sexta-feira, 27 de março de 2015

Onda

desfaz de mim a sombra e me deixa ver o sol.
me traz a luz do amanhecer,
aurora!
faz de mim o vento, o céu, o sal,
ressaca que arrebenta nas pedras do cais.

segura a minha mão quando eu quiser andar,
guia meus passos pelo chão,
abre meus olhos, revela suas cores,
livra minhas dores,
amores.

me deixa correr para o mar
molha meus pés na foz do rio que deságua .
me transforma em correnteza,
me solta,
me beija.

a mesma onda que me leva,
é aquela que depois me traz.

me leva...
... me traz...
me leva...
... me traz...

me leva...
... me traz...
me leva...
... me traz...

 me leva...
... me traz...
me leva...
... me traz...

terça-feira, 24 de março de 2015

Tempos de chuva

Finalmente havia começado a chover. Depois de meses de estiagem e ameaça de racionamento, chuva. Muita chuva. A pele já estava áspera, os lábios rachavam, as mãos como se estivessem cobertas por um fino pó, os pés feito cascos e aquele cheiro de podre no ar. A impressão que dava era a de que o mundo tinha passado dos limites. A classe dominante jamais deixaria de ser dominante e ele ali no meio daquele jogo sujo. Enquanto uns gritavam de cá, outros urravam de lá. Uma confusão generalizada, ninguém se entendia, toda hora uma discussão, um comentário mais agressivo, cada um com a sua opinião. Uma nova Torre de Babel, só que desta vez globalizada e com rede wi-fi. 

Os telejornais e praticamente toda a mídia tradicional mais parecem os mensageiros do apocalipse. Tudo é tenso. As notícias são anunciadas numa rigidez cadavérica, causando um terror psicológico sem precedentes, insônia, pesadelo, crise nervosa, psoríase e até mesmo morte súbita. Lá no poder, os ratos, os gatunos, os larápios, os espertos, os filhos dos espertos, os netos, a família toda. Um lixo. Era difícil respirar. Para ele, então, que sofria de asma e aquela pressão toda em seu peito só causando peso, suor e dor. Era quando ele abria a janela e o vento soprava para dentro outros ares. 

Ele dormia pouco, se mexia muito. O lençol nunca parava na cama, as pernas descobertas, os pés para fora do colchão de molas, a cabeça girando, a mente tentando acalmar e aquela voz aguda interna dizendo todas aquelas coisas que ele já sabia. Quase todas as noites era assim. Ele apagava as luzes, fechava e abria os olhos, se distraindo com o reflexo dos faróis acesos nos carros que aceleravam na rua. O sono não vinha. Deitava e rolava. De um lado para o outro. Até cansar e adormecer. Mas era um sono leve. Logo amanhecia e ao invés de pássaros cantando, buzinas apressadas anunciando que ele já estava atrasado mais uma vez. 

Ele levantava, corria para o chuveiro, um banho frio, filete de água escorrendo no rosto para espantar o cansaço e se misturar ao pranto daquele que precisava esquecer o que tinha para ser esquecido. O que doía mesmo era a saudade do que havia ficado para trás. Especialmente naquelas manhãs cinzentas, quando ele se olhava no espelho embaçado e via que restavam apenas algumas peças precisando de encaixes. O trabalho estava uma merda. A arte não lhe dava dinheiro. Todos os que ele amava estavam longe. Ele não estava assim tão só, mas dentro era como se tudo estivesse oco, roído, evaporado. Ele estava seco. 

Por sorte, a chuva havia chegado. 


quarta-feira, 18 de março de 2015

Para detonar a cidade

Eu não vim aqui falar do kaos, nem dos deuses da chuva e da morte.
Vim aqui dizer que eu tive a sorte de encontrar no meu caminho um pensador.
E que por onde quer que eu ande ele vai estar ao meu lado,
mesmo que eu já não esteja mais aqui.

Assim como ele, eu vim trazer o doce mel da poesia.
O verbo que me rasga a noite.
A harmonia que me invade dia a dia.
O ritmo, a dissonância, a melodia.

Eu vim fazer soar os timbres das canções que eu nem sabia que havia em mim.

Porque o que temos aqui hoje é arte.

É som,
é música,
é o verso da palavra escrita, sílaba por sílaba,
até escorrer pelo canto da minha boca e da sua.

A rima que sussurra em meu ouvido
vem do acorde que te sobe e te arrepia.

Arte que ecoa e transforma e transmuta e atravessa o tempo.
Eternamente provisório é o tempo em minhas mãos.
E nas suas.

Mas do que é feito o tempo?

É a linha tênue entre um instante e outro,
aquilo que entrelaça, que une, que liga
e que de repente despedaça,
desfaz o nó.

O tempo faz a gente virar pó.
E do pó, a gente vira luz
E da luz a gente faz um som.
Para cantar e iluminar essa cidade.

Uma ode à vida, que é essa dança ininterrupta,
constante cultura.
Negra, branca, ameríndia,
Essa mistura amalgamada,
que volta e se junta aqui de novo mais uma vez.

Incessantemente.

Porque já dizia outro poeta: o tempo não pára.
E encontra as canções perdidas de um disco antigo
que nunca deixou de tocar, aqui, ali, em todo lugar.

Para detonar a cidade.

Que feliz cidade é essa?