhas vontades, meus desejos, acompanhando minha solidão por onde quer que eu fosse. E neste caminho eu não sei mais quem você é e nos atalhos vêm as dúvidas outra vez em relação a tudo o que eu um dia pensei em me tornar. Uma amiga vem de novo e me diz que não entende esses meus múltiplos. Nem eu, confesso. E aquela minha tia ali completamente pelada, com seus seios fartos a roçar na minha pele, sorriso franco, a tatuagem na coxa esquerda a me erotizar, me enrijecer e o medo de ejacular e ser pecado porque, ora bolas, é minha tia ali, por mais que ela se parecesse com a menina da repartição e mesmo que eu não a conhecesse muito bem, ela estava ali para me salvar e eu nunca deveria tentar desrespeitá-la. Nem em sonho.

Você então desceu do bonde ávido por pecados e veio em minha direção. Seu irmão a nos observar e o adiantado das horas apressavam seu caminhar lépido, cortante, e em instantes estava em cima de mim, com o queixo a se apoiar em meu peito, como sempre fazia, a me encarar de muito perto, a me deixar com a visão embaçada, o ar ofegante, os mesmos olhos arregalados e tristes. Suspirei e senti até mesmo o seu hálito forte enquanto de sua voz ainda não se ouvia nada, mas pude sentir o coração batendo acelerado feito os primeiros acordes de uma escala em execução. Havia música no sonho, uma sonoridade específica que eu não saberia distinguir sequer quais instrumentos faziam parte ou mesmo se as notas eram graves ou harmônicas. Era apenas sonho. Eu e você ali. Ao nosso lado, minha tia, ainda nua, agora ainda mais parecida com a menina da repartição, morena simpática da coxa grossa tatuada, a exibir o sexo sem pudores, sem vergonhas, sem peso, nada, nua. Ela a observar o que fazíamos e a cantar para que minha morte ainda demorasse a chegar porque queria me ver feliz na hora da partida e eu e você ainda nem havíamos nos beijado.

Eu tentei me lembrar da música que tocava no final, mas não consegui. Tentei lhe segurar, mas não me foi permitido. Continuei a  prestar atenção nas ancas da morena que ora fora minha tia e que você sequer se dera conta da presença. De longe, do outro lado da rua, seu irmão cuidava de uns cavalos. Já não havia mais bonde, nem barulho, nem nuvens cinzas a abafar o azul do céu e a encobrir o que se quer do dia. Não havia remédio. Não havia solução. Apenas a felicidade de ter lhe encontrado no que eu sabia se tratar de um sonho, algo que não existe, assim como eu ou você.

Porque todo o tempo em que estou acordado você está em mim e eu estou em você, mesmo que eu não lhe conheça e nem você a mim. E eu continuo com o gosto do beijo do desconhecido e com minha língua a roçar na tatuagem da coxa nua daquela que já não é ninguém a me encher de desejos estranhos enquanto tudo ao redor se desfaz.

É sonho.


quinta-feira, 6 de setembro de 2012

A morta-viva

Lá estava ela mais uma vez na lanchonete da repartição. Fazia tempo que não a encontrava por lá. A correria do dia a dia tem uma enorme responsabilidade no distanciamento entre as pessoas, e as relações de amizade, se não bem cuidadas, acabam evaporando. Eu nem sou tão amigo dela assim. Mantenho uma relação cordial apenas. Até porque, nunca me senti verdadeiramente à vontade ali para fazer amigos. Nem ali nem em lugar algum. Mas sou um bom ouvinte e, como já dizia minha avó, tenho saco de filó. Portanto, volta e meia sou cooptado para ouvir uns desabafos, pieguices de gente dramática, que remói dor de cotovelo, que fala demais. Tenho um conhecido que diz que eu atraio gente louca. Desconfio que seja verdade.

- Eu morri para ele - ela me disse assim que eu sentei ao seu lado com meu copo de café nas mãos.

- Ele me ignora solenemente, como se eu tivesse morrido. Ou pior: como se eu nunca tivesse existido. Quando nos vimos pela última vez estava estampado em nossos olhos todo o amor que descobrimos sentir um pelo outro. Não foi por falta de amor que nos separamos, mas por circunstâncias da vida. Muito embora tais circunstâncias pudessem ser transpostas. Nada poderia impedir nossa felicidade, a não ser nós mesmos, com nossos medos que travam nossos corações e nos impedem de seguir adiante e experimentar o desconhecido. Hoje continuo com medo, muito mais até, e meu coração bate mais devagar, sigo meu caminho com o olhar distante, como se eu estivesse perdida, sem rumo, sei lá. Há quanto tempo nós não conversamos?

- Pra lá de mês - respondi mirando seus olhos tristes.

- De lá para cá já pensei tanta coisa, tantas bobagens já se passaram na minha cabeça. Voltei a sair com as minhas amigas, resolvi tentar me divertir, ver gente bonita, ouvir uma boa música, dançar. Até beijar na boca eu beijei. Mas não me esqueço dele. Acordo e durmo pensando nele, querendo saber se ele está bem, se já tem novos projetos, se conseguiu o diploma, se continua lindo, essas coisas tolas que a gente pensa quando está apaixonado. Você sabe, não é?

Continuei sem tirar os olhos dela, mas não lhe respondi.

- Ainda sinto muita saudade e me dá um aperto no peito toda vez que penso que nunca mais vou encontrá-lo, que ele vai fazer de tudo para não esbarrar comigo e se por acaso isso acontecer, está arriscado a ele fingir que não me conhece, virar o rosto, atravessar a rua, mudar de calçada. Como se eu fosse um ser asqueroso, uma mulher suja, contaminada, uma doença, detentora de todo mal. Quando isso não é verdade. Posso não ser pura, muito menos um anjo de candura, mas ainda guardo em meu peito um amor enorme, uma chama que trago acesa e que teima em me arder, em me queimar por dentro e que me revelou um sentimento lindo que eu também não conhecia. O que eu faço com isso, me diz?

- Não sei.

- Ninguém sabe. Já fui a pai de santo, astrólogo, igreja, terreiro, benzadeira, tudo. Já ouvi muitos conselhos, mas nenhum que me convencesse. Porque não adianta você chegar para mim e dizer "esquece". Não é assim que funciona. Se fosse assim, seria fácil demais. Talvez para ele tenha sido fácil. Talvez ele até tenha a fórmula para enterrar sentimentos tão nobres como o amor. Ou talvez ele nunca tenha me amado, o que é muito mais provável. Porque ele não sabia o que era amor, ele me disse uma vez. Disse ainda que nunca tinha ido para a cama com alguém que o tivesse deixado tão à vontade ou que lhe tivesse despertado tanto desejo. Não só pelo sexo em si, mas pelo carinho e por tudo o que envolvia a  nossa relação. Confesso que sinto falta do cheiro da pele dele, de ver aquele corpo esguio nu na minha frente, de me encostar nele, da língua em meu pescoço, das mãos nas minhas coxas e do encontro de nossas bocas.

Assim eu fico excitado, pensei.


Pensei também naquela mulher linda ali na minha frente, que tão pouco me conhece, a me contar tantos detalhes de uma relação amorosa que eu não tinha o por quê de saber. Nunca consegui entender como é que algumas pessoas conseguem se expor tanto, sem travas no que se refere à vida particular, principalmente a sentimental. Sempre fui adepto da máxima que diz que o que acontece entre quatro paredes, fica entre quatro paredes. Se eu gosto de apanhar, de bater, de xingar, de papai e mamãe, de oral, de anal, o escambau, o problema é meu e ninguém precisa saber. A não ser quem está comigo entre as quatro paredes, claro. Nem em mesa de bar, com o álcool transbordando nas ideias e amolecendo a língua, isso é coisa que se comente. E aquela mulher linda ali na minha frente, em plena lanchonete da repartição, a me contar seus particulares.

Quisera eu pudesse ajudá-la com alguma palavra de conforto ou de estímulo para ela sair daquela situação desconfortável em que se metera, mas pouco entendo das coisas do amor e talvez até me identifique com o tal sujeito que sumira da vida dela. Assim como ele, acho, eu nunca amei ninguém. Nunca soube o que é sentir saudade e jamais sofri por quem quer que fosse. Sofro por mim e as minhas dores já me bastam. Não poderia uma outra pessoa me fazer sofrer ainda mais. Eu não permitiria que alguém entrasse em minha vida para me fazer sofrer. Ninguém nunca iria me colocar no chão, me fazer de capacho, me usar, brincar comigo e depois desaparecer, me ignorar, não me responder, não querer me ver outra vez. Agir como se eu nunca tivesse existido, como se eu fosse alguém que pudesse ser descartado, enterrado vivo. Exatamente como ele havia feito com ela. Por isso eu não amo e nunca vou amar ninguém. Mas eu não disse nada disso a ela. Até porque, acho que ela não iria dar ouvidos.

- Preciso ir.

- Eu morri para ele - ela disse outra vez.

- Mas quantas vezes morremos?, retruquei, já levantando. Morremos de fome, de sede, de raiva, de nojo, de tesão, de vontade. E por isso continuamos vivos.

- Continuo viva, porém morta.

Bebi o último gole do meu café já frio, segurei nas mãos dela e me despedi sem dizer mais nada, apenas olhando aqueles olhos vacilantes. Voltei para a minha sala, para os meus projetos, para os meus prazos apertados. Mas dali até o final do expediente, me flagrei umas duas ou três vezes pensando naquela mulher e no quanto ela estava sofrendo. Agradeci a Deus por nunca ter me dado a oportunidade de encontrar um amor nesta vida. Agradeci por minha solidão, por minha vida sem grandes emoções, vazia até, e pelo silêncio que me acompanhava nas noites em que eu brigava com o sono na escuridão do meu quarto. Eu era feliz daquela maneira.

Pelo menos eu queria acreditar que era. 

sábado, 1 de setembro de 2012

A reboque

Quinta-feira. 16h10. Para variar, estou atrasado. E para piorar, rua Marquês de Pombal engarrafada. Ônibus de um lado, caminhões do outro, e eu ali, espremido e ávido por uma vaga para estacionar meu carro. Mensalão comendo solto, um deputado já condenado, pautas inacabadas, três páginas do site para editar, eleições Brasil afora, cabeça em disparada, até que entre uma kombi e um cone, vi que tinha espaço suficiente e não pensei duas vezes: liguei a seta, engrenei a ré, deixei que o carro que estava atrás de mim ultrapassasse e manobrei todo orgulhoso e agradecido à sorte de encontrar uma vaguinha a poucos metros da entrada do jornal. Peguei minha mochila, meu maço de cigarros, pendurei o crachá no pescoço, me benzi e fui para a guerra. De lá não sairia antes de meia-noite.

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Não sei quem foi que me disse outro dia que a vida é um campo de batalhas. Já faz muito tempo, porém, que eu aprendi que é preciso matar um leão por dia. De tanto ouvir esta frase quando pequeno, eu morria de medo de virar adulto porque achava que mais cedo ou mais tarde eu ia dar de cara com o rei da selva sabe-se lá aonde e acabaria esquartejado, servido em pedaços para uma família de felinos esfomeados e com minhas sobras disputadas por hienas e urubus. Coisa de criança. Bastou eu crescer um pouco para saber que não existiam leões soltos nas ruas da cidade. Foi então que me dei conta de que eu vivia entre selvagens. Éramos todos animais, eu pensava. Mas eu pensava. E sendo assim, fazia toda a diferença. Não que o que eu pensasse era o certo, até porque, nunca quis ser o certo. Gostava mesmo - e gosto até hoje - de caminhos tortos, de gestos espalhafatosos, de gargalhadas intermináveis, de olhar no olho do outro quando estou falando, de prestar muita atenção ao que estão me dizendo, de ficar em silêncio, de me recolher e ter o direito de desaparecer por um tempo.

Porque é preciso descansar da luta.

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Quinta-feira. 22h30. Desde que cheguei no jornal, só fui ao banheiro duas vezes. Volta e meia brinco com meu chefe dizendo que o jornal vai ter de me dar um rim novo quando eu sair de lá. Fora um pulmão, um coração e muitos fios de cabelo.O ritmo de trabalho numa redação é na maioria das vezes brutal. Informação em cima de informação, versões, fatos, denúncias, bastidores, falatório, telefones que não param de tocar, o segundo clichê não pode atrasar, olhos vermelhos revelando cansaço, fome, dor de cabeça, vontade de me esticar. Resolvo descer, fumar um cigarro e dar uma olhada no carro, só como quem não quer nada. Cadê o carro? Foi ali mesmo que eu parei? Olhei para um lado, para o outro, mais adiante, na rua detrás não foi. Tudo isso numa fração de segundos. Roubaram? Rebocaram? O segurança do jornal não soube responder, tinha acabo de chegar.

Traguei o cigarro até a guimba com vontade, num misto de raiva e resignação. Dali a uma hora e meia eu tinha que estar com minhas páginas prontas. Entre uma matéria publicada e uma foto legendada, dei uns dez telefonemas, acessei os sites do DETRAN e da Guarda Municipal na ânsia de descobrir se meu carro estava em algum depósito. Minha manchete era: PT anuncia substituto de João Paulo Cunha para eleição em Osasco. Minha preocupação era: onde está meu carro? Liga daqui e clica de lá, descubro que ele foi rebocado às 16h40 e que está no depósito da rua Benedito Hipólito, bem ali atrás do jornal. Imprimo os boletos, me conformo com o prejuízo e me preparo para acordar cedo no dia seguinte, acompanhado do leão que não me abandona nunca nessas horas.

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Sexta-feira. 9h40. Estou numa festa, a mãe do marido da minha cunhada me oferece um pedaço de quindão e antes mesmo que o provasse, toca o celular e eu acordo. É a Claudia, a leoa, me perguntando se eu não ia buscar o carro e se eu queria carona. Respondi que já estava levantando, mas que ainda ia passar no banco para pagar as taxas e que pegava um ônibus mesmo, sem problemas. Foi o que eu fiz. Corri no banco, enfrentei uma fila desumana, paguei o que devia, entrei num ônibus, paguei a passagem e só então me dei conta de que esqueci as chaves do carro em casa. Fiz sinal pro motorista parar, voltei em casa, peguei a danada da chave, desci minha rua, vi que não tinha mais trocado para pagar outra passagem, tiro R$ 50 do bolso, dou para o trocador que olha pra mim de cara feia.

Minha cara está mais feia que a dele.

O trânsito está bom, chego no depósito rápido, pouca gente na fila, o sistema está fora do ar e sem previsão para voltar. Respiro fundo. Conto até dez. Dou um pulo lá fora. O sistema volta, sou atendido e uma gordinha por trás das grades me diz que está faltando um documento autenticado e que sem ele meu carro não pode ser liberado. Eu pergunto para ela se ela tem noção da quantidade de praga que eu estou rogando naquele exato momento e ela me diz que tem o santo forte.

Sorte a dela.

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O relógio da Central do Brasil marcava meio-dia quando eu entrei de novo num ônibus para voltar pra casa e buscar o tal documento autenticado, pensando em quantas coisas podem dar errado e que eu poderia esbravejar, xingar, gritar, dizer que o prefeito é isso, que o governador é aquilo, que só tem ladrão, que nada é para facilitar a vida do povo e por aí vai. De nada adiantaria, eu falei baixinho. Num banco ao lado, uma mulher com os pés inchados e um vestido surrado de dar dó jamais poderia imaginar o que se passava comigo. Na minha frente um casal de idosos com olhar sossegado também não. O trocador, jovem, me parecia cansado de tanto que travava e destravava a roleta entre freadas e buzinas. Sequer olhou para mim quando eu lhe dei o dinheiro da passagem.

O motorista parecia atento.

Eu ainda não tinha almoçado, precisava tomar um banho, levar meu cachorro para fazer xixi e cocô na rua, voltar ao depósito, torcer para não faltar mais nada e poder liberar meu carro e correr para não chegar atrasado no jornal. Atualmente eu vivo correndo, sempre sem tempo para nada. Olho pela janela, está um dia lindo lá fora, um céu azul me chamando pra dar um rolé, o final de semana chegando e então me dou conta que tudo pode ser muito engraçado: o reboque, a gordinha atrás da grade, a chave que eu esqueci, as taxas que eu tive de pagar, os leões querendo me engolir, todo mundo na batalha, na selva, na luta, na guerra que não para.

A vida às vezes tira sarro da nossa cara. A vida é piada.

terça-feira, 21 de agosto de 2012

Idas e vindas

Vá.
Mas volte.
Porque mais importante do que saber aonde ir
É percorrer com passos livres o caminho
Que liga um ponto a outro
E talvez a lugar nenhum.

Lá.
Ou aqui.
Porque quanto mais perdido, mais distante,
Já que a estrada principal
É a que segue por dentro.
E as pegadas são palavras doces
Deixando suas marcas pelo chão.

Idas.
E vindas.
Quando pegar o retorno,
Que as boas coisas da vida te recebam de volta.
Que o lado bom prevaleça.
Que você tenha o amor que mereça.
Que te faça feliz.

Que reveja os amigos.
Que conheça mais gente.
Que se reoriente.
Que se empregue.
Que se encante.
Que se encontre.
Até partir novamente.

Felipe

Eles haviam se tornado amigos poucos meses antes de Felipe viajar. Para ser mais preciso, cinco meses antes. Mais tarde pude entender que, de certo modo, a proximidade da viagem foi o que possibilitou o surgimento daquela amizade e fez com que Felipe se dispusesse a experimentar um sentimento que ainda não conhecia. Não que não tivesse outros amigos. Na verdade, tinha muitos. Mas nenhuma amizade até então havia sido como aquela.

Por mais que fossem diferentes e por mais estranheza que a tal amizade pudesse causar à primeira vista, gostavam de estar juntos. Não era nada fácil para ambos estarem juntos. Muito pelo contrário. Era difícil admitir que queriam se encontrar, se ver, ter a companhia um do outro e deixar todos os outros afazeres para trás. Procuravam marcar uma vez por semana. Mais do que isso era um sofrimento danado, dava uma saudade apertada, uma vontade tamanha de que os dias voassem e que a data marcada chegasse logo sem prolongas.

Conversavam sobre tudo. Não havia segredo entre eles. Um sabia da vida do outro, dos problemas que enfrentavam, das paranoias, das fraquezas, dos sonhos de um futuro mais bonito. Gostavam de ir à praia, de cruzar as montanhas da cidade, andar pelas ladeiras do bairro alto e ver toda a gente lá embaixo, quando tudo parecia em silêncio e lento. Se estavam juntos o ritmo era outro, como se as horas soubessem que aquele pouco tempo que tinham lado a lado ficaria eternizado na memória dos dois.

Quem os via de longe tinha a impressão de se tratar de dois moleques sem juízo, fazendo o que seus pais passaram a vida inteira alertando para que não fizessem, saindo por aí sem rumo, sem direção, sem muita noção do que poderia ser certo ou errado. Mas quem pode nos dizer o que é certo ou errado? Havia amizade ali e isso era o que importava. Mais: havia amor entre aqueles dois amigos e talvez eles já tivessem se dado conta.

Tão distintos um do outro. Mas apesar de criados em realidades opostas, os dois tinham experiências duras de vida, amargas, tristes até. Talvez fosse isso que os atraía. Um tinha no outro um alento, uma espécie de cumplicidade, um tesão no desconhecido, a vontade de andar no limiar entre o que é proibido e aquilo que é consentido. Mas um detalhe causava angústia a um deles: aquela amizade tinha prazo para acabar. Felipe ia embora para talvez nunca mais voltar em poucas semanas. E assim foi feito.

Logo de início o outro se deu conta que sofreria quando seu amigo partisse. Com quem ele ia conversar sobre todos aqueles assuntos? Com quem ele ia fugir nas tardes ensolaradas para ver o sol se pôr? E as dicas de filmes sempre preciosas? E as músicas que gostavam de ouvir? Até mesmo o futebol... Era como se todas as boas referências fossem desaparecer depois que o avião decolasse e levasse Felipe para aquela terra tão distante.

Naquela época ainda não existiam todas essas facilidades de um mundo globalizado e suas redes sociais, que encurtam as distâncias, agilizam a comunicação e nos expõem aos quatro cantos do planeta. No máximo uma carta. Telefonema? Nem pensar! O custo de uma ligação internacional era um entrave e tanto, o que dificultava qualquer aproximação. A falta de notícias foi então criando em seu peito uma úlcera que abria mais e mais a cada dia, sangrando-lhe por dentro vagarosamente até que ficasse completamente seco, doente mesmo.

Lá de longe Felipe talvez soubesse que alguma coisa não estava indo muito bem por aqui, mas e daí? Ele tinha uma outra história para viver e não poderia deixar que aquela amizade atrapalhasse seus planos. Planos que ele havia traçado com fervor, planos que ele vinha organizando racionalmente há meses e que muito lhe consumiram. Ele não tinha como amolecer. O outro sabia disso tudo e nunca o culpou por nada, apesar de sofrer com o vazio que aquilo tudo lhe causava.

Só queria saber se estava tudo bem, um 'olá, como vai', até que a amizade de cinco meses ficasse apenas como uma lembrança boa, traduzida num encontro raro que poucos têm a chance de vivenciar por aqui. Mas Felipe preferiu desaparecer como se o outro nunca tivesse existido, como se aquela amizade não fosse nada, coisa sem importância esquecida num passado que deveria ser enterrado. O outro foi se conformando aos poucos com a dor da ausência daquele que foi seu único amigo.

Anos mais tarde, quando o outro me contou essa história, confessou que jamais houve um dia desde então que não lembrasse do Felipe. Contou-me também que o mundo perdera o colorido, que seus olhos nunca recuperaram o brilho e que seu coração fazia um esforço tremendo para bombear sangue em suas artérias. Não sabe se Felipe está vivo, se casou, se teve filhos, se é feliz, se conseguiu trilhar o caminho escolhido ou pior: que caminho ele havia escolhido trilhar?

- Você nunca vai saber - cansei de lhe dizer, na tentativa de ceder-lhe meu ombro amigo.

Mas ele nunca me considerou como tal, apesar de gostar de me ouvir e de não ter vergonha de me contar tudo aquilo. Afinal, o que eu poderia pensar? Logo eu, que costumo falar tão pouco sobre mim, que não me interesso por essas coisas complicadas da vida, que procuro não pensar que é para não me aborrecer. Quem sou eu para dar conselhos? Quem sou eu para querer ser amigo de alguém? Na verdade, eu não sabia ao certo o que falar. Muito provavelmente nem precisasse dizer nada. Por várias vezes tive a impressão de que bastava eu estar ali ao lado dele, olhando em seus olhos, ouvindo o que ele tinha para me contar. Papel de amigo, acho. E foi aos poucos que ele me contou tudo.

Um dia, antes de ir embora da repartição, já no final do expediente, me pediu um abraço. Ele estava fragilizado e não tive como negar. Abracei-o com vontade, como se eu já não o visse há décadas e dele sentisse uma enorme saudade. Nos despedimos no estacionamento ainda com um aceno e um sorriso tímido. Ele virou as costas, caminhando a passos lentos, cigarro aceso na mão, paletó pesando sobre os ombros e nenhum traço de esperança em seu rosto. No dia seguinte ele não apareceu para trabalhar. Nem na outra semana. Nem nunca mais. Sumiu sem deixar um rastro sequer. A família estava em frangalhos, sem saber mais o que fazer nem o que imaginar. Todos desesperados. Nem o seguro de vida receberam, já que não tinham como comprovar o óbito e o corpo nunca apareceu. 

Eu nunca mais esqueci daquele último abraço nem de toda aquela história de amor entre amigos que ele me contou. Ainda tenho esperança de reencontrá-lo. Na minha versão ele não morre no final. Prefiro acreditar que ele foi atrás do Felipe. Mas onde? Como? Ninguém conhecia o Felipe. Só ele. Só ele... 

sábado, 18 de agosto de 2012

Ciranda

Por aqui vem sempre um dia atrás do outro
Amanhece e anoitece sem descanso
O rio que passa
A água que corre
O vento que atravessa
E a montanha segue firme no mesmo lugar.

Há algo por aqui que segue perene
Dizendo com todas as letras que nada termina
O tempo que resta
As horas que sobram
Minutos que sopram
E o peito de repente se enche de ar.

Por aqui há os que se desnudam
Riscam na própria pele as suas marcas
A ferida que cicatriza
A arma que fere
A lâmina que rasga
E o sangue continua pulsando nas veias.

Por aqui há os que fogem de medo
Os que se pelam só de imaginar
A felicidade que insiste
O prazer que arrebata
A saudade que grita
Dos que chegam sem fazer barulho.

Por aqui nada permite silêncio
Porque se cala já deixou de existir
É fogo que arde
É luz que candeia
É brasa que queima
Enquanto o mundo lá fora é ciranda a girar, a girar.



sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Insônia

A cabeça do homem é uma central de mensagens. A minha funciona praticamente 24 horas. Elas chegam codificadas, zipadas, manuscritas, sussurradas e são lançadas ao mar em garrafas coloridas. Uma a uma, sem parar. Meu cérebro é um imenso oceano desconhecido de pensamentos e ideias à deriva. Navego em ondas incessantes que se formam muito além de onde a vista alcança o horizonte. Um farol esquecido em ilha distante. O pouco que eu vejo fica retido na retina por toda minha vida. Sou imagem invertida, barco naufragado, sujeito de ponta à cabeça. Sou a carta do louco projetada na parede fina que separa o real do absurdo. Sou sombra, vento, tempestade, sol, neblina. Eu sou isso tudo. E mais um pouco do que não faz sentido.

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Eu esqueço o que não devia, deixo para trás o que não queria, apago as linhas mal rabiscadas, reescrevo trechos, desfaço os versos, cruzo outras ruas, atravesso as mesmas esquinas de um jeito diferente até me dar conta de que estou mesmo sozinho e que por mais que tentem me dizer o contrário, a vida é assim. Quisera eu não pensar, não sentir, sequer amar e por amor me destruir até me refazer, ou quem sabe?, enlouquecer e me enquadrar no que dizem que é normal, no que é aceito, ser mais uma peça deste jogo social. Eu gosto do que é ilegal, do que é imoral, do que choca, surpreende, amedronta e me coloca frente a frente, dia a dia, toda hora. Tenho medo é de ser igual, ser mais um, apenas número, estatística, massa humana sem graça, sem raça, sem tesão nenhum. Meu nado nunca foi sincronizado. Sou contra a corrente. Às vezes sou tudo. Noutras vezes sou nada. Sou assim. Desde que me entendo por gente.

terça-feira, 24 de julho de 2012

Rascunho

Solte o texto. Desamarre as palavras bonitas que você aprendeu desde a infância, quando sua mãe inventava histórias preciosas à beira da sua cama até que o sono chegasse e te levasse embora. Não se esqueça: escrever é como narrar um sonho, é ater-se a detalhes, criar novas realidades, romper barreiras e dar sentido aos vocábulos que muitas vezes correm soltos desnecessariamente. É quase como saber costurar, seguir o fio da meada, o corte certo, o risco iminente da emoção e da razão.

Não pense que é fácil, mas também não tenha medo. É só ter cuidado e saber tecer a trama, dar vida a personagens completamente diferentes daqueles que você se vê obrigado a representar, com discursos improváveis vindos da sua boca, mas tão presentes no seu imaginário desde todo o sempre. Como se estivessem guardados, só esperando a hora de serem postos à prova. O ridículo é apenas um adjetivo sem muita precisão.

Exponha-se. Não tenha vergonha de expressar o que sente e muito menos deixe que alguém o censure. Isso é um crime. Aceite as críticas, mas não leve a ferro e fogo tudo o que você porventura ouve por aí. Separe o joio do trigo e acredite na coerência do que acabou de ser escrito, na frase exata e derradeira que surge e preenche a angústia da página em branco. Confie, segure no leme da narrativa e deixe que sua tripulação faça o que eles devem fazer. Dê as ordens que eles vão obedecer.

Seja firme. Mate se for preciso, mude o percurso, inverta os valores, provoque. A arte é proporcionalmente inversa - e avessa - à zona de conforto. Fuja do comum, esqueça as rimas perfeitas, quebre regras, risque e rabisque. Subverta. Surpreenda. A vida só é interessante porque a gente sabe que depois deste dia vem sempre um outro dia e que a história nunca termina e não tem o tal do ponto final. Eterno rascunho.

sábado, 21 de julho de 2012

A fila anda

Na minha casa, bem em cima da minha mesa do escritório, tem uma foto de quando eu sequer tinha completado cinco anos ainda. É daquelas fotos antigas, as tais sete carinhas, tão comuns no início da década de 1970. Numa das carinhas eu apareço sorrindo, noutra estou com o dedo na boca, tem ainda a que estou coçando a cabeça, falando ao telefone, de óculos e com pose de intelectual, franja cobrindo a testa e a última, com o olhar distante. Atualmente, quando eu olho para esta foto, vejo poucos traços meus em cada uma daquelas poses e penso em quantos eu já fui até o dia de hoje e me vejo ainda na expectativa de saber quantos ainda serei.

Lembro que já fui chato, chorão, tinha medo de ficar sozinho, de tomar vacina, de ficar doente. Gostava de gente ao redor, de andar de meias, de fazer meus desenhos e de ouvir meu pai chegar em casa, tarde da noite, eu já na cama, a respirar baixinho. Gostava de ir para a escola, de fazer redações, de tirar notas boas, elogios das professoras, orgulho da minha mãe, de cachorro-quente na piscina do clube onde eu fazia natação, de usar as roupas novas do meu irmão, de trocar uns livros com a Denise, minha amiga de ontem, hoje e sempre.

Tão logo virei adolescente eu já namorava. Bernadete, dois anos mais velha, um queixo proeminente, perninhas roliças, bunda arrebitada, disputada entre os mais velhos, me ensinou a fumar, a beijar de língua, a tirar um sarro. Namoro avançado, diziam as mães dos meus amigos. Hoje em dia eu concordo. Era mesmo avançado. Fazia coisas que meus amigos sequer poderiam imaginar que existissem na época e quando eu contava para eles, via seus olhos cheios de desejo. Tempo de descobertas, de irresponsabilidades, de deixar os estudos em segundo plano, de ficar em segunda época, repetir de ano e desperdiçar o tempo que eu jurava ser todo meu.

Outras paixões surgiram. Pelos cresceram no meu peito, no meu rosto já tinha uma certa sombra que mais tarde se transformaria em barba. Fiquei vaidoso, gostava de andar cheiroso, arrumadinho, camisa de botão aberta que me fazia sentir viril, másculo, bonito. Gostava de ler e de tirar onda porque sabia escrever. Na verdade, ter sido bem alfabetizado foi a minha sorte, eu sempre repito isso. Era como eu conseguia me destacar na escola.

Escrevia poesias durante as madrugadas em que já passava acordado, acompanhado por meus versos e as palavras que chegavam aos meus ouvidos incessantemente, até que eu as expulsasse de mim em estrofes riscadas num caderno de capa dura que guardo até hoje. Aquele caderno foi meu melhor amigo durante muitos anos. Só eu sabia dele e ele sabia de mim, apesar de tantos outros amigos.

Minha casa vivia cheia. Era lá que todos costumavam se reunir antes de saber o que íamos fazer. Minha mãe nunca se incomodou com aquele entra e sai de gente, fosse a hora que fosse. Quando juntava os meus amigos com os amigos do meu irmão e todos os outros nossos amigos em comum, era festa na certa. O primeiro porre, as gargalhadas que varavam a madrugada, os vizinhos pedindo silêncio, os filmes no primeiro aparelho de vídeo-cassete, a namorada com que me casei tão cedo e mãe do meu primeiro filho.

O casamento, a faculdade, o primeiro baseado, a separação, outras descobertas, a vida profissional e uma vontade incontrolável de permanecer jovem e congelar o tempo, as horas, os minutos que eu no fundo sabia serem efêmeros, mas ainda não tinha me dado conta de que as coisas passavam mesmo tão rápido.

Eu quis fazer de tudo. Cinema, televisão, publicidade, roteiro, fui ser repórter numa produtora em Botafogo, produtor, redator, fiz campanha política, trabalhei em assessoria de imprensa, conheci gente louca, gente boa, gente à toa, que não presta, que se engana, que se esconde e acha que ninguém percebe. Virei noites, percorri caminhos estranhos, enganei, fui enganado, fui ingênuo, safado, me achavam engraçado.

Amei descontroladamente até me casar de novo, sonho lindo, mais dois filhos, mamadeiras, esquece o cinema, não sai pra jantar, fica em casa, novela, roupa suja para lavar. Rotina é uma merda, eu vou te contar. É água, é luz, é telefone e outras tantas contas para pagar. Não sobra tempo, não sobra dinheiro, aperta daqui, aperta de lá. Vontade de viajar.

E o coração desacelera, parece até que vai parar. Sem querer ele desperta, arrebenta no peito, faz que vai sufocar. Sinto saudades, sinto falta de ar quando penso, quando lembro, quando vejo o tanto que já fui que nem consigo falar. Se eu voltar as páginas da minha história talvez não me reconheça em determinados momentos. Feito na foto das sete carinhas, que eu sei que sou eu que estou ali enquadrado, mas aquele eu, dividido por sete, não é nem a décima parte dos personagens que me completam. Aqueles rostos, aquelas sete expressões, já me diziam que eu sou múltiplo, muito embora eu só fosse me dar conta disso décadas mais tarde. E agora, quem é esse que se apresenta para mim neste instante? A fila anda.

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Quando sentei para escrever este texto, pensava em contar um pouco sobre o reencontro com amizades de infância, aquelas que a gente jamais esquece, inspirado num almoço sábado passado na casa de minha amiga Ester, irmã do Wiltinho, cúmplice de longa data e muitas histórias engraçadas. Lá estavam ainda a Diana e a Andréa e relembramos histórias de quando não tínhamos nem dez anos de idade. Foi graças ao tal do facebbok que nos reaproximamos. Ficamos anos sem nos ver, mas o curioso é que mesmo tendo passado tanto tempo, alguma coisa muito forte ainda nos une. Mesmo que não sejamos mais os mesmos. Porque o tempo passa numa velocidade estonteante e transforma todos nós.  

quinta-feira, 19 de julho de 2012

letras miúdas

parte
metade
todo

lodo
limo
chão

espada
lança
corte

sorte
trevo


fanatismo
cegueira
crença

vida
morte
é

tesão
sexo
amor

fazer
gozar
fluir

deixar
tocar
sentir

potência
força
dom

viagem
ácido
som

onde
quando
vai

calcinha
sandália
batom

menina
moça
mulher

barba
cabelo
bigode

frágil
homem
forte

trabalho
diário
labuta

doida
santa
puta

pau
buceta
cu

loucos
livres
sãos

laços
elos
nós

poetas
palavras
versos

plurais
sinônimos
complexos

eu
ele
você

vários
todos
um

quarta-feira, 18 de julho de 2012

No way out

Pior é se enganar
Se deixar levar,
ludibriar,
apaixonar.

Envolver,
seduzir,
usar, abusar
e depois sumir.

Desaparecer sem deixar sinal,
sem dizer adeus,
sem querer saber,
sem se interessar.

Ruim é se machucar,
saber que vai se ferir,
que vai se foder,
Porque sempre é assim.

Eu não sei de você,
você deveria saber de mim,
oh baby,
aqui na solidão da minha ruína.

O sol queimou a minha retina
pouco a pouco,
dia a dia,
você já deveria saber, oh baby.

Na impaciência de um sinal fechado,
no colorido desbotado da rotina,
Acendem os faróis,
rua sem saída.

No way out.
Mãos nervosas nas buzinas,
olhos dispersos nas esquinas.
Cadê você?
Eu me perdi de mim.

quinta-feira, 12 de julho de 2012

Pedra de limo verde

Certas noites eu chego em casa assim, meio que massacrado, como se eu tivesse passado o dia inteiro num martírio, me sentindo um nada, um ser passivo, subserviente, daqueles que assiste contemplativamente o mundo lá fora avançar em suas guerras podres de poder e corrupção. Nestas horas eu não queria ter nascido gente, essa espécie esquisita, que rouba, mata, ri, chora, brinca e grita. Preferia ter nascido pedra de limo verde na beira de um rio claro, lá pelas bandas da Serra da Mantiqueira, onde logo cedo faz um frio danado, mas o céu é azulzinho e a água ainda corre boa. Tem vaca no pasto, roupa coarando no varal entortado, cheiro de pão fresquinho, café no fogão a lenha e tempo de sobra. Tem cigarro de palha, conversa fiada, filharada na rede, pinga da boa, mulher rindo à toa, roda de viola e muita cantoria. É uma alegria. O pintassilgo assovia, o sabiá vem de lá, tem biquinho de lacre, melro, canário da terra, pardal, rolinha. Tem até beija-flor, que é o mesmo que colibri, que eu já vi.

Mas acontece que eu nasci gente, nesta terra estranha, de família pobre, com poucos recursos, cheia de manias e não me toques, um não fala com o outro, isso você não pode saber, aquilo outro é proibido, não faça, não venha, não olhe, pare, saia. Ganância, poder, corrupção, tudo a gente vendo lá fora, outros tantos vendendo a alma, a mãe, a vergonha e a moral. Qual é a moral, eu me pergunto? Onde me enquadro nisso tudo se há comida em minha mesa e na calçada agora mesmo eu vi um menino deitado sobre folhas soltas de jornal onde a manchete era o rombo de mais um parlamentar nos nossos bolsos? Eu tenho náuseas. Eu vomito. Fico doente. Incham-me as glândulas e sufoca-me não ter mais com quem conversar por horas e me perco entre os abraços que ficaram no vácuo da lembrança que jaz morta entre a ferida cicatrizada na epiderme úmida e suja feito tatuagem mal feita, borrada, mancha negra bem do lado esquerdo do meu peito.

É lá que dói e pulsa e carrega o sangue quente por todo o meu corpo pesado, inútil, fútil, do mesmo jeito de quando eu chego em casa assim, massacrado, consumido de um dia inteiro na rua em que o tempo não para, que nem a água clara que corre perene no rio onde fica encravada a pedra do limo verde. A água passa, esbarra, encobre, mas não carrega a pedra. A pedra é firme. Quem me dera ser.

Com início, meio e fim

Se não está acabado é porque sequer comecei. O que deixo de lado é só desprezo.

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Bonança

Às vezes é preciso parar e ouvir o lado bom da história. Rever lições esquecidas, mesmo que tenhamos de voltar as páginas e ler de novo uma, duas, mil vezes a mesma frase até que ela ganhe um novo sentido. Então você vê que é o mesmo parágrafo, mas com um não sei quê de diferente.

Tenho um amigo que diz - e eu acredito nele - que o nosso maior esforço por estas bandas é aprender a reinterpretar. A vida é um palco e você é o personagem, mas isso não quer dizer que você tenha de interpretar sempre o mesmo papel, ele repete toda vez que me encontra.

Diz também que a vida fica muito mais divertida quando observada de outros ângulos e que de pernas para o ar é tudo ainda mais engraçado. Pode ser, eu digo.

Ele me diz que eu deveria ter certeza, que o que a gente tem de bom e positivo é a firmeza, é o que nos faz seguir em frente, passo a passo, pé no chão.

Esse meu amigo foi o mesmo que me disse tempos atrás que nunca teve vergonha dos seus rascunhos. Que ele era mesmo um esboço de algo que não se sabia nem melhor nem pior, mas outro que não aquele. Ele.

Falou que a realidade é bem melhor que o sonho, mas que o sonho faz um bem danado à realidade e que uma coisa é o que move a outra. Simples assim.

Que é preciso respirar com calma, puxar o ar bem fundo, inflar o peito, encher os pulmões e reabastecer. Porque não somos máquina. Ou somos?

Que tem o lado de fora e o lado de dentro e que muitas vezes o lado de dentro é mais interessante que o lado de fora, mas que quem olha muito para dentro está, na verdade, por fora. Um egoísmo danado.

Porque chega uma hora em que cansa, dá vontade de voltar a ser descompromissadamente criança e nem se dar conta que no mundo chamado real existem barreiras, que os adultos se isolam, criam fronteiras, sobem muros, pulam, pisam, matam. Não.

Leia o texto de novo, ele sempre me diz. Tente ir mais devagar da próxima vez e veja se consegue repetir as mesmas rimas e entender nas entrelinhas só o que for mais bonito.

Por mim.

Porque sou verso manso que deságua na poesia como a chuva que declama em temporal.


quarta-feira, 13 de junho de 2012

Reprises

A pergunta que eu não quis ouvir.
A resposta que eu não soube dar.
A verdade que eu não percebi.
Tudo aquilo que eu deixei pra lá.

Eu via tamanha beleza onde sequer havia.
Vazio.

Eu vivia tomado de silêncio e drama.
Entre passos desertos, pistas em falso, conselhos diversos,
Fosse dia ou fosse noite,
Confesso: não sabia mesmo onde ir.

Eu via tantas coisas ao mesmo tempo.
Disperso.

Lhe peço um pouco mais de atenção.
Dá aqui sua mão sobre a minha,
Quero ler linha por linha
De uma história diferente a cada dia.

Eu via tudo tão igual.
Reprises.

Posso começar de novo?

sábado, 9 de junho de 2012

Tecidos

Guardo em minha boca um misto de amargo e de silêncio,

do vício que me cala entre os segredos,

moído no pó que me transforma

e me espalha pelas bordas e me leva embora daqui.

Voando entre panos e cordas coloridas

Há um coração que bate para lá e para cá num trapézio.

Pulsa pendurado aqui e ali.

Sobe e desce sozinho no balé ritmado pelo arfar exagerado que vem do seu peito.

Coreografia improvisada nos ares onde ainda vejo seu corpo

a girar e a desenrolar os tecidos que lhe roçam a pele.

É tudo imaginação, eu penso.

Então, respiro.

Até que aquilo se desfaça no vento quente que sai de minhas narinas,

entre mucosas e o suor azedo dos meus poros,

que molham os parangolés que eu nunca conheci.

Paro. Expiro.

Sopro. Transpiro.

Danço. Solto. Só.

Entre panos e cordas coloridas.




quinta-feira, 7 de junho de 2012

Calendário

Passa o tempo, passa.
Corre e avança sobre minhas ladeiras.
Marca transparentemente em minha pele os dias
E deixa voar páginas soltas em meu calendário.
Ando mesmo perdido nas horas.

Chego sempre atrasado.
Subo os degraus lentamente desde que tudo se foi.
Esqueço o que fui.
Não sei o que sou.
O que restou de mim, me diz?

A menor parte.
A parte pequena.
Os desejos miúdos.
A dança efêmera.
O ritmo feroz.

Tudo ficou para trás.
Como o trem que acabou de partir para longe,
Para outra estação, onde as portas se abrem
E o entra e sai de gente estranha a me dizer:
Agora é nunca mais.

Logo eu, que queria tudo para sempre.
Insistentemente eu pedia.
Implorava despudoradamente.
Como se eu soubesse que tudo aquilo urgia.
Mas ele se foi e preferiu não saber.

E eu aqui, a cronometrar-me em segundos.
Uma bomba-relógio prestes a deixar de existir.
A acertar os ponteiros do pouco que me resta.
E eu nem sei bem quanto.
Quase nenhum.

Sou mesmo um homem sem tempo.

sábado, 2 de junho de 2012

Chegadas e partidas

Passava um pouco das cinco da tarde quando ele foi expulso do ventre de sua mãe. Fazia frio naquela sala repleta de umas luzes muito fortes e lençóis sujos de sangue. A pessoa que o puxou para fora, que ele não lembra se era homem ou mulher, tinha as mãos firmes e num primeiro momento não lhe pareceram nada delicadas. Talvez ele esperasse uma recepção mais calorosa, vai saber, com direito a banda de música, canapés e bebericos. Muito pelo contrário. Foram logo lhe enfiando dedos pela goela, dando-lhe uns tapas, cortando-lhe o cordão umbilical e deitando-lhe numa placa de aço tão gelada quanto um iceberg. Desagradável assim. A mãe, estirada na maca, ainda sem ter visto como eram as suas feições, quis saber se  era perfeito, se tinha todos os dedos, se era bonito. Não, não era. Nenhum bebê ao nascer é bonito, já lhe dizia sua avó. Ele tinha as pálpebras dos olhos inchados, quase nenhum cabelo, rugas na testa, uma enorme mancha vermelha que ia da bochecha esquerda à base da orelha e um nariz gordo, amassado, que ficava ainda mais estranho quando ele chorava. E como ele chorava. Mas era perfeito.

No dia seguinte mesmo foram para casa. Hospital público, sabe como é, não dá para ficar ocupando leito à toa. É só o tempo da mãe descansar do parto, recuperar as forças, aprender a dar de mamar e então o médico chega, examina aqui, ali, vê se está tudo bem e pronto: rua. Embrulhado num pano flanelado, com uma fralda mal colocada e curativo no umbigo, lá foi ele no colo da mãe sem saber que lugar era aquele, que gente toda era aquela, o barulho, o vai e vem, o entra e sai, uma sensação estranha, uma saudade danada do lugar de onde ele acabara de sair e a certeza de que aquele era um caminho sem volta. Tanto para ele quanto para sua mãe.

Ele nunca conheceu o pai, um advogado bem sucedido, casado, filho de uma família classe média tijucana, que a mãe encontrou apenas três vezes em toda a vida e que nunca poderia imaginar que numa daquelas vezes ela ia engravidar. Falta de cuidado, de responsabilidade, loucura de quem ainda vivia sob aura da adolescência, mesmo que já tivesse passado dos 20 e tantos anos. Não conhece camisinha? Nunca ouviu falar em anticoncepcional? Pensou em abortar, mas não conseguiu dinheiro nem coragem que bastasse e o jeito foi se conformar com o filho que crescia dentro dela. A avó do menino se propôs a ajudar no que fosse possível. Ela jamais cogitou a hipótese de procurar o pai para contar-lhe da gravidez. Ele não teve culpa. Ela deu porque quis, porque estava com vontade, provocou, deu em cima mesmo, criou a oportunidade, se ofereceu para valer. Água ladeira abaixo, fogo ladeira acima e mulher quando quer dar, ninguém segura, já dizia o dito popular. E ela era bem crescidinha, determinada, sabia exatamente o que queria da vida e nunca, em tempo algum, ia depender da vontade de homem e muito menos se rebaixar, se humilhar ou mesmo complicar a vida daquele que lhe serviu de companhia por uns bons momentos de prazer e sexo. Nada mais.

Criou o moleque sozinha ali mesmo pelas bandas da Usina, na rua São Miguel, aos pés do morro do Boréu, bem pertinho da antiga fábrica Souza Cruz de cigarros, que deixava toda aquela área cheirando a fumo fresco, antes de ser prensado, enrolado e empacotado nos maços que viciaram e mataram seu avô. Cozinheira de mão cheia, fazia uns croquetes de camarão com catupiry sequinhos que ela vendia para um bar na rua Garibaldi, aquela mesma rua onde João Bosco e Aldyr Blanc tantas vezes se encontraram para beber e compôr algumas das mais bonitas letras do nosso cancioneiro. Vinha gente de longe para provar os tais croquetes e não demorou muito até que o dono do bar, um português franzino, viúvo, a convidasse para trabalhar com ele dia e noite, noite e dia. Ela gostava da conversa mole daquele português, gostava do jeito meio ingênuo dele se referir a ela, de ver que ele ficava sem graça quando ela o encarava e ajeitava o decote e deixava a alça do sutiã à mostra, de propósito. Ela nunca deu para o português. Afinal, sua mãe sempre lhe dissera que onde se ganha o pão não se come a carne. Mas volta e meia saía com um freguês ou outro, sempre depois que o bar fechava e o português lhe pagava o que lhe devia da féria do dia.

O menino estudou em colégio público, era inteligente, bom em tudo o que fazia. As professoras sempre o elogiavam, suas notas eram sempre as mais altas, o que enchia a mãe de orgulho, mesmo que ela custasse a admitir. Gostava de jogar futebol, nunca teve dificuldade em fazer amigos e nutria uma verdadeira paixão pelos livros. Machado de Assis o havia arrebatado desde muito cedo, quando sem mais nem menos, pegou emprestado na biblioteca da escola um exemplar de Memórias Póstumas de Brás Cubas, "o defunto-autor", obra-prima da nossa literatura. Depois vieram Clarice, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, como se um fosse chamando o outro, até que chegaram Joyce, Pessoa, Sartre, Nietzsche, Kafka, Cony e os diálogos ácidos de alguns romances de Rubem Fonseca. Mas isso foi bem mais tarde.

Morria de ciúmes do português e sua mente fértil - muito provavelmente por conta dos livros que lia - o fazia imaginar as mais estranhas situações envolvendo o dono daquele bar que ele considerava mal frequentado e a mulher que lhe dera a luz. Por muitos anos acreditou que ele e sua mãe eram amantes. Que viviam uma tórrida história de amor às escondidas. Tinha pesadelos horríveis em que a mãe aparecia em cenas pouco ortodoxas protagonizadas pelo português. Acordava assustado, suado, tenso. Sensação horrorosa, ele pensava. Mãe é mãe. É quase uma santa. Mãe não fode, é assexuada, não usa calcinha indecente, não tem vontades, não tem orgasmo. Onde já se viu mãe gozar? Nunca!

Ele sim, gozava. Quando descobriu o prazer solitário, lá pelos doze, treze anos, batia punheta quase que sem parar. Tinha uma coleção de revistas de sacanagem dos mais variados tipos que guardava escondida dentro de uma caixa de papelão embaixo da cama, junto com uns cadernos antigos. Na gaveta da mesa de cabeceira ele mantinha um saco plástico onde derramava o líquido viscoso que esguichava do seu pau, seu companheiro mais que fiel, seu melhor amigo. Pensava na vizinha, nas meninas uniformizadas em suas saias curtas do colégio, na melhor amiga de sua mãe, na atriz da novela, na loura, na morena, na branquinha sem marca de biquíni, na ruiva que ele vira passando na rua outro dia. E pensava também no português filho da puta que comia sua mãe e aquilo que lhe dava uma raiva danada.

Quando ele completou quinze anos o português morreu. Foi de repente. O velhote levou a mão ao peito e caiu ali, bem atrás do balcão do bar, estatelado entre garrafas de cerveja vazias e piso escorregadio de tanta gordura da fritura que vinha da cozinha. Infarte fulminante. Ninguém sabia, mas o português há meses que sentia umas dores estranhas, um desânimo, um cansaço pouco comum em se tratando de lusitanos. A mãe ficou triste por demais. Ele não conseguiu disfarçar um certo alívio. O enterro no cemitério de Inhaúma foi simples. O português não tinha filhos, era de poucos amigos, tinha um irmão com quem não fazia questão de cultivar boas relações e um primo distante, que encomendou uma coroa de flores, a única do féretro, com os dizeres "vá em paz". Ele nunca tinha ido a um velório antes, mas fez questão de ficar ali, bem ao lado do caixão, olhando ora para o defunto, ora para sua mãe. Não verteu uma lágrima sequer. A mãe se debulhava como se tivesse realmente enviuvado.

Passava um pouco das cinco da tarde quando a última pá de cal foi jogada sobre a lápide da quadra de número 711. Fazia sol. Céu azul. Um silêncio sepulcral. Olhou para a mãe. Ela estava cansada, envelhecida, deixando-se curvar pelo peso dos ombros. Ele a abraçou. Se pudesse, pegaria ela em seu colo, segurando-a com as mãos firmes. Pensou em falar qualquer coisa, mas logo desistiu. Dizer o quê? Meus pêsames? Ou contar-lhe que ele sempre soube que os dois tinham um caso? Melhor ficar calado, ele pensou. A mãe também não disse nada. Aliás, a mãe quase nunca lhe dizia nada mesmo. Ele sabia muito pouco sobre a mãe, o que ela realmente gostava, quais eram seus anseios, o que fazer para agradá-la. Se a mãe estava sofrendo naquele momento e se sentindo ainda mais sozinha, o certo era que ele também estava mergulhado numa profunda solidão. Se ele parasse para pensar ia saber que a vida inteira foi assim e que não tinha como ser diferente. Mas talvez ele esperasse uma recepção mais calorosa, vai saber.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

No céu até se perder




Há hoje uma enorme distância entre mim e o resto do mundo.
Feito linha que arrebenta e deixa a pipa solta no céu até se perder de vista e nunca mais.
Nunca mais.
Nunca mais.

sábado, 5 de maio de 2012

Tarja-preta

Era tarde já quando a encontrei perto da lanchonete. Sexta-feira na repartição é sempre uma corrreria, mais que o normal do dia a dia. É um entra e sai danado de gente, um falatório sem fim, um sobe e desce de escadas e pilhas e mais pilhas de processos que têm data para expirar. É o dia em que o chefe parece estar sempre mais nervoso, com os olhos revirados, poucas palavras e ordens, muitas ordens. Volta e meia, quando sobra um tempo para parar e pensar, tenho para mim que trabalho numa fábrica de loucos. Se eu resolvesse traçar um raio-x ou fazer uma espécie de anamnese de cada um daqueles que trabalha comigo, sei não, mas acho que eu teria um tratado sobre psicanálise que faria Freud regozijar de tesão com tamanho material humano.

Foi quando resolvi dar uma pausa para um café que encontrei a tal colega. Quarenta e poucos anos, mas com tudo em cima ainda, aparentando bem menos até. Coxas grossas, canela bem torneada, peitos fartos, sorriso generoso, cabelos bem tratados e sempre cheirosa. Além de bonita é simpática, atenciosa e sabe lidar desde o chefe até a moça da faxina. Não faz nem nunca fez distinção alguma. Deixa grande parte dos homens daquela repartição completamente envolvidos por ela. Eu, inclusive.

Peguei meu café e já ia voltando para a minha sala quando ela me chamou. Perguntou se eu estava muito ocupado e se eu podia bater um papo rápido. Respondi que sim, claro, e que estava mais era a fim de um pouco de conversa fiada àquela altura do dia, precisava relaxar. Deixou escapar logo de cara o tanto que vinha se sentindo incomodada ultimamente e precisava desabafar com alguém. Disse que não sabia o porquê, mas confiava em  mim. Contou que fazia terapia já há alguns anos e que usava remédio controlado, tarja-preta  mesmo. Fiquei espantado, mas procurei disfarçar. Nunca que eu poderia imaginar que uma mulher daquelas tivesse algo de maluca e precisasse se tratar, muito embora trabalhássemos todos naquela fábrica de fazer doido. Logo ela, que sempre me pareceu equilibrada.

Mas que nada. Vivia à base de remédios desde muito cedo, isso sim, era frágil, sentia-se desprotegida, sem um pingo de autoestima, vai entender, ela confessou. Tinha se apaixonado recentemente, coisa que não acontecia desde que ela se casara pela primeira vez, já que a segunda vez casou foi por necessidade mesmo, não por amor. Não tinha estrutura para viver sozinha, tinha dois filhos para criar, uma casa para manter e a juventude para ser usufruída. Esta parte eu tive de discordar, pois já que ela desejava usufruir da sua juventude, que se mantivesse livre, sem as amarras que uma relação a dois impõe. Discordei mas não falei nada, na verdade. Continuei apenas ouvindo.

Ele nunca mais me procurou, ela disse. Convivemos cinco meses antes dele viajar. Foi intenso demais, pelo menos para mim, confessava, enquanto em seus olhos ela deixava escapar uma tristeza profunda, daquelas que a gente vê em filmes de amor, quando a mocinha sofre ao perceber que foi enganada, que aquele por quem ela se apaixonara perdidamente não valia nada e era o verdadeiro vilão da história.

Pude ver ali, naquela muher, uma ingenuidade quase infantil e senti uma enorme vontade de abraçá-la e de dizer que aquele filho da puta não valia nada, que ela poderia ser feliz com quem bem quisessese e que se ela topasse eu poderia fazê-la a mulher mais feliz deste planeta. Eu sim, claro. Livre, desimpedido, solteiro, alguns anos mais jovem, carro novo, apartamento próprio, carreira estabelecida e coisa e tal, mas não falei nada. Continuei ouvindo.

Soube que o tal cara tinha viagem marcada. Ia morar fora por pelo menos dois anos, havia ganhado uma bolsa de estudos no Canadá, um frio do caralho, ia aprimorar o francês, o inglês, os estudos de botânica, as teses, as dissertações. Nunca escondeu isso dela, é verdade, mas chegou a dizer que a amava algumas vezes e quando estavam juntos a entrega era total, só ele e ela ali, onde quer que fosse, e a crença num amor verdadeiro fez de novo surgir nela uma alegria intensa de viver, coisa que ela já não sentia desde que conhecera seu primeiro marido. Chegada a hora ele foi embora. Passaram a se falar via internet, mas não com tanta frequência.

Pouco a pouco ele passou a evitá-la. Houve um dia em que ela estava mais fragilizada que nunca, com problemas no trabalho, a mãe doente, o mundo ruindo ao seu redor e ele estava online. Ela implorou que ele lhe telefonasse, precisava ouvir sua voz, uma palavra amiga daquele que por cinco longos meses fora o responsável por seu coração acelerar e por deixar suas mãos geladas feito a dos adolescentes que marcam um primeiro encontro. Ele não ligou. Disse que ela estava exagerando, que ela confundia tudo, que se ela continuasse daquele jeito ele seria obrigado a deletá-la de seus contatos. Frio. Estúpido. Covarde. Ela só conseguia chorar e se martirizar por ter sido tão sincera todo o tempo, por não ter conseguido mascarar seus sentimentos, por ter chegado a pensar em largar tudo para viver ao lado daquele homem que não se deixava mostrar de verdade quem ele era. Ele sim a confundia, parecia não aceitar o que sentia, escondendo-se sob uma capa, vestindo as armaduras sujas daqueles que não conseguem se entregar ao lado apaixonado da vida.

Ela me contou da vez que foram à praia porque ele queria se despedir do mar. A viagem estava se aproximando, seria dali a poucas semanas e eles poderiam aproveitar os dias de sol que ainda restavam antes de o inverno chegar para valer. Percorreu com ele praticamente toda a orla da cidade, pisaram descalços na areia, deram alguns mergulhos, foram almoçar num restaurante com vista para a restinga, conversaram a tarde toda, riram até, viram o por do sol do alto de uma pedra bonita e terminaram a noite num quarto de motel feito fazem os casais enamorados. Ele lhe disse que nunca mais esqueceria aquele dia. Ela disse que jamais esqueceria dele. Ele já a esqueceu, ela tinha certeza. Ela estava enlouquecendo.

Por mais que tentasse não pensar nele, dia e noite lembrava de seus pelos, de sua barba, de sua perna fina, seus cabelos negros, sua voz suave, seu hálito, tudo. Ele nunca mais apareceu online. Nunca mais deu sinal de vida, muito embora ela soubesse que ele estava bem, vivendo a história que escolheu viver. Dela ele não queria mais nada, era parte de um passado que talvez preferisse esquecer, apagar, sabe-se lá por que cargas d´água. Nem amizade, nem um sentimento, nada. Uma pá de cal, um ponto final sem nexo, feito uma história feia, proibida, sem explicação. Ela agora sabia como era morrer de amor.

E eu ali, só ouvindo.

sábado, 28 de abril de 2012

Nem uma brisa

O vento soprou forte no final daquela manhã e, por detrás das montanhas, nuvens se aglomeravam e desciam sob as encostas anunciando mais uma frente fria. Quem mora na zona norte ou no subúrbio do Rio de Janeiro e tem como barreira o Maciço da Tijuca, onde ficam as antenas de tevê e rádio do Sumaré, quando vê as nuvens chegando, muitas vezes tem a impressão de que o cume dos morros está coberto por neve. Ou flocos de algodão. Chega a ser bonito. E o barulho que fazem as rajadas de vento, como se soprassem gritos agudos invadindo todas as frestas, derrubando árvores, postes, levantando a poeira a cada cruzamento ou esquina. 

Do outro lado da calçada uma menina linda corre assustada na ponta dos pés, num misto de balé e malabarismo, pois ao mesmo tempo segurava a saia, os livros, a bolsa a tiracolo - que teimava em voar feito pipa - e desviava de quem porventura viesse em sua direção. Com os olhos cheios de terra trazida pelo vento ficava difícil enxergar e a menina, com as pupilas dilatadas, lindas, tentava segurar o choro. Ela tinha pavor de ventania.

Dois quarteirões a frente, a marquise de um edifício alto com grandes portões de ferro pintados recentemente, servia de abrigo a uma dezena de pessoas. Algumas gotas de chuva pesada já começavam a cair. Galhos secos, sacos plásticos, caixas de papelão, latas de cerveja e jornais velhos voavam como se tivessem vida, traçando rasantes. A menina linda tinha conseguido chegar até ali debaixo. A saia já comportada, o cabelo desarrumado, a pele suja, os livros meio que amassados e a bolsa ainda fora de lugar. A vista ardia, a respiração parecia menos ofegante, mas o vento ainda castigava e aquele espaço sob a marquise ia diminuindo a cada instante. Gente de todos os cantos ia chegando na tentativa de se proteger daquele capricho repentino da natureza. Raios e trovões ainda completavam o pesadelo daquele final de manhã. Ela estava assustada a menina linda.

A noite anterior não tinha sido das melhores. Estivera na casa da sua mãe. O pai havia morrido há poucas semanas e a viúva estava inconsolável com a perda. Há dois anos a doença veio arrasadora e levou daquele homem outrora forte toda a musculatura e a alegria de se saber vivo. Deixou-se dominar pelas dores e as articulações que travavam-lhe os movimentos mais sutis. Ela nunca sonhara em perder o pai tão cedo. Não que fantasiasse a imortalidade dos super-heróis, pois desde muito pequena tivera noção de que tudo tem um fim. Mas a imagem que sempre fizera do pai era a de um homem forte, corajoso, de voz grossa, sorriso largo, generoso. Ela achava o pai lindo, mesmo que já lhe faltassem cabelos, mesmo que a barba fosse branca e cada vez mais rala, mesmo que as rugas formassem sulcos em seu rosto e a pele soltasse de seus braços outrora tão ativos. Gostava de ouvir as histórias que o pai contava e sentiu uma saudade imensa de quando ainda criança o pai a embalava até que pegasse no sono. A mãe também amava aquele pai e o queria para ela mais que tudo. Disputava com a filha a atenção do marido praticamente desde que a menina nascera. Ela era uma linda menina. Tão linda quanto a mãe um dia também fora.

Na noite que antecedeu a ventania mãe e filha conversaram sobre coisas que nunca haviam conversado antes. Falaram da vida e do quanto foram felizes antes da doença do pai. Dos ciúmes que a mãe sentia dela quando o pai fazia suas vontades, da raiva que tinham uma da outra quando discordavam de um assunto qualquer, do orgulho de terem vencido as dificuldades que o dia a dia apresentava, da vez em que a filha torceu o pé e o pai a carregou no colo por cinco quarteirões até chegar em casa e aplicar compressas com gelo e do cheiro do perfume que o marido trouxera para a mulher de sua única viagem à Europa. A mãe guardava o frasco até hoje como se fosse uma relíquia, um talismã. A filha amava o cheiro daquele perfume e só de falar nele podia sentir todo aquele aroma de volta.

Falaram também das contas e das dívidas que o pai deixara. A doença consumiu todas as reservas, que não eram muitas. Só restou o apartamento no Andaraí, que estava com o condomínio há meses atrasado. A sociedade no botequim havia sido desfeita. Precisavam daquele dinheiro. A pensão que o pai deixou não ia dar para arcar com todas as despesas. A filha nunca trabalhara antes. A mãe ajudava no balcão do botequim e, com sorte, o ex-sócio do marido talvez precisasse de seus serviços. Ia ajudar a reforçar o orçamento. A menina linda ia ter de arrumar um emprego e esquecer os planos de ir morar na França, fazer intercâmbio, conhecer outras culturas. Deixa isso para mais tarde, quando as coisas melhorarem, você não vai querer me deixar sozinha, vai?

A filha não sabia o que responder. Chorou não por saudade do pai, mas por perceber que a vida estava lhe dando uma rasteira, que suas vontades não iam prevalecer desta vez, que era hora de esquecer os sonhos, que a vida real é muito dura e que o destino é traiçoeiro. Ela tivera noção ali naquela noite dos limites que se impõem à nossa vontade e, como um soco na boca do estômago, se deu conta da dor que a invadia. Levantou, foi até a cozinha, bebeu um copo d´água gelada, perguntou se a mãe queria. A mãe, que àquela altura não sentia sede, não sentia fome, não sentia nada, sequer respondeu. A filha não insistiu. Bebeu sua água, voltou para a sala, abriu a janela.

Nem uma brisa.