sexta-feira, 25 de novembro de 2022

Do pó que viestes

Às vezes é como enlouquecer.

Perder os sentidos.

Deixar-se escorrer entreatos, roubar as cenas reescritas, decorar diálogos truncados, ouvir interpretações distorcidas. 


O bicho homem é vaidoso que só. 


Egocêntrico, eu sei. 

Falocêntrico eu sou. 


E também fanfarrão, iludido, vendido, desavergonhado, descompromissado, único, ciente que de pulvere venisses in pulverem reverteris. 


Tudo aqui se desfaz em pó. 

quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Esses dias têm sido assim

Um choro de alívio incontido tem se abatido sobre mim esses dias.

É choro de alegria, que cai feito tempestade, dilúvio da minha alma, cântaros d'água lavando as dores que cismaram em derramar do meu peito aberto e veem chegar mais perto as faces de um outro eu. 

Já foi tudo mais confuso, lembra? 

O mundo sempre foi esse transe, agora eu sei e, não faz muito tempo, me ensinaram a dançar. 

Dois pra lá, dois pra cá, passos precisos, coreografados, milimetricamente ensaiados para essa estreia nossa de cada dia. 

Ouço música. O tempo inteiro ouço música. A vida de todo mundo tem uma trilha sonora, acredite, baby, eu sei que é assim. 

A minha tem mais de uma, confesso. 

Recebo, então, a notícia de que morreu Gal Costa e ali, mesmo que por um instante, muita coisa silenciou em mim. 

Porque o canto é o verbo em toada, nossa vida é breve, sua voz sagrada.

Choro. 

Alívio. 

Esses dias têm sido assim.

quinta-feira, 23 de junho de 2022

Calma

Outro dia mesmo eu li no perfil de um astrólogo que eu sigo que acalmar-nos é uma das primeiras e mais fundamentais habilidades que aprendemos na vida. Entre tantas outras coisas bacanas que esse astrólogo escreve quase que diariamente, essa foi uma das que mais me chamou a atenção nessas últimas semanas e me fez, muito mais que por alguns instantes, parar para pensar. A gente nasce no susto, rompe a barreira no trauma, num tremendo desespero, toda aquela pressão para a gente passar para o lado de cá. E, quando a gente passa, a gente se apavora e chora tentando colocar o ar para dentro dos pulmões. É bonito, mas é tenso.

Não me lembro como foi quando eu nasci, claro, mas tenho para mim que não tenha sido nada agradável deixar aquela vidinha confortável que eu levava dentro da barriga da senhora minha mãe para ter de encarar esse fuzuê aqui do lado de fora. Minha mãe costumava dizer que eu nasci berrando porque já nasci com fome e que ela logo me deu o peito para eu me acalmar. Era meio-dia e dez de uma sexta-feira calorenta, três dias depois do carnaval, quando eu, pisciano raiz com ascendente e lua em Touro, cheguei por essas bandas nervoso de fome e fui logo sendo obrigado a aprender a me acalmar. Por sorte, tive o colo da minha mãe. 

Até hoje vivo com fome e volta e meia eu ainda penso na falta que faz o colo da minha mãe quando eu sinto que estou ficando nervoso. Talvez por isso eu tenha associado esse acalmar-se, tão fundamental à sobrevivência nesse planeta, ao nascimento e ao momento em que a mãe, no caso a minha, pega o filho, no caso eu, e o acalma para que ela também se acalme. Há uma troca intensa ali. E de um aprendizado profundo, impossível de ser traduzido em palavras. Aquele que chega sem entender nada no colo daquela que já chegou faz um tempo e que certamente ainda não conseguiu entender muita coisa. Ou seja: a coisa é complexa desde o início. Um estresse.  

Não é fácil e ninguém disse que seria, eu sei. E hoje, cinco décadas depois de eu ter nascido e ter sido muito bem recebido, as coisas continuam não parecendo tão fáceis. Falta colo, o planeta está no limite e nós, seres ditos pensantes, nos agredindo nessa carnificina virtual globalizada, como se quiséssemos acelerar nosso fim logo de uma vez, numa espécie de surto coletivo. Esse retroceder da mentalidade humana é o que me causa surpresa e me assusta tanto quanto todo o preconceito, a violência, a hipocrisia, a mentira e o cinismo escancarado desses tempos complicados. 

Isso tudo sufoca a gente, deixa a gente triste, vai ficando todo mundo amuado, nervoso, mal humorado, doente, até que acaba morrendo mais rápido do que devia. Uma agonia que piora quando a gente liga o noticiário e é bombardeado pelo correio da má notícia e por todo esse volume absurdo de informações, boa parte delas inúteis, fúteis, descartáveis, que chegam até nós através de um simples toque numa tela pouco maior que a palma de nossas mãos. Estamos todos presos nessa teia, cegos, sem nos importar se do nosso lado matam pretos, matam pobres, matam indigenista, matam jornalista, matam todos eles, um a um, e a nós também, pouco a pouco. Distopia.

Mas, de acordo com o astrólogo, ter calma é fundamental. Mesmo que tudo ao redor esteja o caos, mesmo que os ignorantes tenham despertado, mesmo que os fariseus tenham ressurgido, mesmo com as guerras ininterruptas, mesmo com toda essa ganância, esse discurso violento, essa farsa, esses coturnos manchados de sangue mais uma vez ameaçando a democracia, essas bíblias compartilhando a palavra talhada na hipocrisia, mantenha a calma. Eu aqui tenho tentado me acalmar sozinho e seguir às margens deste outro eu transformado em rio caudaloso, superfície serena, que no fundo esconde a fúria da minha correnteza, arrastando tudo em direção ao mar. 



sexta-feira, 17 de junho de 2022

Tua poesia

Há tempos te devia essa poesia

Desde muito antes de te conhecer por aqui

Porque em mim já te carregava

Em mim tu já existia


Há tempos te devia essa poesia

Desde outras eras, desde outras vidas,

Desde o passado, o presente e o futuro

Momentos que eu nunca esqueci


Lembro que naqueles dias eu ria

Do mesmo jeito que estamos rindo agora

Um riso frouxo, uma alegria, uma coisa boa

É um fio de esperança, é um transbordar de emoção.


Há tempos te queria nessa poesia

Essa que sempre foi tua

Porque são raros esses encontros, eu sei

Tão raros que eu nunca esqueci.


Você também não.


Deixa o medo e vem segurar minha mão 

Caminhar do meu lado, misturar nossos hálitos 

Mirar teus olhos nos meus. 

Daqui ainda vejo teus rastros no parque


Foi lá a primeira vez, esqueceu?


Eu confesso que não esperava. 

Mas assim tão de perto, não resisti. 

Havia algo de arrebatador em nós

E tua loucura se fez poesia em mim.



quarta-feira, 15 de junho de 2022

O que restou

Eu não sei o que ainda resta de lúcido em mim. Às vezes amanheço assim, entre névoas e memórias nada ortodoxas que há muito cismaram de não me abandonar. São como versos ruins, poesias sem rima, frases mal escritas num pedaço qualquer de papel esquecido sobre a mesa empoeirada da velha sala de jantar. Acho que é porque tenho tido sonhos barulhentos ultimamente e neles eu ando pelas cercanias da cidade alta, ladeiras, becos, bares, lares, tudo sempre tão deserto. Não sinto frio nem calor, não falo nada, mas ouço sempre as mesmas vozes sussurrando segredos esquizofrênicos em meus ouvidos até a hora em que as luzes se apagam. É quando acordo com a certeza de que eu sempre estive só.

Às vezes a vida dá um nó, a garganta aperta, surgem os bichos de sete cabeças, todos eles dentro da gente, martelando, batendo, gritando, sacudindo meias verdades pra lá e pra cá. Desconfio mesmo de que eu nunca tive um rumo, que eu sempre andei às cegas por essas indelicadezas da vida, nascido de mãe parideira e pai desconhecido Quem me ensinou a desviar do erro fui eu mesmo. Lá se vão mais de 50 anos e eu ainda não sei se fiz o certo. De fato eu nunca entendi nada direito e até hoje paira a dúvida do que eu posso ou devo fazer. Não me pergunte o porquê, mas nesses dias em que amanheço entre névoas é melhor mesmo não ter nenhum traço de lucidez. Nada.

São dias sem o menor sentido, de manhãs pálidas e um vento frio constante que atravessa meu corpo feito navalha afiada. Não ouço mais o canto dos pássaros, mas há nuvens escorregando ligeiras pelo céu como se quisessem esbarrar neste lugar onde me encontro. Daqui do alto não vejo mais o mar e é então quando eu canto de saudade. Faz tempo que não banho meu corpo em águas salgadas e me deixo levar pelas marés e correntezas. Queria por mais uma vez ter meu corpo devolvido ainda com vida lá bem junto de onde a areia brinca na beira do mar. Porque o sal que hoje jaz em meu rosto é o que dá gosto às lágrimas que insistem em afogar meus olhos, mesmo eu repetindo para mim mesmo que está tudo bem. São dias sem o menor sentido, eu já disse. 

Onde foi que perdi minha lucidez? Como foi que se desfez o templo que havia erguido em mim? Ainda carrego muitas perguntas, eu sei. Porque não foram raras as vezes em que me perdi. E em todas essas vezes eu lembrava da última mulher que amei tentando me convencer de que era preciso deixar-se perder. Já naquela época eu caminhava em círculos desconexos, meus pés em espiral, cabeça nas nuvens, que só depois eu fui perceber que eram as mesmas nuvens que escorregavam ligeiras pelo céu como se quisessem esbarrar neste lugar onde me encontro até hoje. Ou o que restou em mim. 

quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

A crueldade do mundo

Noite dessas andou fazendo frio por aqui. Já não é tempo disso. Ninguém nas ruas dessa cidade sem esquina e enormes distâncias. Um vento silencioso e gelado, daqueles de cortar os lábios, invadia a sala do apartamento, quinto andar, de fundos, janelões de madeira voltados para um muro de concreto e cal. Na vitrola, bem baixinho, Gymnopédies N1, e todo aquele minimalismo da música de Erik Satie, refletindo muito bem o que se passava naquele ambiente. 

No fundo da parede, ao lado de um sofá de canto, um abajur de ferro fundido, medindo mais ou menos um metro e meio de altura, iluminava timidamente seu rosto embrutecido, olhar ansioso, respiração curta, deitado ali fazia horas e quase entrando numa espécie de desespero, daqueles que só sente quem se dá conta de que não sabe mais o que pode vir a acontecer dali para frente. 

Há meses que ninguém o visitava. E ele não parecia se importar com isso. Muito provavelmente fora escolha dele viver cada vez mais sozinho. Desde moleque sempre gostou de se isolar. Por muito tempo escondeu de muita gente, e até dele mesmo, que muitas coisas ao redor o machucavam e doíam nele como doem os olhos quando a gente sai do mais absoluto escuro e dá de cara com aquela enormidade de luz à nossa frente. Palavras, gestos, olhares feriam-no muito mais do que as surras que seus pais nunca lhe deram, muito embora as merecesse. Estar só foi a maneira que ele encontrou de se preservar daquilo que mais tarde ele mesmo batizou de a crueldade do mundo. 

Há meses, também, que ele começou a escrever umas cartas. Diariamente. O curioso é que são cartas que ele resolveu escrever para ele mesmo. Envelopadas, endereçadas e com o nome do remetente e do destinatário. Muitas delas tiveram direito a respostas, réplicas e tréplicas. Outras geraram ressentimentos, mexeram em feridas profundas. Mas todas, sem exceção, revelavam uma infinidade de reconciliações profundamente íntimas. Como se ele tivesse conseguido entrelaçar todos aqueles que até ali se apresentaram e os textos se esparramaram pelos cômodos do apartamento.

"Sinto saudades de você e de toda essa sua vontade, essa gana, essa pressa estranha que tantas vezes chega metendo o pé na porta, escancarando, sem meias palavras, fazendo barulho, rindo, acelerando e mudando o percurso do meu caminho. Eu, que me vejo tão parado, letárgico, caótico, e você vem e me puxa pelas mãos, encontra tempo para um carinho, abraça, arrasta, beija e não deixa ninguém esquecer que uma hora ou outra a gente também vai precisar ser feliz."

"Cansado da sua covardia, desse teu medo que te suga e faz o colágeno dessa tua cara feia derreter ainda mais rápido do que deveria. Segue em frente, porra, deixa pra trás teus erros. Uma hora ou outra você vai aprender com eles. Ou não. Talvez você seja do time daqueles que não vão aprender nunca e vai ficar por isso mesmo porque essa é a sua história, e daí? Você não é sinônimo de perfeição, cara. Ninguém é. Nem eu. Relaxa."

"Lembro de uma festa na casa de uma das suas tias, você deveria ter uns seis, sete anos, trilha da novela Estúpido Cupido tocando bem alto, você começou a ensaiar uns passos desencontrados junto da sua prima mais velha, quando seu pai chegou e viu você ali. Na mesma hora você parou de dançar. Ficou todo duro, paralisado. Eu lembro da sensação de frio na espinha que você teve porque viu, refletido no olhar do seu pai, o repressor que já naquele tempo te habitava. Você só voltou a dançar na época da faculdade. E mesmo assim muito pouco. Você precisa dançar mais, cara. Teu pai não tem nada a ver com isso."

"Mentira sua quando você diz por aí que eu me arrependi de ter amado do jeito que eu amei. E eu amei quem eu quis e bem entendi. Alguns amores eu vou amar para sempre, eu sei disso, e essa talvez seja a minha cruz. O amor, acredite, me deu muitas coisas boas nessa vida. As melhores, eu diria. E eu sempre tive muita clareza a esse respeito. Talvez por sempre ter trazido dentro do peito esse tanto de sentimento que mexe comigo e que eu mesmo custei a entender como é que funciona, como é que faz para usar. Até hoje não sei, te confesso. Não tem fórmula. Mas eu vou e uso. São coisas que acontecem, histórias bonitas com personagens mais bonitos ainda. E eu gosto de ser protagonista de histórias bonitas. Você não?"

"Eu tenho andado angustiado. Faz tempo que as notícias não são boas. Lembra de quando você era adolescente e estourou a Guerra das Malvinas? Você voltava do colégio todo dia naquele Chevrolet Veraneio verde oliva, uma bagunça danada, e você calado, para variar, prestando atenção nas notícias que você ouvia no rádio. A ideia de uma guerra te deixava desestruturado, vinham cenas na sua cabeça, histórias que seus avós contavam sobre a primeira e a segunda guerras mundiais, Hitler, câmaras de gás, bomba atômica, destruição. Você morria de medo. Eu também.  A crueldade do mundo ali bem na nossa frente. Não mudou muita coisa, reparou? Isso não te deixa angustiado?"

As cartas foram escritas compulsivamente. A última ele escreveu naquela manhã, dia 8 de dezembro, dia de Nossa Senhora da Conceição, ao voltar de uma consulta no cardiologista, depois de ter visto um rapaz num semáforo segurando um cartaz onde lia-se "Fome. Pelo amor de Deus, ajude-me". Mais uma vez, aquilo que estava ao seu redor o machucava. Ele de fato não entendia como tamanha desigualdade poderia existir. Há muita crueldade no mundo, essa é a realidade. E aquilo doía nele como doem os olhos quando a gente sai do mais absoluto escuro e dá de cara com aquela enormidade de luz à nossa frente, eu repito. Ainda cego, pegou todo o dinheiro que tinha na carteira, pouco mais de cinquenta reais, esticou o braço para fora do carro e tentou de alguma maneira se livrar daquela culpa que não era dele. 

Mas ele achava que era.

Eu também acho que é culpa minha.

Quando eu escrevo é pra me livrar de muita coisa.