segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Amor que não se apaga

A última coisa que eu ouvi antes que tudo se apagasse naquela noite absurdamente quente foi um grito. Eu estava voltando para a minha casa, no subúrbio, completamente suado, cabelo oleoso, amarrotado, fedido, depois de um longo dia de trabalho árduo, dois ônibus sem ar condicionado, um trem lotado e muita aporrinhação. Eu estava cansado, só pensava em tirar os sapatos que me apertavam os joanetes, tomar um banho frio, comer alguma coisa e deitar no meu sofá só de cuecas, barriga apontando para o alto, meu maço de cigarros ao lado e duas latinhas de cerveja até pegar no sono ali mesmo na sala.

Ao descer na estação de trem perto de casa, notei algo estranho. O ar estava pesado, uma espécie de fumaça tomava conta do lugar. Fui logo botando a culpa no calor, que deixa a gente meio zonzo, causa um certo delírio e pode até mesmo matar. Tive um tio que morreu de calor, juro. Eu tentava encarar as pessoas que passavam por mim, mas eu não conseguia foco, a visão tinha ficado embaçada.

Lembro que por alguns segundos eu me encostei numa pilastra, completamente atordoado, um suor gelado que molhou toda a minha roupa, como se tivesse saído do chuveiro. "Devia ser hipoglicemia. Minha mãe tinha dessas coisas. Horrível. Vai passar", eu pensava. Ao meu redor, uma gente muito pálida me olhava, não para me oferecer ajuda, mas como se eles precisassem muito de alguma coisa, muito mais do que eu.

Quando consegui recobrar meus sentidos, estendi a mão para uma uma senhora com lenço branco na cabeça, pele enrugada, olhos fundos, magra, muito magra, saia longa de um tecido já desbotado, uma camisa puída, chinelo de dedos e os pés que mais pareciam raízes de tanto que pisaram esse chão. Mas ela recuou e desapareceu na mesma hora em que alguém gritou desesperadamente, eu caí e, então, tudo se apagou de vez.

Jamais vou conseguir precisar quanto tempo fiquei no escuro. Quando consegui abrir os olhos, custei a entender onde eu estava. Um silêncio e um vazio assustador tomavam conta da estação. Eu via apenas algumas sombras. Tentei chamar por alguém, mas minha voz falhou. Parecia um pesadelo. Eu ainda estava tonto, coração acelerado, uma certa dor nas têmporas e muito medo.

Foi quando eu ouvi um outro grito estridente e percebi uma sombra se aproximando à minha esquerda. Fiquei paralisado. Sequer respirava. Conforme chegava mais perto, mais apavorado eu ficava, até que consegui ouvir os passos, que me pareceram cansados, mas não ameaçadores. Quando passou por mim, a sombra se transformou na silhueta de um homem. Ele parou, percebeu que tinha alguém ali e, silenciosamente, sentou ao meu lado, tirou do bolso da calça um maço de cigarros amassado e uns papeis de carta. Milagrosamente, eu relaxei.

- Quer um cigarro? - ele me perguntou

- Quero.

- É sem filtro, tudo bem?

- Tudo bem,  respondi.

Ele tirou dois cigarros do maço, procurou um isqueiro, acendeu o primeiro, tragou e me deu. Um fumo forte, intenso, que queimava a garganta e batia direto no pulmão. Eu engasguei.

- Segura firme, ele disse.

Eu não consegui falar mais nada.

Ele pareceu não se importar com meu silêncio e desandou a falar. Contou que fora ele quem apagara todas as luzes e que não sabia ao certo o que estava fazendo ali. Havia saído de casa há mais de uma semana. Talvez duas. Carregava apenas uma mochila com duas camisetas, uma calça e um pulôver velho, mas que ele adorava. Presente da sua avó. Tinha também um caderno onde ele fazia algumas anotações, um lápis, uma caneta esferográfica sem tampa e um relógio de pulso preto, sem bateria, que ficava jogado no fundo da mochila e o coração nas mãos.

Confessou ter deixado escapar um grande amor recentemente e que desde então ele, seu coração, só sangrava. Não economizou palavras na tentativa de traduzir a dor que o término daquele relacionamento lhe causou. Metade culpa dele. A outra metade também era culpada. Falou de amor para mim como ninguém jamais fizera antes. Logo para mim, que nunca quis muita intimidade com esse negócio de amor. Mas ele falava de um jeito tão bonito, que mesmo sofrido, dava um alento só de ouvir.

Eu continuei sem conseguir falar nada, mas prestava muita atenção no que aquele homem dizia. Sequer estranhei que estava tudo às escuras e que já devia ser tarde da noite. Pouco me importava. Eu queria mesmo era ouvir o que aquele homem tinha para me contar. Quando eu poderia imaginar ter uma noite daquelas? Eu pensava que ia chegar em casa, tomar meu banho, beber minha cerveja e dormir. Só isso. Mas eu estava ali, no breu, sentado no chão de uma estação de trem imunda e com um homem desconhecido ao meu lado a me falar coisas de amor.

Eu não tinha o que dizer.

Por um instante ele também ficou calado. Acendeu outro cigarro e abriu um dos papeis de carta que ele trazia. Não faço ideia de como ele conseguiu enxergar o que estava escrito no papel, ou se realmente tinha algo escrito ali, mas ele começou a ler e foram as coisas mais lindas que eu já ouvi na minha vida. Naquela carta, ele se desnudava e contava tudo o que havia acontecido, desde quando eles se conheceram até quando tudo desmoronou. Ele contou da pureza e da grandeza de um amor de verdade. Disse que sentia falta da cumplicidade, de caminhar lado a lado, de ouvir as mesmas músicas, do toque, do cheiro, do sexo, de tudo, enfim.

Eu vi aquele homem chorar ao falar de um tipo de amor que eu nunca havia sentido. Eu vi aquele homem se desesperar porque ele sabia que precisava apagar todo aquele amor que ainda existia nele. Um amor que o encantou e que fez com que ele acreditasse que tudo era possível, por pior que fosse o cenário real. Mas a corda que durante tanto tempo os uniu havia arrebentado e fora cada um para um lado. Ele jamais soube da outra metade. Ele também não sabia mais o que restava dele.

Seu coração batia tão forte que eu podia ouvir o som do sangue pulsando. Ele suava. Eu também estava morrendo de calor. Senti minhas pernas formigarem de tanto que eu estava sentado na mesma posição. Senti muita pena dele. Senti inveja também e muita comiseração de mim. Há anos eu vivia sozinho, levando aquela vida medíocre e de relacionamentos superficiais com quem quer que fosse. Nunca me entreguei a nada nem a ninguém. Tudo aquilo que eu acabara de ouvir sobre o amor para mim era novidade ou coisa de novela, de livro, sei lá. Soava estranho. Eu sou um cara estranho.

Na carta, ele também falava das cicatrizes que ele carregava e do tanto que tinha se rasgado de amor, dos sacrifícios que ele precisou fazer, das noites que ficou sem dormir, de como era difícil toda aquela distância entre eles, dos abraços apertados, do carinho desmedido e da saudade absurda que parecia querer lhe enlouquecer dia e noite, noite e dia. Dizia que tudo doía: peito, juntas, cabeça, olhos. Um horror. E que ver tudo aquilo se apagando tinha um efeito devastador na sua vida. Ele queria ter tido mais tempo. Ele achava que ainda podia dar certo. Ele estava procurando a luz. Ele pensou ter encontrado. Mas, de novo, era só ele e a escuridão.

- Ainda está tudo aceso aí, eu falei baixinho.

Ele olhou nos meus olhos e não falou mais nada. Dobrou o papel, enfiou no bolso da calça, fumou outro cigarro e saiu sem se despedir de mim.

E eu fiquei ali no escuro, torcendo para tudo acender outra vez.

domingo, 21 de fevereiro de 2016

Em São Paulo já tem carnaval que eu sei

A cidade de São Paulo se rende ao carnaval

Agora que o carnaval finalmente acabou e que já não esbarramos mais com piratas, Frida Kahlo e bêbados agarrados numa garrafa de skol beats no metrô é que eu me sinto um pouco mais à vontade para escrever sobre a folia de Momo. Só que, meu, eu vou falar do que eu vi lá na terra da garoa, lá na cidade que Vinícius de Moraes apelidou de túmulo do samba, São Paulo. De antemão, já aviso que o poetinha estava errado. Injustiça, crueldade ou pura sacanagem mesmo chamar a maior cidade do nosso país de túmulo do samba. Ao menos nos dias de hoje. Ouso arriscar a dizer que os paulistanos, que agora descobriram as ruas como palco da maior manifestação popular do planeta, podem vir a ser os responsáveis pela renovação do carnaval de rua nos próximos anos. Digo isso com uma certa propriedade, já que passei praticamente os últimos três anos na ponte Rio-São Paulo e ao menos uma vez por mês eu baixava lá pelas bandas do Tietê. Tudo por amor, óbvio.

Durante esses três anos, tive a oportunidade de conhecer um outro circuito, diferente daquele que eu já conhecia de Vila Madalena, Pinheiros e Morumbi. Desci a Augusta, peguei a Consolação, fiquei bêbado na Roosevelt, fui feliz na Benedito Calixto, cruzei a República e comi uma feijoada num samba quente em plena praça Dom José Gaspar, atrás da biblioteca Mario de Andrade, num sábado frio de agosto. De uma outra vez, fui numa roda de samba que acontece todas as sextas-feiras bem em frente à Paróquia Nossa Senhora da Achiropita, na Rua Treze de Maio, lá pelas bandas da Bela Vista. O samba era de raiz, tinha uma gente bamba, italiano da Mooca, uma mistura boa, todo mundo na rua, cerveja gelada e era bonito de ver. Soube também do sucesso que faziam os ensaios da Vai Vai, uma das escolas de samba mais tradicionais de São Paulo e que, mesmo sendo uma das mais tradicionais, os ensaios aconteciam na rua. O trânsito dava um nó. Isso em falar no samba da vela, mas lá eu não fui.

No carnaval de 2014, conheci o Jegue Elétrico, um bloco que saía da Praça Roosevelt, onde ficam alguns teatros, como Sátiros e Parlapatões. O bloco não tinha um carro de som e, aparentemente, nem estrutura suficiente para sacudir a massa. O que existia de equipamento ficava em cima de uma bicicleta colorida e iluminada e de onde uns gaiatos se revezavam no microfone. O bloco demorou umas duas horas percorrendo uns 800 metros apenas. Juntou pra lá de mil pessoas. Todo mundo contente. Era carnaval.

Vale do Anhangabaú tomado pelos foliões


Eu já tinha gostado do clima uma dia antes, quando estive com um grupo de amigos na Benedito Calixto, uma outra praça, só que menos underground, onde vende um tal de buraco quente, que nada mais é que um sanduíche de carne moída deliciosamente temperada e servida num pão francês com um buraco no meio. Daí o nome. Na Benedito Calixto rola uma feira de antiguidades todos os sábados, com direito à roda de choro, um povo descolado, descontraído, bacana mesmo. Foi lá que vi os primeiros paulistanos fantasiados. Meio tímidos ainda, é verdade, como se não soubessem ao certo o que estavam fazendo, mas fantasiados. Bem legal, eu achei.

Já em 2015, fui apresentado ao Tarado Ni Você, um bloco que desfilava pela segunda vez apenas e que sai da esquina da Ipiranga com a São João, trecho ali no centrão velho imortalizado por Caetano Veloso e que só toca músicas do... Caetano Veloso, ora bolas. Quando eu cheguei por ali eu nada entendi. Ou melhor: entendi tudo. Uma multidão de paulistanos seguindo o trio que percorreu as ruas e avenidas de uma cidade escondida entre os arranha-céus e que parecia esquecer seu cinza e se deixava colorir com toda aquele energia que só o carnaval de rua tem. Teve catuaba, uma mania entre os paulistanos, teve beijo na beijo na boca, teve êta, êta, êta, é a luz de Tieta. Teve bunda de fora, suor, chuva, azaração, um bagulhinho bom, uma energia contagiante e a filha da chiquita bacana, porque ela não haveria de faltar. Eu me diverti.

Esse último ano, lá estava eu de novo em São Paulo. Mais por circunstâncias da vida do que por outra coisa qualquer. Dei de cara com o Ilú Obá de Min, um bloco percussivo feminino afrobrasileiro. Estávamos eu e meu filho número dois. Na véspera, Elza Soares havia participado de um cortejo carnavalesco com o Ilú Obá de Min. Tudo organizado, infraestrutura, carro de som, mulherada arrepiando na percussão, brilho, sol, muito sol, um calor que ninguém acredita que faz em São Paulo e muito ponto de macumba. Samba ou marchinha não tinha. Lembrei do Vinícius e saí de lá com a sensação de que eu teria achado muito mais legal o Acadêmicos do Baixo Augusta, bloco que tem como rainha ninguém menos que Alessandra Negrini, despertando tudo quanto é fantasia. E tem samba no pé. Não preciso falar mais nada. Ou preciso?

Foliões paulistanos

Na terça-feira de carnaval resolvi me juntar à massa de adoradores de última hora - ou não - de David Bowie e baixei no Tô de Bowie, um bloco em homenagem ao cantor inglês que morreu recentemente. Não me arrependi. Foi impressionante ver uma multidão brincando, ocupando as ruas próximo à Praça da República, ao Theatro Municipal de São Paulo, elogiando o Haddad e lotando o Vale do Anhangabaú. Não vi uma briga, uma confusão, um sinal sequer de falta de respeito. Muito pelo contrário. Também não vi quase ninguém fazer xixi na rua e nem presenciei cantada barata. Tinha cerveja de marcas variadas, não tinha cercadinho, não vi truculência de guarda municipal, não teve bomba de efeito moral, nem ninguém com a bunda roxa por ter apanhado de cassetete. Juro que não vi. Também não vi samba, confesso, Vinícius. Nem uma marchinha sequer. Senti falta, apesar de ter adorado ouvir Let's Dance ecoar acima do corredor Norte-Sul da cidade que não para.

Não sei se ano que vem estarei mais uma vez em São Paulo durante o carnaval. Tomara. É um carnaval diferente, que mistura rock com axé, arrocha com Sidney Magal, brega e coisa e tal, mas que lembra um pouco o clima bom do carnaval do Rio de Janeiro há uns 15 anos, quando também redescobrimos as ruas. Ok, Vinícius, concordo que falta um pouquinho mais de samba e uns clássicos como Carinhoso, do mestre Pixinguinha, para emocionar a paulicéia que é para lá de desvairada. Só isso. Mas eles vão chegar lá. Pode anotar.



Infinito é o mar

Corre lento alguma coisa em mim feito um rio caudaloso à procura do mar.
Às minhas margens, versos, pontes, restos de amores,
poças d'água onde insisto em chafurdar meus pés.

Às vezes chove em meu leito uma chuva forte, uma saudade que machuca,
que aperta o peito e me desfaz em correnteza.
Neste rio mergulham as Ofélias que me afagam o corpo,
me arrastam e me afogam até desaguar.

Metade de mim é este rio.
Infinito em mim é o mar.