terça-feira, 21 de agosto de 2012

Idas e vindas

Vá.
Mas volte.
Porque mais importante do que saber aonde ir
É percorrer com passos livres o caminho
Que liga um ponto a outro
E talvez a lugar nenhum.

Lá.
Ou aqui.
Porque quanto mais perdido, mais distante,
Já que a estrada principal
É a que segue por dentro.
E as pegadas são palavras doces
Deixando suas marcas pelo chão.

Idas.
E vindas.
Quando pegar o retorno,
Que as boas coisas da vida te recebam de volta.
Que o lado bom prevaleça.
Que você tenha o amor que mereça.
Que te faça feliz.

Que reveja os amigos.
Que conheça mais gente.
Que se reoriente.
Que se empregue.
Que se encante.
Que se encontre.
Até partir novamente.

Felipe

Eles haviam se tornado amigos poucos meses antes de Felipe viajar. Para ser mais preciso, cinco meses antes. Mais tarde pude entender que, de certo modo, a proximidade da viagem foi o que possibilitou o surgimento daquela amizade e fez com que Felipe se dispusesse a experimentar um sentimento que ainda não conhecia. Não que não tivesse outros amigos. Na verdade, tinha muitos. Mas nenhuma amizade até então havia sido como aquela.

Por mais que fossem diferentes e por mais estranheza que a tal amizade pudesse causar à primeira vista, gostavam de estar juntos. Não era nada fácil para ambos estarem juntos. Muito pelo contrário. Era difícil admitir que queriam se encontrar, se ver, ter a companhia um do outro e deixar todos os outros afazeres para trás. Procuravam marcar uma vez por semana. Mais do que isso era um sofrimento danado, dava uma saudade apertada, uma vontade tamanha de que os dias voassem e que a data marcada chegasse logo sem prolongas.

Conversavam sobre tudo. Não havia segredo entre eles. Um sabia da vida do outro, dos problemas que enfrentavam, das paranoias, das fraquezas, dos sonhos de um futuro mais bonito. Gostavam de ir à praia, de cruzar as montanhas da cidade, andar pelas ladeiras do bairro alto e ver toda a gente lá embaixo, quando tudo parecia em silêncio e lento. Se estavam juntos o ritmo era outro, como se as horas soubessem que aquele pouco tempo que tinham lado a lado ficaria eternizado na memória dos dois.

Quem os via de longe tinha a impressão de se tratar de dois moleques sem juízo, fazendo o que seus pais passaram a vida inteira alertando para que não fizessem, saindo por aí sem rumo, sem direção, sem muita noção do que poderia ser certo ou errado. Mas quem pode nos dizer o que é certo ou errado? Havia amizade ali e isso era o que importava. Mais: havia amor entre aqueles dois amigos e talvez eles já tivessem se dado conta.

Tão distintos um do outro. Mas apesar de criados em realidades opostas, os dois tinham experiências duras de vida, amargas, tristes até. Talvez fosse isso que os atraía. Um tinha no outro um alento, uma espécie de cumplicidade, um tesão no desconhecido, a vontade de andar no limiar entre o que é proibido e aquilo que é consentido. Mas um detalhe causava angústia a um deles: aquela amizade tinha prazo para acabar. Felipe ia embora para talvez nunca mais voltar em poucas semanas. E assim foi feito.

Logo de início o outro se deu conta que sofreria quando seu amigo partisse. Com quem ele ia conversar sobre todos aqueles assuntos? Com quem ele ia fugir nas tardes ensolaradas para ver o sol se pôr? E as dicas de filmes sempre preciosas? E as músicas que gostavam de ouvir? Até mesmo o futebol... Era como se todas as boas referências fossem desaparecer depois que o avião decolasse e levasse Felipe para aquela terra tão distante.

Naquela época ainda não existiam todas essas facilidades de um mundo globalizado e suas redes sociais, que encurtam as distâncias, agilizam a comunicação e nos expõem aos quatro cantos do planeta. No máximo uma carta. Telefonema? Nem pensar! O custo de uma ligação internacional era um entrave e tanto, o que dificultava qualquer aproximação. A falta de notícias foi então criando em seu peito uma úlcera que abria mais e mais a cada dia, sangrando-lhe por dentro vagarosamente até que ficasse completamente seco, doente mesmo.

Lá de longe Felipe talvez soubesse que alguma coisa não estava indo muito bem por aqui, mas e daí? Ele tinha uma outra história para viver e não poderia deixar que aquela amizade atrapalhasse seus planos. Planos que ele havia traçado com fervor, planos que ele vinha organizando racionalmente há meses e que muito lhe consumiram. Ele não tinha como amolecer. O outro sabia disso tudo e nunca o culpou por nada, apesar de sofrer com o vazio que aquilo tudo lhe causava.

Só queria saber se estava tudo bem, um 'olá, como vai', até que a amizade de cinco meses ficasse apenas como uma lembrança boa, traduzida num encontro raro que poucos têm a chance de vivenciar por aqui. Mas Felipe preferiu desaparecer como se o outro nunca tivesse existido, como se aquela amizade não fosse nada, coisa sem importância esquecida num passado que deveria ser enterrado. O outro foi se conformando aos poucos com a dor da ausência daquele que foi seu único amigo.

Anos mais tarde, quando o outro me contou essa história, confessou que jamais houve um dia desde então que não lembrasse do Felipe. Contou-me também que o mundo perdera o colorido, que seus olhos nunca recuperaram o brilho e que seu coração fazia um esforço tremendo para bombear sangue em suas artérias. Não sabe se Felipe está vivo, se casou, se teve filhos, se é feliz, se conseguiu trilhar o caminho escolhido ou pior: que caminho ele havia escolhido trilhar?

- Você nunca vai saber - cansei de lhe dizer, na tentativa de ceder-lhe meu ombro amigo.

Mas ele nunca me considerou como tal, apesar de gostar de me ouvir e de não ter vergonha de me contar tudo aquilo. Afinal, o que eu poderia pensar? Logo eu, que costumo falar tão pouco sobre mim, que não me interesso por essas coisas complicadas da vida, que procuro não pensar que é para não me aborrecer. Quem sou eu para dar conselhos? Quem sou eu para querer ser amigo de alguém? Na verdade, eu não sabia ao certo o que falar. Muito provavelmente nem precisasse dizer nada. Por várias vezes tive a impressão de que bastava eu estar ali ao lado dele, olhando em seus olhos, ouvindo o que ele tinha para me contar. Papel de amigo, acho. E foi aos poucos que ele me contou tudo.

Um dia, antes de ir embora da repartição, já no final do expediente, me pediu um abraço. Ele estava fragilizado e não tive como negar. Abracei-o com vontade, como se eu já não o visse há décadas e dele sentisse uma enorme saudade. Nos despedimos no estacionamento ainda com um aceno e um sorriso tímido. Ele virou as costas, caminhando a passos lentos, cigarro aceso na mão, paletó pesando sobre os ombros e nenhum traço de esperança em seu rosto. No dia seguinte ele não apareceu para trabalhar. Nem na outra semana. Nem nunca mais. Sumiu sem deixar um rastro sequer. A família estava em frangalhos, sem saber mais o que fazer nem o que imaginar. Todos desesperados. Nem o seguro de vida receberam, já que não tinham como comprovar o óbito e o corpo nunca apareceu. 

Eu nunca mais esqueci daquele último abraço nem de toda aquela história de amor entre amigos que ele me contou. Ainda tenho esperança de reencontrá-lo. Na minha versão ele não morre no final. Prefiro acreditar que ele foi atrás do Felipe. Mas onde? Como? Ninguém conhecia o Felipe. Só ele. Só ele... 

sábado, 18 de agosto de 2012

Ciranda

Por aqui vem sempre um dia atrás do outro
Amanhece e anoitece sem descanso
O rio que passa
A água que corre
O vento que atravessa
E a montanha segue firme no mesmo lugar.

Há algo por aqui que segue perene
Dizendo com todas as letras que nada termina
O tempo que resta
As horas que sobram
Minutos que sopram
E o peito de repente se enche de ar.

Por aqui há os que se desnudam
Riscam na própria pele as suas marcas
A ferida que cicatriza
A arma que fere
A lâmina que rasga
E o sangue continua pulsando nas veias.

Por aqui há os que fogem de medo
Os que se pelam só de imaginar
A felicidade que insiste
O prazer que arrebata
A saudade que grita
Dos que chegam sem fazer barulho.

Por aqui nada permite silêncio
Porque se cala já deixou de existir
É fogo que arde
É luz que candeia
É brasa que queima
Enquanto o mundo lá fora é ciranda a girar, a girar.



sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Insônia

A cabeça do homem é uma central de mensagens. A minha funciona praticamente 24 horas. Elas chegam codificadas, zipadas, manuscritas, sussurradas e são lançadas ao mar em garrafas coloridas. Uma a uma, sem parar. Meu cérebro é um imenso oceano desconhecido de pensamentos e ideias à deriva. Navego em ondas incessantes que se formam muito além de onde a vista alcança o horizonte. Um farol esquecido em ilha distante. O pouco que eu vejo fica retido na retina por toda minha vida. Sou imagem invertida, barco naufragado, sujeito de ponta à cabeça. Sou a carta do louco projetada na parede fina que separa o real do absurdo. Sou sombra, vento, tempestade, sol, neblina. Eu sou isso tudo. E mais um pouco do que não faz sentido.

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Eu esqueço o que não devia, deixo para trás o que não queria, apago as linhas mal rabiscadas, reescrevo trechos, desfaço os versos, cruzo outras ruas, atravesso as mesmas esquinas de um jeito diferente até me dar conta de que estou mesmo sozinho e que por mais que tentem me dizer o contrário, a vida é assim. Quisera eu não pensar, não sentir, sequer amar e por amor me destruir até me refazer, ou quem sabe?, enlouquecer e me enquadrar no que dizem que é normal, no que é aceito, ser mais uma peça deste jogo social. Eu gosto do que é ilegal, do que é imoral, do que choca, surpreende, amedronta e me coloca frente a frente, dia a dia, toda hora. Tenho medo é de ser igual, ser mais um, apenas número, estatística, massa humana sem graça, sem raça, sem tesão nenhum. Meu nado nunca foi sincronizado. Sou contra a corrente. Às vezes sou tudo. Noutras vezes sou nada. Sou assim. Desde que me entendo por gente.