segunda-feira, 28 de julho de 2014

Flores azuis miúdas

Se não estou enganado, foi numa noite turva de inverno que ele apareceu. O botequim da esquina ainda estava aberto. Dois ou três velhotes bêbados apoiavam-se no balcão gorduroso. Um deles carrega um rádio de pilha ligado, volume baixinho, numa estação cuja trilha sonora era a fina flor da música dor de corno. Um gato amarelo, já quase cego e sem rabo pousa esparramado entre garrafas empoeiradas de aguardente, equilibradas numa prateleira torta, pendurada precariamente na parede que um dia foi coberta de azulejos portugueses. Logo acima, um altar com a clássica imagem de São Jorge, o santo guerreiro, acompanhado de uma bandeirola já surrada do Vasco da Gama, umas fitas coloridas do Senhor do Bonfim, um copo de geleia com água e, dentro, uns galhos de arruda murcha e uma semente de olho de boi para espantar o mau olhado.

Abigail, a gorda, estava no caixa. Unhas impecavelmente pintadas de vermelho, bochechas rosadas, cabelos negros, ondulados, oleosos e displicentemente penteados para o alto, como de costume. Vestido preto, de corte vulgar, malha barata, marcando bem o excesso de curvas que se derramavam num decote generoso e revelavam o colo suado e o semblante cansado depois de um dia inteiro contando dinheiro entre um gole e outro de cerveja preta mais uns pedaços de carne assada. Abigail, além de ser gorda, era mal humorada, pavio curto e volta e meia desfiava todo o rosário de palavrões e xingamentos. Bastava se sentir acuada. Dava medo. Com ela não tinha fiado, não tinha conversa mole. Falava grosso. Era praticamente o homem da casa. Cliente nenhum tirava casquinha. Quem não a conhecia ainda tentava chegar perto, arriscar uma piada, um gracejo, uma cantada, mas levava logo um passa fora. Vivia sozinha nos fundos do botequim, numa espécie de meia-água que ela mesma ajudou a construir. O que ninguém jamais soube é por que ela chorava tanto todas as noites, pouco antes de pegar no sono.

Um choro que molhava todo o seu rosto e encharcava toda a sua cama, escorrendo pelo chão de cerâmica fria, transbordando todo o quarto, saindo pelas janelas, lavando ruas, ladeiras, vielas. Toda noite era assim. O pranto de Abigail ecoava feito canto, som agudo que doía, estuprava nossos tímpanos, causava em todos um certo espanto, um grito, um berro ao invés de um verbo, um verso simples, uma poesia única que rimasse todas palavras de todos os alfabetos do mundo com apenas uma: amor. Aí, então, ela acordava. Abria os olhos ainda úmidos. Espreguiçava afastando os braços nus e um bocejo de hálito forte. Levantava o corpo pesado devagar. Mexia com os dedos dos pés, sentava na beirada da cama, soltava um longo suspiro e ia se lavar. Dali a pouco precisava abrir o botequim. Todo dia era assim.

Quando ele chegou já era tarde.

- Está quase na  hora de fechar, Abigail foi logo avisando. Não sai mais nada da cozinha, a cerveja está quente, aqueles ali já estão bêbados e eu estou cansada. Só dá para te servir uma pinga, um refrigerante ou uma água. É pegar ou largar.

- Uma água sem gelo, disse ele tranquilamente, ignorando a grosseria.

Ele parecia feliz. Tinha os olhos grandes e iluminados, a sobrancelha perfeita, os gestos largos, um nariz grande meio torto, a boca carnuda e cheia de dentes emoldurada por uma barba espessa e áspera. Bonito ele. Usava um terno cinza amarrotado, porém bem cortado, caimento perfeito, gravata de seda afrouxada, um molho de chaves, um maço de cigarros e um ramalhete de flores azuis miúdas nas mãos. Bebeu a água num só gole. Fazia frio. Tinha chovido. Ele não pretendia demorar. Só não sabia muito bem para onde ir. Não encontrara até então um lugar neste mundo. Ele não era daqui, pensava.

- O moço é daqui de perto?, perguntou Abigail.

- Não, eu não sou daqui, respondeu espantado com a coincidência da pergunta. Na verdade, acho que eu não sei de onde eu sou. A moça, por acaso, sabe de onde ela é?

Abigail desviou o olhar. Pela primeira vez desde que ela se conhecia por gente sentiu um certo constrangimento, um lampejo de timidez. A voz daquele homem tinha um timbre suave, agradável, firme e a maneira como ele a abordou a deixou sem graça.

- Sei, acho que sei.

- Já eu, sei que nada sei. Que nem o filósofo, sabe?

- Não, não sei.

- Esquece. O que eu quis dizer é que só importa a surpresa, aquilo que você ainda vai descobrir, o que você jamais imaginou e vai mudar teu rumo quando você menos espera. A carta da roda da fortuna no tarô cigano, o capricho vaidoso do destino, o homem quando deixa de ser menino, a derrapada na curva.

- O moço é poeta, é?

- Não sei. Sei que lhe trago flores, disse, oferecendo-lhe o ramalhete de flores azuis miúdas.

Abigail ficou muda.

Ele pagou a água com duas notas. Não quis o troco. Despediu-se. Desapareceu.

Daquela noite em diante Abigail nunca mais chorou. Também nunca mais dormiu. Sorria acordada, insone, durante toda a madrugada, olhos vidrados no ramalhete de flores azuis miúdas.
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