sexta-feira, 26 de agosto de 2011

das ruas ele fez um deserto

ele estava só. quando tudo aconteceu ele estava só. o amor, ele perdeu. a vida, ele deixou passar. o que estava bem ali ao lado, ele não viu. não viu ou não quis enxergar. preferiu partir. sozinho. aquela viagem seria só dele, dissera algumas vezes. embora soubesse que seria impossível esquecer tudo o que ficou. por mais que tentasse. tantos momentos felizes, outros nem tanto. carinhos, abraços, sopapos, crises. há muito ele já vivia em crise. desde criança. vai ver por isso ele não tinha a menor saudade da infância. pouco falava. ultimamente sequer saía de casa. já não encontrava mais os amigos. onde eles estavam, os amigos? ele estava tão sozinho.

das ruas ele fez um deserto. apagava as imagens de quem quer que passasse por ele. desviava o foco, perdia a atenção, avançava os sinais, cruzava as avenidas, parava em qualquer lugar, mas nunca, nunca descansava. perdeu o brilho, ele pensava. perdeu a graça, ele repetia. perdeu o sentido, ele sabia. e chovia e chovia e chovia. sem parar, ele dizia que nada mais o interessava, que nada mais servia, que nada mais ele queria. tudo terminava ali. não havia ninguém. no quarto, uma luz acesa. a cama vazia. os pés descalços sobre o chão gelado e o frio que percorria toda a espinha. o vento que batia as portas vinha da varanda. as janelas continuavam fechadas. um silêncio estranho que não existia.

uma, duas, três, quatro horas e nada. ninguém aparecia. não que estivesse esperando alguém pois este alguém não chegaria. ele sabia. ele não estava cansado mas seus olhos não se abriam. não percebia mais se era noite ou se era dia. trocou o fuso, já nem dormia. não enxergava mais, apenas via o resto do que sobrou dele mesmo. o que ele havia conseguido guardar do que fora um dia. só ele podia ver. de certo que não fazia a menor importância. ver para quê? se ele pudesse fazer alguma coisa, ele se multiplicaria. porque ser um só a vida inteira é desperdício, ele achava. bom mesmo é ser muitos e ao mesmo tempo não ser nada, acreditava.

leu todos os versos do drummond, decorou as músicas do vinícius, ouviu tom, caetano, baby, milton, john. escreveu nas paredes, rascunhou na própria pele, desenhou outro cenário, fez tudo o que podia e sabia. estava tudo diferente. mesmo assim as horas não passavam, quiçá os dias, os meses, o ano. um calendário inteiro a percorrer e ele ali, esperando, enquanto suportasse. dia a dia. sem cessar. num movimento interminável, incontrolável, involuntário. como respirar. e pulsar. acelerado e bem devagar. até parar. um dia.

neste dia ele estava sozinho.




quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Eu, que estava perto

Eles foram vistos juntos pela última vez na esquina da Rua do Teatro com Senhor dos Passos, bem ali atrás do João Caetano, num começo de madrugada de lua ainda cheia num céu limpo, ao som de um jazz acadêmico e entre caminhões e mais caminhões de uma obra da prefeitura. Foi rápido. Eu, que estava perto, tive a chance de reparar que eles pouco se falaram. Sequer se encostaram. Não pareciam nervosos, mas emocionados. Os dois se olhavam com ternura.


Havia amor ali.

Até então ninguém sabia que eles haviam marcado uma despedida e muito menos que eles tinham um caso e que este caso já estava rolando há quase um ano. Feito a morte anunciada, eles marcaram na agenda uma data para aquele amor terminar. Nenhum dos dois podia continuar com aquilo, diziam. Prometeram um ao outro guardar na lembrança tudo o que viveram enquanto estiveram juntos. Prometeram um não esquecer do outro. Prometeram tentar ser felizes e tantas outras coisas. Portanto, aquela seria a derradeira, a última vez e nunca mais.


Idiotice.


Todo mundo sabe que não se deve bolinar com essas coisas de coração. Sentimento é um terreno onde não se brinca, porra. Não dá pra chegar de uma hora para outra e dizer que no dia tal o amor vai acabar. Não é assim que funciona. Seria absurdamente fácil. Cômodo. Indolor. Simplório demais. Não seria o que conhecemos por aí como amor. Seria qualquer outra coisa. Até porque, amor bom é aquele que machuca, que deixa doer a saudade, que aperta o peito, que sufoca.


Vai ver é por isso que tem gente que morre de amor.


Não. Nenhum dos dois morreu, tenho certeza. Apenas nunca mais foram vistos juntos desde aquela madrugada, quando um deles, não me lembro qual, já achava que tudo ficaria ainda mais complicado depois que eles deixassem de se ver. O outro dizia ter medo do que iria encontrar pela frente, sabe-se lá onde. Eu, que estava perto, tive a sensação de que naquele momento já pairava nos dois a desconfiança de que aquela história deveria ter um outro fim. Se eu fosse íntimo deles, teria dado minha opinião. Mas conselho não se pede e se fosse bom, eu vendia.


- Não tem jeito. Nós sabíamos que seria hoje, um deles disse.


- Não dá para voltar atrás. Pacto é pacto, disse o outro.


Eles se olharam. Eles se abraçaram. Eles se despediram. Um deles saiu chorando que eu vi.


O outro só foi chorar mais tarde.




















sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Logo ali na esquina




A carta que saiu foi a da morte. Não que algo de muito ruim fosse acontecer. Nada disso. O que ela queria lhe dizer era da necessidade de se renovar, de morrer para nascer de novo. Porque assim são os ciclos. E o que não se renova, não sobrevive. Fica no meio do caminho, feito lagarta que não chega a borboleta.


Chegar até ali não tinha sido nada fácil. Assumir que era preciso mudar para seguir adiante estava sendo ainda mais difícil. Uma batalha árdua, dia a dia, noite após noite, fora a enxurrada de ideias e pensamentos muitas vezes inúteis. Desde que se entedera por gente era assim: uma aparente tranquilidade, mas por dentro era um agito só. Feito o mar quando esconde a correnteza.


Sua cabeça não dava trégua. Uma frase martelando, uma imagem que ia e voltava, uma lembrança remota, uma saudade esquisita, umas coisas malucas, outras tantas bonitas. Era de embaralhar. Chegava a esquecer as letras, confundir os gestos, procurar socorro. Chegava mesmo a pensar em parar. Feito chuva forte quando acaba de repente.


Depois então continuava e falava com quem bem quisesse ou lhe desse atenção. Tinha um quê de carência nisso tudo também, claro. Ninguém dá passos tão seguros de si assim. Muito embora para seguir no caminho fosse preciso culhão, encarar as feras, sangrar as feridas. Feito chaga que se abre a sua frente.


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Ouviu aquilo tudo sem dizer nada. Pagou o combinado e saiu de lá sentindo frio. Na avenida Nossa Senhora de Copacabana, um verdadeiro caos. Ônibus demais, carros demais, gente demais e uma vontade muito grande de chegar em casa. Ainda tinha de comprar alguma coisa para comer, embora não sentisse fome. Talvez um leite, bem mais tarde, quando fosse deitar. Agora, ali, naquela esquina, só pensava em não interromper o ciclo, em se reinventar, em deixar morrer para renascer e poder seguir eterno.




Sequer teve tempo de ouvir a freada.