sexta-feira, 28 de março de 2014

A velha, o lixo e os versos

Não faz nem quinze minutos que ele encontrou aquela velha já quase cega no corredor a despejar seu lixo e a lhe dizer, sem dó nem piedade, que ela havia lido seus escritos e que ele não passava de um autor menor, sem originalidade, sem estilo, do tipo que só consegue escrever sobre o mesmo tema e, mesmo assim, de modo raso, tal e qual um aluno mal aplicado que ao estudar piano não consegue dedilhar uma nota afinada sequer. Disse-lhe tudo assim, de uma tacada só, enquanto arrastava duas sacolas de restos de comida e umas latas de onde escorria uma água imunda e mal cheirosa.

Ele havia acabado de chegar de mais um dia tenso na repartição, o calor ainda castigava, o terno suado já sem a gravata, o sapato a lhe apertar os pés inchados, os mais de dez processos que pesavam na pasta que trazia a tiracolo e a vontade incontrolável de chegar em casa, tirar toda aquela roupa, tomar um banho, ligar o velho ventilador e se esparramar no sofá da sala depois de comer qualquer coisa que fosse, pois não sentia mesmo muita fome à noite. Ele só pensava em descansar um pouco, esticar as pernas, ver um programa na televisão, arejar as ideias por alguns instantes, antes de levantar e debruçar sobre a papelada que ainda precisava analisar para a reunião da manhã seguinte.

A situação na repartição não estava nada boa, os clientes estavam cada vez mais escassos, as cobranças estavam maiores que nunca e para piorar havia o fantasma de uma demissão em massa que deixava o clima ainda mais intragável. O cargo que ele exercia, que não era lá grande coisa, claro, deveria estar na reta, pensava, enquanto aquela velha, bem ali na sua frente, ao lado da lixeira, que há anos vivia sozinha, sem ao menos uma visita da filha ou dos netos, a descarregar todos aqueles impropérios sem sentido, sem necessidade, sem razão. Ela apertava os olhos na tentativa de melhorar a visão e apontava o dedo indicador em direção ao rosto dele enquanto falava com a voz arranhada pelo tempo.

Disse-lhe na cara dura que ele era um frouxo, um covarde, que ele jamais deveria ter feito o que fez e que se ela fosse um pouco mais jovem e ainda tivesse forças dava-lhe uma boa surra de cinto, com a fivela lanhando a carne, porque era aquilo que ele merecia desde criança, já que seus pais não souberam educá-lo e por isso mesmo ele havia se tornado um homem sem caráter, um descansado, sem nenhum valor. Afirmou que para ela e para todos os moradores do condomínio era uma vergonha tê-lo como vizinho e que dia após dia ela rezava e fazia uma dezena de promessas a todos os santos para que ele mudasse dali.

Ele também não via a hora de mudar daquele apartamento, de sair daquele bairro, de nunca mais encontrar com aqueles vizinhos insuportáveis que pareciam sempre estar mais interessados no que se passava na sala ao lado do que com as suas próprias vidas. Todas aqueles festinhas de finais de semana, regadas a galhofas, fofocas e cerveja de má qualidade, o deixavam irritado e deprimido por saber que ele não pertencia àquilo. Não era aquele o mundo que haviam lhe prometido. Não que ele fosse melhor que ninguém - muito embora fosse - mas tudo ali parecia muito pequeno, uma vida sem sentido, dormir e acordar feito máquina que a gente liga e desliga e pronto. Ele precisava de mais. Ele sabia que merecia mais.

E aquela velha ali a entorpecer-lhe a mente, a confundi-lo com um discurso equivocado, uma anciã que foi esquecida por todos, cuja única companhia eram os livros velhos que ela fazia questão de ler uma centenas de vezes, sempre os mesmos, e vivia a repetir em voz alta, sozinha, na cama de viúva de madeira nobre, sempre os mesmos versos de Andorinha, um poema de Manuel Bandeira, "passei o dia à toa, à toa... passei a vida à toa, à toa".

Era como se ela soubesse, como se anunciasse a sentença de não ter sido quem ela realmente gostaria de ser. Ela, a velha, havia se tornado amarga, indesejável, repugnante, só que a idade avançava e a deixava anestesiada, sem que ela fosse capaz de perceber o que quer que fosse definitivamente real ao seu redor.

Ele, que jamais escrevera uma rima, que não tinha a menor aptidão com as palavras, frases e orações, que jamais sonhara com sucesso ou reconhecimento, que só pensava em levar uma vida digna e ganhar um pouco mais de dinheiro para poder sair dali, alugar um apartamento num bairro melhor, também estava meio que anestesiado e não deu muita importância ao que a velha tinha para lhe falar.

Ele, que morria de pena dela e de toda aquela solidão, estendeu-lhe a mão, pegou as sacolas com os restos de comida e as latas velhas e despejou no lixo sem falar nada. Apenas olhou a velha senhora bem dentro dos olhos e, num arroubo de gentileza, deu-lhe um abraço, ajeitou-lhe os cabelos, acompanhou-a até a porta de casa, deu-lhe um beijo e se despediu. Em silêncio.

Ele, então, virou as costas e seu andar arrastado foi tudo o que se ouviu no corredor.

Lá dentro, a velha já não lembrava mais se havia lido os versos e pôs-se a procurar os livros. Os mesmos livros.





terça-feira, 25 de março de 2014

Todo poeta

Todo poeta é um mistério
e eu também tenho cá as minhas questões profundas:
sou subsolo, sou santuário,
sou um misto de palavras desenterradas à boca do estômago.

E me pergunto, então, por que às vezes minha poesia é como vômito?

Estrofe por estrofe, verso por verso, rima por rima,
é a poesia quem rasga minhas entranhas e se expõe,
se traduz e se apodera do ritmo vacilante que outrora havia em minhas mãos.

Faz-se a mágica e com ela surge o lado íntimo que se abre na fissura,
rasga feito a fenda, escorrega, ri, brinca,
navega contra a corrente e deixa de lado toda e qualquer razão.

Todo poeta é um laço
e eu gosto mesmo é dos abraços daqueles que se fazem poetas:
os que inventam, os que criam,
os que vivem soltos e deixam correr livre a imaginação.

Onde estão eles?
Onde eles estão que não aqui na harmonia breve das minhas ideias?

Porque o tempo dos poetas é lírico, eu sei,
e se eterniza no silêncio leve da madrugada,
quando a melodia invade a nossa alma
e tudo ao redor se transforma em canção.

Não há barulho lá fora, eu não falo nada
e já não enxergo mesmo muito bem.
Aqui dentro de mim o céu.

Todo poeta é infinito.


quarta-feira, 19 de março de 2014

Alone

Um dia como outro qualquer
Um vento que sopra abafado
Um céu de nuvens carregadas
Um nó que aperta no peito.

Um jeito que parece incerto
Um gesto como se fosse o único
Um gosto amargo que sobra na boca.

O fel.

Um momento que é quase nada
Um tempo que se desfaz inteiro
Um rio que vai dar no mar
Um cais outrora repleto.

Nem ao menos um navio
Nem se ouvia alguém por perto
Nem se eu implorasse um breve adeus.

Só eu ali, alone, e mais ninguém.

Por que me fiz deserto?