sexta-feira, 22 de junho de 2012

Bonança

Às vezes é preciso parar e ouvir o lado bom da história. Rever lições esquecidas, mesmo que tenhamos de voltar as páginas e ler de novo uma, duas, mil vezes a mesma frase até que ela ganhe um novo sentido. Então você vê que é o mesmo parágrafo, mas com um não sei quê de diferente.

Tenho um amigo que diz - e eu acredito nele - que o nosso maior esforço por estas bandas é aprender a reinterpretar. A vida é um palco e você é o personagem, mas isso não quer dizer que você tenha de interpretar sempre o mesmo papel, ele repete toda vez que me encontra.

Diz também que a vida fica muito mais divertida quando observada de outros ângulos e que de pernas para o ar é tudo ainda mais engraçado. Pode ser, eu digo.

Ele me diz que eu deveria ter certeza, que o que a gente tem de bom e positivo é a firmeza, é o que nos faz seguir em frente, passo a passo, pé no chão.

Esse meu amigo foi o mesmo que me disse tempos atrás que nunca teve vergonha dos seus rascunhos. Que ele era mesmo um esboço de algo que não se sabia nem melhor nem pior, mas outro que não aquele. Ele.

Falou que a realidade é bem melhor que o sonho, mas que o sonho faz um bem danado à realidade e que uma coisa é o que move a outra. Simples assim.

Que é preciso respirar com calma, puxar o ar bem fundo, inflar o peito, encher os pulmões e reabastecer. Porque não somos máquina. Ou somos?

Que tem o lado de fora e o lado de dentro e que muitas vezes o lado de dentro é mais interessante que o lado de fora, mas que quem olha muito para dentro está, na verdade, por fora. Um egoísmo danado.

Porque chega uma hora em que cansa, dá vontade de voltar a ser descompromissadamente criança e nem se dar conta que no mundo chamado real existem barreiras, que os adultos se isolam, criam fronteiras, sobem muros, pulam, pisam, matam. Não.

Leia o texto de novo, ele sempre me diz. Tente ir mais devagar da próxima vez e veja se consegue repetir as mesmas rimas e entender nas entrelinhas só o que for mais bonito.

Por mim.

Porque sou verso manso que deságua na poesia como a chuva que declama em temporal.


quarta-feira, 13 de junho de 2012

Reprises

A pergunta que eu não quis ouvir.
A resposta que eu não soube dar.
A verdade que eu não percebi.
Tudo aquilo que eu deixei pra lá.

Eu via tamanha beleza onde sequer havia.
Vazio.

Eu vivia tomado de silêncio e drama.
Entre passos desertos, pistas em falso, conselhos diversos,
Fosse dia ou fosse noite,
Confesso: não sabia mesmo onde ir.

Eu via tantas coisas ao mesmo tempo.
Disperso.

Lhe peço um pouco mais de atenção.
Dá aqui sua mão sobre a minha,
Quero ler linha por linha
De uma história diferente a cada dia.

Eu via tudo tão igual.
Reprises.

Posso começar de novo?

sábado, 9 de junho de 2012

Tecidos

Guardo em minha boca um misto de amargo e de silêncio,

do vício que me cala entre os segredos,

moído no pó que me transforma

e me espalha pelas bordas e me leva embora daqui.

Voando entre panos e cordas coloridas

Há um coração que bate para lá e para cá num trapézio.

Pulsa pendurado aqui e ali.

Sobe e desce sozinho no balé ritmado pelo arfar exagerado que vem do seu peito.

Coreografia improvisada nos ares onde ainda vejo seu corpo

a girar e a desenrolar os tecidos que lhe roçam a pele.

É tudo imaginação, eu penso.

Então, respiro.

Até que aquilo se desfaça no vento quente que sai de minhas narinas,

entre mucosas e o suor azedo dos meus poros,

que molham os parangolés que eu nunca conheci.

Paro. Expiro.

Sopro. Transpiro.

Danço. Solto. Só.

Entre panos e cordas coloridas.




quinta-feira, 7 de junho de 2012

Calendário

Passa o tempo, passa.
Corre e avança sobre minhas ladeiras.
Marca transparentemente em minha pele os dias
E deixa voar páginas soltas em meu calendário.
Ando mesmo perdido nas horas.

Chego sempre atrasado.
Subo os degraus lentamente desde que tudo se foi.
Esqueço o que fui.
Não sei o que sou.
O que restou de mim, me diz?

A menor parte.
A parte pequena.
Os desejos miúdos.
A dança efêmera.
O ritmo feroz.

Tudo ficou para trás.
Como o trem que acabou de partir para longe,
Para outra estação, onde as portas se abrem
E o entra e sai de gente estranha a me dizer:
Agora é nunca mais.

Logo eu, que queria tudo para sempre.
Insistentemente eu pedia.
Implorava despudoradamente.
Como se eu soubesse que tudo aquilo urgia.
Mas ele se foi e preferiu não saber.

E eu aqui, a cronometrar-me em segundos.
Uma bomba-relógio prestes a deixar de existir.
A acertar os ponteiros do pouco que me resta.
E eu nem sei bem quanto.
Quase nenhum.

Sou mesmo um homem sem tempo.

sábado, 2 de junho de 2012

Chegadas e partidas

Passava um pouco das cinco da tarde quando ele foi expulso do ventre de sua mãe. Fazia frio naquela sala repleta de umas luzes muito fortes e lençóis sujos de sangue. A pessoa que o puxou para fora, que ele não lembra se era homem ou mulher, tinha as mãos firmes e num primeiro momento não lhe pareceram nada delicadas. Talvez ele esperasse uma recepção mais calorosa, vai saber, com direito a banda de música, canapés e bebericos. Muito pelo contrário. Foram logo lhe enfiando dedos pela goela, dando-lhe uns tapas, cortando-lhe o cordão umbilical e deitando-lhe numa placa de aço tão gelada quanto um iceberg. Desagradável assim. A mãe, estirada na maca, ainda sem ter visto como eram as suas feições, quis saber se  era perfeito, se tinha todos os dedos, se era bonito. Não, não era. Nenhum bebê ao nascer é bonito, já lhe dizia sua avó. Ele tinha as pálpebras dos olhos inchados, quase nenhum cabelo, rugas na testa, uma enorme mancha vermelha que ia da bochecha esquerda à base da orelha e um nariz gordo, amassado, que ficava ainda mais estranho quando ele chorava. E como ele chorava. Mas era perfeito.

No dia seguinte mesmo foram para casa. Hospital público, sabe como é, não dá para ficar ocupando leito à toa. É só o tempo da mãe descansar do parto, recuperar as forças, aprender a dar de mamar e então o médico chega, examina aqui, ali, vê se está tudo bem e pronto: rua. Embrulhado num pano flanelado, com uma fralda mal colocada e curativo no umbigo, lá foi ele no colo da mãe sem saber que lugar era aquele, que gente toda era aquela, o barulho, o vai e vem, o entra e sai, uma sensação estranha, uma saudade danada do lugar de onde ele acabara de sair e a certeza de que aquele era um caminho sem volta. Tanto para ele quanto para sua mãe.

Ele nunca conheceu o pai, um advogado bem sucedido, casado, filho de uma família classe média tijucana, que a mãe encontrou apenas três vezes em toda a vida e que nunca poderia imaginar que numa daquelas vezes ela ia engravidar. Falta de cuidado, de responsabilidade, loucura de quem ainda vivia sob aura da adolescência, mesmo que já tivesse passado dos 20 e tantos anos. Não conhece camisinha? Nunca ouviu falar em anticoncepcional? Pensou em abortar, mas não conseguiu dinheiro nem coragem que bastasse e o jeito foi se conformar com o filho que crescia dentro dela. A avó do menino se propôs a ajudar no que fosse possível. Ela jamais cogitou a hipótese de procurar o pai para contar-lhe da gravidez. Ele não teve culpa. Ela deu porque quis, porque estava com vontade, provocou, deu em cima mesmo, criou a oportunidade, se ofereceu para valer. Água ladeira abaixo, fogo ladeira acima e mulher quando quer dar, ninguém segura, já dizia o dito popular. E ela era bem crescidinha, determinada, sabia exatamente o que queria da vida e nunca, em tempo algum, ia depender da vontade de homem e muito menos se rebaixar, se humilhar ou mesmo complicar a vida daquele que lhe serviu de companhia por uns bons momentos de prazer e sexo. Nada mais.

Criou o moleque sozinha ali mesmo pelas bandas da Usina, na rua São Miguel, aos pés do morro do Boréu, bem pertinho da antiga fábrica Souza Cruz de cigarros, que deixava toda aquela área cheirando a fumo fresco, antes de ser prensado, enrolado e empacotado nos maços que viciaram e mataram seu avô. Cozinheira de mão cheia, fazia uns croquetes de camarão com catupiry sequinhos que ela vendia para um bar na rua Garibaldi, aquela mesma rua onde João Bosco e Aldyr Blanc tantas vezes se encontraram para beber e compôr algumas das mais bonitas letras do nosso cancioneiro. Vinha gente de longe para provar os tais croquetes e não demorou muito até que o dono do bar, um português franzino, viúvo, a convidasse para trabalhar com ele dia e noite, noite e dia. Ela gostava da conversa mole daquele português, gostava do jeito meio ingênuo dele se referir a ela, de ver que ele ficava sem graça quando ela o encarava e ajeitava o decote e deixava a alça do sutiã à mostra, de propósito. Ela nunca deu para o português. Afinal, sua mãe sempre lhe dissera que onde se ganha o pão não se come a carne. Mas volta e meia saía com um freguês ou outro, sempre depois que o bar fechava e o português lhe pagava o que lhe devia da féria do dia.

O menino estudou em colégio público, era inteligente, bom em tudo o que fazia. As professoras sempre o elogiavam, suas notas eram sempre as mais altas, o que enchia a mãe de orgulho, mesmo que ela custasse a admitir. Gostava de jogar futebol, nunca teve dificuldade em fazer amigos e nutria uma verdadeira paixão pelos livros. Machado de Assis o havia arrebatado desde muito cedo, quando sem mais nem menos, pegou emprestado na biblioteca da escola um exemplar de Memórias Póstumas de Brás Cubas, "o defunto-autor", obra-prima da nossa literatura. Depois vieram Clarice, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, como se um fosse chamando o outro, até que chegaram Joyce, Pessoa, Sartre, Nietzsche, Kafka, Cony e os diálogos ácidos de alguns romances de Rubem Fonseca. Mas isso foi bem mais tarde.

Morria de ciúmes do português e sua mente fértil - muito provavelmente por conta dos livros que lia - o fazia imaginar as mais estranhas situações envolvendo o dono daquele bar que ele considerava mal frequentado e a mulher que lhe dera a luz. Por muitos anos acreditou que ele e sua mãe eram amantes. Que viviam uma tórrida história de amor às escondidas. Tinha pesadelos horríveis em que a mãe aparecia em cenas pouco ortodoxas protagonizadas pelo português. Acordava assustado, suado, tenso. Sensação horrorosa, ele pensava. Mãe é mãe. É quase uma santa. Mãe não fode, é assexuada, não usa calcinha indecente, não tem vontades, não tem orgasmo. Onde já se viu mãe gozar? Nunca!

Ele sim, gozava. Quando descobriu o prazer solitário, lá pelos doze, treze anos, batia punheta quase que sem parar. Tinha uma coleção de revistas de sacanagem dos mais variados tipos que guardava escondida dentro de uma caixa de papelão embaixo da cama, junto com uns cadernos antigos. Na gaveta da mesa de cabeceira ele mantinha um saco plástico onde derramava o líquido viscoso que esguichava do seu pau, seu companheiro mais que fiel, seu melhor amigo. Pensava na vizinha, nas meninas uniformizadas em suas saias curtas do colégio, na melhor amiga de sua mãe, na atriz da novela, na loura, na morena, na branquinha sem marca de biquíni, na ruiva que ele vira passando na rua outro dia. E pensava também no português filho da puta que comia sua mãe e aquilo que lhe dava uma raiva danada.

Quando ele completou quinze anos o português morreu. Foi de repente. O velhote levou a mão ao peito e caiu ali, bem atrás do balcão do bar, estatelado entre garrafas de cerveja vazias e piso escorregadio de tanta gordura da fritura que vinha da cozinha. Infarte fulminante. Ninguém sabia, mas o português há meses que sentia umas dores estranhas, um desânimo, um cansaço pouco comum em se tratando de lusitanos. A mãe ficou triste por demais. Ele não conseguiu disfarçar um certo alívio. O enterro no cemitério de Inhaúma foi simples. O português não tinha filhos, era de poucos amigos, tinha um irmão com quem não fazia questão de cultivar boas relações e um primo distante, que encomendou uma coroa de flores, a única do féretro, com os dizeres "vá em paz". Ele nunca tinha ido a um velório antes, mas fez questão de ficar ali, bem ao lado do caixão, olhando ora para o defunto, ora para sua mãe. Não verteu uma lágrima sequer. A mãe se debulhava como se tivesse realmente enviuvado.

Passava um pouco das cinco da tarde quando a última pá de cal foi jogada sobre a lápide da quadra de número 711. Fazia sol. Céu azul. Um silêncio sepulcral. Olhou para a mãe. Ela estava cansada, envelhecida, deixando-se curvar pelo peso dos ombros. Ele a abraçou. Se pudesse, pegaria ela em seu colo, segurando-a com as mãos firmes. Pensou em falar qualquer coisa, mas logo desistiu. Dizer o quê? Meus pêsames? Ou contar-lhe que ele sempre soube que os dois tinham um caso? Melhor ficar calado, ele pensou. A mãe também não disse nada. Aliás, a mãe quase nunca lhe dizia nada mesmo. Ele sabia muito pouco sobre a mãe, o que ela realmente gostava, quais eram seus anseios, o que fazer para agradá-la. Se a mãe estava sofrendo naquele momento e se sentindo ainda mais sozinha, o certo era que ele também estava mergulhado numa profunda solidão. Se ele parasse para pensar ia saber que a vida inteira foi assim e que não tinha como ser diferente. Mas talvez ele esperasse uma recepção mais calorosa, vai saber.