terça-feira, 18 de setembro de 2012

Continuo vivo

Entretanto eu continuo vivo.
Mesmo que não exista mais razão
para que todos lá fora
afiem suas lâminas
e mirem em minha carne,
eu continuo vivo.

Por que sangra em mim todas as feridas
de um mundo que se desfaz em chagas
abertas na dor sem sentido?

A espada que me corta.
O tiro certeiro em minha testa.
A festa de despedida.

Eu continuo vivo.

Entre tantos que não acreditam
e que me fitam.
Incrédulos.
Pobres.
Coitados.
A mim dói muito mais que a eles.

Porque são todos cegos,
presos em suas cavernas,
submissos às menores vontades,
alianças do inimigo comum.
Porque a vida é um infinito de vaidades
enterradas a sete palmos de meus versos.

Aqui jaz não eu,
mas você,
que jamais saberá de mim.

Muito embora eu continue vivo.


quarta-feira, 12 de setembro de 2012

O sonho da tatuagem na coxa

Não fique chateado se eu lhe disser que sonhei com você e seu irmão gêmeo na noite passada. Fazia frio em meu quarto, mas as ruas as quais atravessamos estavam ensolaradas e de longe pude perceber que eram vocês. Idênticos. O mesmo corte de cabelo, as mesmas pernas finas, a mesma barba rala por fazer a sombrear-lhes as faces, os olhos arregalados e expressivos até que me fitaram e correram para dentro de um bonde sobre trilhos que desciam ladeiras numa velocidade além da permitida e desapareceram outra  vez.

Era uma manhã azul, com algumas nuvens baixas, abafadas e a assombrar-me claustrofobicamente. Muito barulho a perturbar-me, a desconcentrar-me e eu ali tentando fitar tanto um quanto o outro, sem saber ao certo quem era quem, mas feliz por vê-lo fosse quem você fosse porque eu sabia que só em sonho mesmo para poder encontrá-lo outra vez. Até agora não sei bem ao certo onde eu estava e o que eu fazia. Das minhas mãos pingava um suor amargo e minha pele branca ruborizava ao menor pensamento. Insano. Eu era louco. Sempre fui louco. Mamãe dizia que eu era um descompensado e que tinha medo das minhas reações, dos meus gritos, da minha voz grossa que até hoje ecoa em verso e prosa e histeria. Já uma outra tia me disse em seu leito de morte, na UTI coronariana de um hospital particular, em meio a tubos e aparelhos que ainda a mantinham viva, que eu era especial. Especial por quê? Eu era como todo mundo deveria ser, tinha um certo cuidado no trato com o outro, uma preocupação tola em tirar as coisas da ordem natural, mas de especial eu não tinha nada.

Esta minha tia morreu há mais de vinte anos e volta e meia vem me visitar em meus sonhos e vive a me encher de dúvidas sobre o que eu sou, o que eu fui, quem eu poderia ser e quem eu jamais seria. Estas dúvidas sempre me abateram, mas nunca me importei de fato. Certo mesmo é que eu, ali sozinho no quarto frio, nem percebia que estava dormindo e que ao abrir os olhos estaria tudo bem, muito embora naquele sonho eu tivesse uma certeza: eu estava doente e tinha noção do pouco que me restava. Rostos desconhecidos passavam ao meu lado e me diziam que eu ia morrer, que eu estava magro demais, que meus cabelos estavam caindo, que minha barba estava por demasiado branca e então, naquele devaneio onde eu por acaso vira ele e seu irmão gêmeo, no fundo sabia por que sofria e por que me deixara abater.

O medo da morte fez com que eu telefonasse para uma outra tia, esta sim viva, que em instantes foi ao meu encontro. Nua. Completamente despida ela atravessara a rua movimentada sem que ninguém a percebesse e foi ter comigo, me socorrer, pois eu estava morrendo e antes de morrer sofria de um medo inexplicável. Como se ela pudesse me salvar, pôs-se a desfiar um rosário de conselhos inúteis, dicas estranhas e outras tantas palavras absurdas que eu já me esqueci. Receitou fórmulas prontas, dessas que mandamos manipular em farmácias que proliferam nas esquinas dos bairros mais afastados. Eu não queria remédio. Eu queria é sorver sem culpa e sem demora o veneno da redenção. Era essa a falta que meu corpo sentia. Queria em doses cavalares do mesmo jeito que eu tomara há alguns meses e que de tempos em tempos me corroía e contraía minhas artérias sem dó nem piedade, adormecendo-me os braços, amortecendo-me a queda, ecoando em minha mente a imagem daquele que eu não encontraria jamais.

Mas você veio em minha direção, invadiu meu sonho, atendendo a um pedido que eu fizera desde sempre, desde que você deixou de existir naquilo que consideramos real. Porque você também morreu, eu sei, e jaz a figura que passou a permear minhas vontades, meus desejos, acompanhando minha solidão por onde quer que eu fosse. E neste caminho eu não sei mais quem você é e nos atalhos vêm as dúvidas outra vez em relação a tudo o que eu um dia pensei em me tornar. Uma amiga vem de novo e me diz que não entende esses meus múltiplos. Nem eu, confesso. E aquela minha tia ali completamente pelada, com seus seios fartos a roçar na minha pele, sorriso franco, a tatuagem na coxa esquerda a me erotizar, me enrijecer e o medo de ejacular e ser pecado porque, ora bolas, é minha tia ali, por mais que ela se parecesse com a menina da repartição e mesmo que eu não a conhecesse muito bem, ela estava ali para me salvar e eu nunca deveria tentar desrespeitá-la. Nem em sonho.

Você então desceu do bonde ávido por pecados e veio em minha direção. Seu irmão a nos observar e o adiantado das horas apressavam seu caminhar lépido, cortante, e em instantes estava em cima de mim, com o queixo a se apoiar em meu peito, como sempre fazia, a me encarar de muito perto, a me deixar com a visão embaçada, o ar ofegante, os mesmos olhos arregalados e tristes. Suspirei e senti até mesmo o seu hálito forte enquanto de sua voz ainda não se ouvia nada, mas pude sentir o coração batendo acelerado feito os primeiros acordes de uma escala em execução. Havia música no sonho, uma sonoridade específica que eu não saberia distinguir sequer quais instrumentos faziam parte ou mesmo se as notas eram graves ou harmônicas. Era apenas sonho. Eu e você ali. Ao nosso lado, minha tia, ainda nua, agora ainda mais parecida com a menina da repartição, morena simpática da coxa grossa tatuada, a exibir o sexo sem pudores, sem vergonhas, sem peso, nada, nua. Ela a observar o que fazíamos e a cantar para que minha morte ainda demorasse a chegar porque queria me ver feliz na hora da partida e eu e você ainda nem havíamos nos beijado.

Eu tentei me lembrar da música que tocava no final, mas não consegui. Tentei lhe segurar, mas não me foi permitido. Continuei a  prestar atenção nas ancas da morena que ora fora minha tia e que você sequer se dera conta da presença. De longe, do outro lado da rua, seu irmão cuidava de uns cavalos. Já não havia mais bonde, nem barulho, nem nuvens cinzas a abafar o azul do céu e a encobrir o que se quer do dia. Não havia remédio. Não havia solução. Apenas a felicidade de ter lhe encontrado no que eu sabia se tratar de um sonho, algo que não existe, assim como eu ou você.

Porque todo o tempo em que estou acordado você está em mim e eu estou em você, mesmo que eu não lhe conheça e nem você a mim. E eu continuo com o gosto do beijo do desconhecido e com minha língua a roçar na tatuagem da coxa nua daquela que já não é ninguém a me encher de desejos estranhos enquanto tudo ao redor se desfaz.

É sonho.


quinta-feira, 6 de setembro de 2012

A morta-viva

Lá estava ela mais uma vez na lanchonete da repartição. Fazia tempo que não a encontrava por lá. A correria do dia a dia tem uma enorme responsabilidade no distanciamento entre as pessoas, e as relações de amizade, se não bem cuidadas, acabam evaporando. Eu nem sou tão amigo dela assim. Mantenho uma relação cordial apenas. Até porque, nunca me senti verdadeiramente à vontade ali para fazer amigos. Nem ali nem em lugar algum. Mas sou um bom ouvinte e, como já dizia minha avó, tenho saco de filó. Portanto, volta e meia sou cooptado para ouvir uns desabafos, pieguices de gente dramática, que remói dor de cotovelo, que fala demais. Tenho um conhecido que diz que eu atraio gente louca. Desconfio que seja verdade.

- Eu morri para ele - ela me disse assim que eu sentei ao seu lado com meu copo de café nas mãos.

- Ele me ignora solenemente, como se eu tivesse morrido. Ou pior: como se eu nunca tivesse existido. Quando nos vimos pela última vez estava estampado em nossos olhos todo o amor que descobrimos sentir um pelo outro. Não foi por falta de amor que nos separamos, mas por circunstâncias da vida. Muito embora tais circunstâncias pudessem ser transpostas. Nada poderia impedir nossa felicidade, a não ser nós mesmos, com nossos medos que travam nossos corações e nos impedem de seguir adiante e experimentar o desconhecido. Hoje continuo com medo, muito mais até, e meu coração bate mais devagar, sigo meu caminho com o olhar distante, como se eu estivesse perdida, sem rumo, sei lá. Há quanto tempo nós não conversamos?

- Pra lá de mês - respondi mirando seus olhos tristes.

- De lá para cá já pensei tanta coisa, tantas bobagens já se passaram na minha cabeça. Voltei a sair com as minhas amigas, resolvi tentar me divertir, ver gente bonita, ouvir uma boa música, dançar. Até beijar na boca eu beijei. Mas não me esqueço dele. Acordo e durmo pensando nele, querendo saber se ele está bem, se já tem novos projetos, se conseguiu o diploma, se continua lindo, essas coisas tolas que a gente pensa quando está apaixonado. Você sabe, não é?

Continuei sem tirar os olhos dela, mas não lhe respondi.

- Ainda sinto muita saudade e me dá um aperto no peito toda vez que penso que nunca mais vou encontrá-lo, que ele vai fazer de tudo para não esbarrar comigo e se por acaso isso acontecer, está arriscado a ele fingir que não me conhece, virar o rosto, atravessar a rua, mudar de calçada. Como se eu fosse um ser asqueroso, uma mulher suja, contaminada, uma doença, detentora de todo mal. Quando isso não é verdade. Posso não ser pura, muito menos um anjo de candura, mas ainda guardo em meu peito um amor enorme, uma chama que trago acesa e que teima em me arder, em me queimar por dentro e que me revelou um sentimento lindo que eu também não conhecia. O que eu faço com isso, me diz?

- Não sei.

- Ninguém sabe. Já fui a pai de santo, astrólogo, igreja, terreiro, benzadeira, tudo. Já ouvi muitos conselhos, mas nenhum que me convencesse. Porque não adianta você chegar para mim e dizer "esquece". Não é assim que funciona. Se fosse assim, seria fácil demais. Talvez para ele tenha sido fácil. Talvez ele até tenha a fórmula para enterrar sentimentos tão nobres como o amor. Ou talvez ele nunca tenha me amado, o que é muito mais provável. Porque ele não sabia o que era amor, ele me disse uma vez. Disse ainda que nunca tinha ido para a cama com alguém que o tivesse deixado tão à vontade ou que lhe tivesse despertado tanto desejo. Não só pelo sexo em si, mas pelo carinho e por tudo o que envolvia a  nossa relação. Confesso que sinto falta do cheiro da pele dele, de ver aquele corpo esguio nu na minha frente, de me encostar nele, da língua em meu pescoço, das mãos nas minhas coxas e do encontro de nossas bocas.

Assim eu fico excitado, pensei.


Pensei também naquela mulher linda ali na minha frente, que tão pouco me conhece, a me contar tantos detalhes de uma relação amorosa que eu não tinha o por quê de saber. Nunca consegui entender como é que algumas pessoas conseguem se expor tanto, sem travas no que se refere à vida particular, principalmente a sentimental. Sempre fui adepto da máxima que diz que o que acontece entre quatro paredes, fica entre quatro paredes. Se eu gosto de apanhar, de bater, de xingar, de papai e mamãe, de oral, de anal, o escambau, o problema é meu e ninguém precisa saber. A não ser quem está comigo entre as quatro paredes, claro. Nem em mesa de bar, com o álcool transbordando nas ideias e amolecendo a língua, isso é coisa que se comente. E aquela mulher linda ali na minha frente, em plena lanchonete da repartição, a me contar seus particulares.

Quisera eu pudesse ajudá-la com alguma palavra de conforto ou de estímulo para ela sair daquela situação desconfortável em que se metera, mas pouco entendo das coisas do amor e talvez até me identifique com o tal sujeito que sumira da vida dela. Assim como ele, acho, eu nunca amei ninguém. Nunca soube o que é sentir saudade e jamais sofri por quem quer que fosse. Sofro por mim e as minhas dores já me bastam. Não poderia uma outra pessoa me fazer sofrer ainda mais. Eu não permitiria que alguém entrasse em minha vida para me fazer sofrer. Ninguém nunca iria me colocar no chão, me fazer de capacho, me usar, brincar comigo e depois desaparecer, me ignorar, não me responder, não querer me ver outra vez. Agir como se eu nunca tivesse existido, como se eu fosse alguém que pudesse ser descartado, enterrado vivo. Exatamente como ele havia feito com ela. Por isso eu não amo e nunca vou amar ninguém. Mas eu não disse nada disso a ela. Até porque, acho que ela não iria dar ouvidos.

- Preciso ir.

- Eu morri para ele - ela disse outra vez.

- Mas quantas vezes morremos?, retruquei, já levantando. Morremos de fome, de sede, de raiva, de nojo, de tesão, de vontade. E por isso continuamos vivos.

- Continuo viva, porém morta.

Bebi o último gole do meu café já frio, segurei nas mãos dela e me despedi sem dizer mais nada, apenas olhando aqueles olhos vacilantes. Voltei para a minha sala, para os meus projetos, para os meus prazos apertados. Mas dali até o final do expediente, me flagrei umas duas ou três vezes pensando naquela mulher e no quanto ela estava sofrendo. Agradeci a Deus por nunca ter me dado a oportunidade de encontrar um amor nesta vida. Agradeci por minha solidão, por minha vida sem grandes emoções, vazia até, e pelo silêncio que me acompanhava nas noites em que eu brigava com o sono na escuridão do meu quarto. Eu era feliz daquela maneira.

Pelo menos eu queria acreditar que era. 

sábado, 1 de setembro de 2012

A reboque

Quinta-feira. 16h10. Para variar, estou atrasado. E para piorar, rua Marquês de Pombal engarrafada. Ônibus de um lado, caminhões do outro, e eu ali, espremido e ávido por uma vaga para estacionar meu carro. Mensalão comendo solto, um deputado já condenado, pautas inacabadas, três páginas do site para editar, eleições Brasil afora, cabeça em disparada, até que entre uma kombi e um cone, vi que tinha espaço suficiente e não pensei duas vezes: liguei a seta, engrenei a ré, deixei que o carro que estava atrás de mim ultrapassasse e manobrei todo orgulhoso e agradecido à sorte de encontrar uma vaguinha a poucos metros da entrada do jornal. Peguei minha mochila, meu maço de cigarros, pendurei o crachá no pescoço, me benzi e fui para a guerra. De lá não sairia antes de meia-noite.

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Não sei quem foi que me disse outro dia que a vida é um campo de batalhas. Já faz muito tempo, porém, que eu aprendi que é preciso matar um leão por dia. De tanto ouvir esta frase quando pequeno, eu morria de medo de virar adulto porque achava que mais cedo ou mais tarde eu ia dar de cara com o rei da selva sabe-se lá aonde e acabaria esquartejado, servido em pedaços para uma família de felinos esfomeados e com minhas sobras disputadas por hienas e urubus. Coisa de criança. Bastou eu crescer um pouco para saber que não existiam leões soltos nas ruas da cidade. Foi então que me dei conta de que eu vivia entre selvagens. Éramos todos animais, eu pensava. Mas eu pensava. E sendo assim, fazia toda a diferença. Não que o que eu pensasse era o certo, até porque, nunca quis ser o certo. Gostava mesmo - e gosto até hoje - de caminhos tortos, de gestos espalhafatosos, de gargalhadas intermináveis, de olhar no olho do outro quando estou falando, de prestar muita atenção ao que estão me dizendo, de ficar em silêncio, de me recolher e ter o direito de desaparecer por um tempo.

Porque é preciso descansar da luta.

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Quinta-feira. 22h30. Desde que cheguei no jornal, só fui ao banheiro duas vezes. Volta e meia brinco com meu chefe dizendo que o jornal vai ter de me dar um rim novo quando eu sair de lá. Fora um pulmão, um coração e muitos fios de cabelo.O ritmo de trabalho numa redação é na maioria das vezes brutal. Informação em cima de informação, versões, fatos, denúncias, bastidores, falatório, telefones que não param de tocar, o segundo clichê não pode atrasar, olhos vermelhos revelando cansaço, fome, dor de cabeça, vontade de me esticar. Resolvo descer, fumar um cigarro e dar uma olhada no carro, só como quem não quer nada. Cadê o carro? Foi ali mesmo que eu parei? Olhei para um lado, para o outro, mais adiante, na rua detrás não foi. Tudo isso numa fração de segundos. Roubaram? Rebocaram? O segurança do jornal não soube responder, tinha acabo de chegar.

Traguei o cigarro até a guimba com vontade, num misto de raiva e resignação. Dali a uma hora e meia eu tinha que estar com minhas páginas prontas. Entre uma matéria publicada e uma foto legendada, dei uns dez telefonemas, acessei os sites do DETRAN e da Guarda Municipal na ânsia de descobrir se meu carro estava em algum depósito. Minha manchete era: PT anuncia substituto de João Paulo Cunha para eleição em Osasco. Minha preocupação era: onde está meu carro? Liga daqui e clica de lá, descubro que ele foi rebocado às 16h40 e que está no depósito da rua Benedito Hipólito, bem ali atrás do jornal. Imprimo os boletos, me conformo com o prejuízo e me preparo para acordar cedo no dia seguinte, acompanhado do leão que não me abandona nunca nessas horas.

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Sexta-feira. 9h40. Estou numa festa, a mãe do marido da minha cunhada me oferece um pedaço de quindão e antes mesmo que o provasse, toca o celular e eu acordo. É a Claudia, a leoa, me perguntando se eu não ia buscar o carro e se eu queria carona. Respondi que já estava levantando, mas que ainda ia passar no banco para pagar as taxas e que pegava um ônibus mesmo, sem problemas. Foi o que eu fiz. Corri no banco, enfrentei uma fila desumana, paguei o que devia, entrei num ônibus, paguei a passagem e só então me dei conta de que esqueci as chaves do carro em casa. Fiz sinal pro motorista parar, voltei em casa, peguei a danada da chave, desci minha rua, vi que não tinha mais trocado para pagar outra passagem, tiro R$ 50 do bolso, dou para o trocador que olha pra mim de cara feia.

Minha cara está mais feia que a dele.

O trânsito está bom, chego no depósito rápido, pouca gente na fila, o sistema está fora do ar e sem previsão para voltar. Respiro fundo. Conto até dez. Dou um pulo lá fora. O sistema volta, sou atendido e uma gordinha por trás das grades me diz que está faltando um documento autenticado e que sem ele meu carro não pode ser liberado. Eu pergunto para ela se ela tem noção da quantidade de praga que eu estou rogando naquele exato momento e ela me diz que tem o santo forte.

Sorte a dela.

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O relógio da Central do Brasil marcava meio-dia quando eu entrei de novo num ônibus para voltar pra casa e buscar o tal documento autenticado, pensando em quantas coisas podem dar errado e que eu poderia esbravejar, xingar, gritar, dizer que o prefeito é isso, que o governador é aquilo, que só tem ladrão, que nada é para facilitar a vida do povo e por aí vai. De nada adiantaria, eu falei baixinho. Num banco ao lado, uma mulher com os pés inchados e um vestido surrado de dar dó jamais poderia imaginar o que se passava comigo. Na minha frente um casal de idosos com olhar sossegado também não. O trocador, jovem, me parecia cansado de tanto que travava e destravava a roleta entre freadas e buzinas. Sequer olhou para mim quando eu lhe dei o dinheiro da passagem.

O motorista parecia atento.

Eu ainda não tinha almoçado, precisava tomar um banho, levar meu cachorro para fazer xixi e cocô na rua, voltar ao depósito, torcer para não faltar mais nada e poder liberar meu carro e correr para não chegar atrasado no jornal. Atualmente eu vivo correndo, sempre sem tempo para nada. Olho pela janela, está um dia lindo lá fora, um céu azul me chamando pra dar um rolé, o final de semana chegando e então me dou conta que tudo pode ser muito engraçado: o reboque, a gordinha atrás da grade, a chave que eu esqueci, as taxas que eu tive de pagar, os leões querendo me engolir, todo mundo na batalha, na selva, na luta, na guerra que não para.

A vida às vezes tira sarro da nossa cara. A vida é piada.