domingo, 27 de março de 2011

A Porta


Um vento gelado rasgava-lhe o rosto em pedaços. O frio àquela época do ano não era comum, mas todos pareciam não perceber que uma realidade diferente estava brotando. Sonhos, medos, fantasias e um enorme desejo de tornar-se verdadeiro. Era assim que ele sentia-se diante do mundo. Muitos séculos já haviam chegado. Outros tantos haviam de vir? Ali, no meio da rua larga, onde carros e guardas e padres passavam sem olhar sequer ao redor, ele pensava que aquele poderia ser seu último dia. Seu último instante. Seria ele o último homem?


Um bar. O mesmo bar de sempre. As mesmas luzes. O mesmo cheiro. O mesmo cálice de conhaque. Outros tantos pensamentos revirados, revisados, rebuscados. Ao encontro de si mesmo. Mas ele nem sabia o que poderia vir a ser. Apenas estava ali, naquele bar, esquentando o frio e fugindo do vento gelado que cortava-lhe o rosto. Estava quente no bar. A garçonete ainda era a mesma morena que meses atrás implorava-lhe que não fosse embora. Que ficasse. Que a amasse, a possuísse, a desejasse. Mas ele nem ao menos dera-lhe atenção. Ela lhe parecera vulgar. E talvez fosse mesmo. Mas qual é o homem que não gosta de um pouco de vulgaridade? Uma puta revigora qualquer um. Faz pulsar, sentir vivo, firme. E o que é melhor: sem o fardo do compromisso e as mazelas da rotina.


Mas ele não queria apenas uma trepada. Muito menos compromisso. Ele estava à espera do encontro com o que poderia ser sua cartada final. Ele tinha apenas 35 anos e já pensava que aquela poderia ser sua cartada final. O fim. E não o recomeço. O entendimento. Apesar do absurdo. Do caótico. Do visceral. Ele sempre vivera assim: no limite. Prestes a sacar uma arma, a explodir granadas, a detonar tantas bombas. O mundo o transformara nisso. E ele procurava a razão. Se é que havia alguma.


Outro conhaque. Já era o terceiro. A morena procurava fazer-se notar. Exibia um decote generoso que deixava à mostra suas carnes ainda tenras. Ela era jovem. Bonita. Mas era vulgar. E isso ele não perdoava. Com perfume barato e cabelos oleosos.


_ Você hoje não vai falar nada? Só veio beber? Encher a cara e se afundar nos pensamentos mais estranhos, sórdidos, loucos?


_ Talvez eu não tenha muito o que dizer. Não vim aqui para conversar. Nem sei ao certo por que estou aqui.


_ Talvez eu saiba... venha, vou lhe mostrar!


Ele a seguiu. Pela primeira vez em tantos meses ele a seguiu. Desceram por umas escadas sujas e sombrias. Vozes, gemidos, gritos. Luz. Lá no fundo havia uma luz que o cegava, mas que ao mesmo tempo o atraía. Era pra lá que ela o levava. Ele já não enxergava nada. Apenas a seguia de mãos dadas. Eram mãos quentes as da morena. Macias. Por um instante ele lembrou das mãos de sua mãe. Ela morrera há anos. Ele ainda era um menino. Naquele momento ele era um menino. Já não havia mais gritos, gemidos ou vozes. Só a luz, uma porta e a morena a dar-lhe as mãos.


_ Vê? É até aqui que nós podemos chegar juntos. A porta é você quem deve abrir e decidir se vai ou não seguir. Nunca segui adiante. Não posso e não quero. Mas você pode. Aliás, você sempre procurou por esta porta. Está preparado?


_ Não. Não sei... talvez... acho que sim. Estou com medo.


_ Este é o nosso pior inimigo. O nosso verdadeiro fantasma. Liberte-se ou volte comigo para suas angústias, suas questões mal resolvidas, sua vida medíocre. Você pode decidir e lhe prometo: se voltar comigo, não vai lembrar de nada. Não vai imaginar as escadas, os gritos, a luz. Nada. Vai voltar ao que era antes. Vai voltar à sua quarta dose de conhaque barato, naquele bar mal frequentado.


_ Eu vou abrir. Preciso. Por favor, me ajude...


_ Só você pode abrir esta porta. Esta porta é a sua porta. Abra!


Ele soltou a mão da morena e abriu a porta. Desapareceu em meio à luz e ao vento quente. Nunca mais a morena soube dele.


Nem ele... nem ele...

quinta-feira, 24 de março de 2011

Eu não sou perfeito


Desaprendi a mentir, pois já soube. Hoje, meus olhos quase não me permitem mais. Não levo em consideração as pequenas e inocentes mentiras. Até porque, não saberia dizer quais são as pequenas e quais são as inocentes. Falo da pior mentira, que é a de não ser verdadeiro consigo mesmo.

Antes de me afogar no vidro de rivotril ou de me perder com outras drogas, mergulhei na verdade.

Overdose de verdade.

Tomei consciência dos meus 40 anos, olhei para o espelho, vi meus cabelos mais ralos, minha barba grisalha, uma vida passando. Metade dela, talvez.

Entendi que eu não era perfeito, que eu tinha defeito e que aquele defeito é meu, só meu e de mais ninguém. Sinal de que eu, finalmente, me rendi à verdade.

Logo depois entendi que ninguém é obrigado a conviver com meus defeitos. Nem eu.

Ninguém aguenta.


Feito homeopatia, provei do meu próprio veneno para conseguir encarar minhas verdades. Chamei de meus tantos defeitos, convivi mais de perto com eles, dialogamos, brigamos e procuramos nos entender. Provar deste veneno exigiu de mim verdade e desapego. Foi então que descobri o melhor da brincadeira: desapegarmos de nós mesmos.

Porque somos nós aquelas falhas todas.