sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Lume

Há que se encantar pela vida.
Ficar de pé, seguir em frente,
ser mais um elo nessa corrente,
firmar na luz que vem do candeeiro. 
O resto é o tempo, é movimento,
lento, brisa, vendaval.

Faz tua espiral girar bem alto
e transforma tudo ao teu redor.
Seja a voz suave que sopra em boa hora,
a mudança que vem de dentro pra fora,
a alegria simples que inspira um verso, 
um gesto, um grito de despertar.

É aqui neste momento entre a queda e o salto, 
no limiar infinito do espaço,
num breve ocaso do céu.
Aqui, onde não é o começo
e onde ainda não teve fim,
onde deves acreditar, dizer que sim. 

Pois não duvides, tu és o lume,
és o guia na estrada rumo ao Norte,
lá tem gente que, por sorte, ainda está a te esperar.
És o sol que brilha, és toda essa maravilha,
és teu próprio milagre, a testemunha viva. 
Há que se encantar pela vida.


quinta-feira, 1 de novembro de 2018

Fica

Ainda há pouco eu te disse: fica.
Deita do meu lado e acredita.
Ouve as batidas. É meu coração.

Barulho de chuva no Cerrado
e a água que cai, arrastando semente,
no barro vermelho onde brota a vida.

Sou sujeito fértil nessa cidade sem esquinas,
escrevo frases sem sentido na minha pele,
penso em versos com minha língua na tua boca,
meu gozo é manso, a voz é rouca,
me dá tua mão que eu sou poesia.

Lá fora, céu nublado.
Aqui, verbo intransitivo.

domingo, 21 de outubro de 2018

Agora é outra vida

É preciso começar um novo capítulo,
se dedicar a outras lições.
Há tanta coisa guardada dentro do peito:
um nó, um peso, um amor rarefeito
e muitos versos perdidos que eu nem sei se existem mais.

Se eu te encontrasse nas palavras certas
do passado, presente ou futuro, te juro,
você seria a mais nova poesia
tatuada para sempre em minha pele-página.

Eu teria como ler para você todas as frases soltas,
rasuradas nas linhas tênues do meu corpo.
Seria o seu romance, seu homem-livro imaginário,
seu melhor enredo, sua história mais bonita.
Só você não acredita.

Mas agora é outra vida.
Acredite.



sexta-feira, 14 de setembro de 2018

Paris foi uma festa

Dia desses pedi licença ao Hemingway e também fiz de Paris uma festa. Nunca tinha ido à França, nunca tinha ido à Europa, nunca tinha cruzado o Atlântico. Eu tinha apenas quinze dias de férias, tinha uma grana guardada, tinha muita vontade de viajar e tenho também uma amiga, a Regina, que me deu o toque de que estava rolando promoção de passagem pra Cidade Luz e que era para eu entrar no site da companhia aérea naquele minuto, não pensar duas vezes e garantir logo meu lugar no voo. Adoro gente decidida, que manda as coordenadas, que resolve tudo. Obedeci.

Aí foi que veio o frio na barriga. Fui ver meu passaporte: vencido. Euro? Só tinha ouvido falar. Inglês? Em construção. Francês? Jamé parlei. Mas a ideia de viajar sozinho para o exterior pela primeira vez na vida já me acompanhava desde algum tempo, mais ou menos o mesmo tempo em que vivo eu e eu em Brasília, o silêncio, esse céu, o barro que pinta de vermelho meus pés. Prato cheio para o meu analista. Ele adora. Ainda não o encontrei desde que cheguei de viagem. Não sabe de nada.

Não sabe da felicidade com a qual cheguei e que me acompanhou por todos os dias naquela cidade. Não sabe do meu primeiro piquenique na grama rala em frente à Torre Eiffell tão logo pisei por lá, sob um céu azul pintado especialmente para mim, presente do Grande Produtor, com quem tenho uma boa relação, graças a Deus e a Adriane, que nos apresentou. Não sabe da minha amiga Ana Paula, que numa única frase num bate-papo online, eu ainda no Brasil, ela na França, me arrumou um lugarzinho bacana pra caramba pra eu ficar, bem pertinho do metrô, ao lado do Champ de Mars, o Rio Sena logo ali, vizinho de uma lojinha de queijos pela qual eu me apaixonei à primeira vista e dos quais comi alguns fartamente acompanhado de muito vinho de todas as cores desde a hora em que eu acordava até a hora em que eu ia dormir.

Meu analista sabe que eu costumo acordar bem humorado todos os dias. O que ele não sabe até agora é que eu acordava ainda mais bem humorado em Paris. Devia ser por causa das baguetes que eu comprava numa boulangerie - frescura e biquinho à parte, não dá para traduzir boulangerie como uma simples padaria porque, na boa, não pode e pronto - perto de casa para comer com aquela manteiga que só tem por lá, com homus de todos os tipos, com um suco de pêra que eu sabia que ia sentir saudades desde o primeiro gole, com aqueles telhados todos à minha frente. Era mais ou menos desse jeito que eu forrava meu estômago todas as manhãs antes de ir para a rua, abrir a primeira garrafa de rosé, refresco num verão inesquecível, e sair flanando, verbo intransitivo e ocioso, sem rumo e destino certo naquela cidade linda de viver.

Ainda não decidi se conto para o meu analista que os franceses foram simpáticos comigo quase que o tempo todo. Só resmungavam quando eu esquecia de iniciar qualquer frase naquela língua pra lá de romântica sem um bonjour antes. Foi assim no metrô, quando cheguei meio tímido meio decidido e mandei ân tíquete sivuplé, assim mesmo, com sotaque carioca, pro bilheteiro. Foi o bastante para ele franzir o cenho olhando no meu olho, rosnar alguma coisa que eu não entendi _ e que me gelou a espinha na hora de tamanho nervoso, confesso _, apontar o dedo estressado para uma maquininha onde estava escrito BONJOUR, assim mesmo, em letras garrafais, e me dizer com todas as sílabas "tu es à Paris". Tradução: você está em Paris. Ali eu entendi que minha mãe tinha razão e que eu precisava ser mais bem educado, dizer bonjour sempre que fosse pedir qualquer informação, que não bastava aquela troca de olhares, um cumprimento sutil de sobrancelhas, um sorrisinho de canto de boca como muitas vezes estamos acostumados por aqui. Óbvio que eu esqueci desse detalhe mais umas duas vezes até o final da viagem, mas em se tratando de mim, desligado e desmemoriado, já era de se esperar. Era pardón pra cá, pardón pra lá e au revoir

Uma coisa é certa: vou contar para o meu analista que o Louvre fecha toda terça-feira e que eu, desavisado e desinformado, dei com a cara na porta minutos depois de ter dado com a cara na porta do Museu L'Orangerie, ali perto, onde estão as Ninfeias de Monet e que também não abre às terças. Ainda bem que entre um museu e outro fica aquela lindeza que é o Jardim de Touleires e que eu vim a saber, via Google, é o primeiro jardim público de Paris. Aliás, vou confessar para vocês em primeira mão que nem me importei muito em não ter conseguido entrar no Louvre. Na noite anterior eu fiz um passeio de barco pelo Rio Sena e uma das curiosidades que o guia falou e que mais me chamou a atenção foi que se ficássemos apenas três segundos em frente a cada obra do museu, levaríamos três meses para ver todo seu acervo. Me deu preguiça e resolvi deixar o Louvre para uma próxima vez, no inverno, talvez. Preferi aproveitar Paris à céu aberto, sentir na pele toda aquela luz que mais me soava como poesia.

Quando eu disser para o meu analista que eu troquei o Louvre por uma caminhada até o Arco do Triunfo e que de lá fui comer um tal de beef bourguignon e dar uma calibrada no nível alcoólico pelas ladeiras de Montmartre depois de ter me emocionado na Sacré Couer, ele vai entender. Vai entender também o porquê de eu ter me apaixonado pelo alaranjado do pôr do sol na beira do Sena e ter perdido a conta de quantas garrafas de vinho compradas por quatro, cinco euros num supermercado Carrefour eu bebi naquelas margens em meio a tantas risadas cúmplices, Marília, Letícia, novas amizades, e os beijos na boca que eu provoquei. Paris te seduz assim, de cara. Irresistível.

Meu analista vai gostar de saber que eu andava uma média de 16 quilômetros por dia, de acordo com um aplicativo que eu nem sabia que eu já tinha e descobri quando cheguei lá. Ele vai gostar de saber que eu não perdi a mania de estar sempre atrasado e que de tão atrasado só fiquei meia hora no Jardim de Luxemburgo, outra lindeza daquela cidade, e que fecha às oito da noite. Tudo bem que nem era noite, era verão em Paris e ainda era dia, mas fechava mesmo assim. Eu lá, sentado depois de andar por horas, com os pés cansados, crente que ia relaxar um pouco e o guardinha começa a apitar, avisando que os portões iam fechar e que era para todo mundo sair. Eu saí, claro.

 Não vou conseguir lembrar se foi naquela noite que resolvi ir até o Marrais, o tal bairro moderninho de Paris, e acabei numa espécie de inferninho de duas alemãs ali pelas bandas da République, uma versão mais cosmopolita da Rua Augusta. Foi lá que encontrei uma brasileira, baiana, Maria, bêbada, acompanhada por dois alemães enormes, também bêbados, e que se fizeram de mal encarados quando me apresentei, talvez pelo fato de eu também ser brasileiro e Maria ter puxado assunto comigo, samba, capoeira, essas coisas que eu nem entendo muito bem, na verdade. Não demorei, paguei minha birita, voltei andando pro Marrais e cheguei numa praça linda, isso é redundância, eu sei, cheia de galerias de arte e bares ao redor, a Place des Vosges, onde morou Victor Hugo, o escritor. Foi naquela noite que eu, alcoolizado e sem internet para chamar um Uber ou sequer consultar um aplicativo que me indicasse como fazer para voltar para casa, quase surtei. Imagina eu ali, sozinho, tarde da noite, com vinhos de um dia inteiro nas ideias, longe pra caramba de onde eu estava hospedado, com meu francês inexistente e meu inglês cansado. A sorte foi que uma alma bondosa percebeu meu desespero e me disse que o último trem do metrô para a estação de Bir-Hakeim ia passar dali a quinze minutos na estação Saint Paul e que era para eu correr. Voei.

Preciso contar pra ele como foi bonito esbarrar com uma estátua gigante do Arcanjo São Miguel em plena Praça Saint Michel, claro, e silenciosamente agradecer pela proteção e por todos aqueles dias bacanas daquela viagem que eu nunca mais vou esquecer. Agradeci por tudo, também, assim que pisei na Catedral de Notre-Dame, ali pertinho, depois de me engordurar com um croissant de chocolate, de pé, sob o sol, ao lado de noivas japonesas e suas fotos de casamento. Agradeci até mesmo quando estava no bar que fica no terraço do Centro George Pompidou, que maravilha, boa conversa, novas amizades, encontros que a vida te proporciona, admirando, hipnotizado, lá do alto, a cidade. Coisa mais linda.

E foi para fechar com chave de ouro que, na última noite, uma amiga francesa, Heloise, que morou anos no Rio de Janeiro, mas que eu só conhecia via Facebook, me chamou para um jantar de despedida na casa dela. Pode trazer quem você quiser, ela disse. Levo uns vinhos também, respondi, comendo uma galette e aproveitando o wi-fi de graça em frente ao Museu d'Orsay, depois de passar a manhã e a tarde andando pra lá e pra cá me despedindo de Paris. Voltei pra casa, tomei um banho, deixei a mala praticamente pronta, vesti uma calça jeans, escolhi uma camisa invocada, peguei o metrô e fui encontrar Heloise com a estranha sensação de que eu estava indo conhecer uma amiga do peito, irmã, camarada e que é a boa energia e os afetos instantâneos que unem as pessoas. Naquela minha última noite em Paris, Heloise, que só me conhecia de Facebook, Letícia, que eu conheci dias antes e que era amiga de Marília, que mora em Paris, que já tinha virado minha amiga e que por coincidência conhece vários amigos meus, nos conhecemos ainda mais e brindamos à nossa capacidade de compartilhar afetos e transformar a vida, onde quer que a gente esteja, numa verdadeira festa.

Voltei para o Brasil horas depois, ainda bêbado, ainda mais feliz. Trouxe muito de Paris comigo. Deixei muito de mim por lá. Qualquer hora eu volto, eu sei.















domingo, 22 de julho de 2018

Aquela torre alta

Por tantas vezes eu te quis aqui no meu peito horizonte até me perder de vista. Sentado ao teu lado, muros vindo abaixo, tua pele na minha, suor, silêncio, rima e aquela torre alta na cidade sem montanhas a nos desorientar. Um norte eu pedia, o rumo eu perdia, e o coração jaz rascunho de um mapa amassado, jogado no chão. Dá aqui tua mão, segura na minha, ainda sinto muito tua falta nesse frio que volta e meia faz por aqui. Por que te esconder em teu deserto se eu sou rio em curso incerto? 

Vem molhar teu corpo em mim. 

quarta-feira, 30 de maio de 2018

Convicta

Dia desses lembrei, assim, do nada, dela me contando quando viu a lua cheia, enorme, surgir de repente nesse céu que é mar aqui na secura do Planalto Central. Era noite fria na capital e as luzes dos faróis dos carros que cruzavam apressados as superquadras pareciam não enxergá-la. Muitas vezes ela se escondia mesmo. Tinha o sonho de se tornar invisível quando bem entendesse que é para só observar, voyeur numa cidade sem esquinas, distâncias, monumental. Ela confessou mais tarde que estava ali, de pé, fazia um tempo já, procurando seu eixo entre as curvas traçadas pelo arquiteto, entre espaços vazios, entre tantos silêncios, novos amigos, outros amores.

Não importa onde, a vida é sempre um risco, ela dizia convicta.

Eu prestava muita atenção em tudo o que ela me falava, apesar de tê-la encontrado muito poucas vezes por aqui. Muito menos do que eu gostaria. Vivia cheia de histórias, personagens incríveis, planos sedutores, uma facilidade para entreter quem quer que fosse, dona de uma gargalhada sonora e aquele olhar verdadeiro que te desnudava, você querendo ou não. Sempre gostei de gente assim, muito embora por muitos anos eu jurasse de pé junto que não. Isso foi antes de eu entender que timidez e orgulho são farinha do mesmo saco e me colocar humilde diante das muitas verdades que um dia eu peguei como se fossem minhas, absolutamente minhas. Hoje em dia eu tenho muitas dúvidas sobre mim mesmo. Ainda bem.

Pouco importa o homem, mas sim, a mensagem, ela me diria.

Ela me diria também que eu não me preocupasse com nada, que no final dá tudo certo, que é possível sim escrever torto em linha reta, que a vida pode e deve ser uma festa, que o amor é de fato o que há de mais importante nesta existência, que é preciso olhar para o lado, estender a mão, que tudo é experiência, que é para se permitir, compartilhar, compreender. Só que ela não está mais aqui. Não me disse para onde foi. Celular sempre desligado. Nunca mais mandou nenhum recado, sequer me deu tempo para uma despedida, um bate papo na varanda, um trago, uma birita. Apenas se foi. E eu deixei que ela se fosse, luzes se apagando, desaparecendo dentro de mim. Melhor assim. Quase ninguém soube, quase ninguém viu. Saudades, lembranças, frases que não foram ditas e a falta do abraço que ficou para depois, quem sabe, um dia. A vida é uma sucessão de encontros, agora eu sei, coisa que antes eu não sabia.

Hoje eu vi a lua cheia.




segunda-feira, 14 de maio de 2018

Despedidas

Quando eu vim morar em Brasília, longe de todas as minhas referências afetivas mais viscerais, uma das coisas que mais me afligia era pensar que eu poderia estar vendo aquela pessoa querida pela última vez sem saber. E, pior, que eu não estaria por perto na hora da despedida. Essa sensação talvez fosse em parte porque volta e meia ainda me vem à lembrança tudo o que passei há pouco mais de dois anos com minha mãe e meu irmão internados em estado grave numa São Paulo deserta para mim. Minha mãe se foi. Meu irmão está aí firme e forte. E eu agradeço por ter tido o privilégio de estar presente do início ao fim daquele ciclo que se encerrou e deixou um ensinamento único nas nossas vidas. Dona Lígia fechou com chave de ouro sua passagem por estas bandas. E eu estava ao lado dela. 

Na manhã desta segunda-feira, uma prima-irmã, dessas com as quais a gente já nasce com os laços estreitados, unidos, raros, cientes serem de uma mesma raiz, se foi. Estive com ela pela última vez em março, no hospital, no dia em que ela acabara de ter alta depois de ter ficado internada por algumas semanas em estado grave no CTI. Eu nunca lidei muito bem com doença, com médicos, hospitais, agulhas, exames, nada disso. Quando precisei cuidar do meu irmão e da minha mãe, foi como se eu tivesse respirado fundo e mergulhado naquele mar revolto num fôlego só, sem tempo de parar e pensar em nada. Portanto, ver minha prima ali naquele leito era ter noção de que o caminho era sem volta, de que mais um ciclo se encerrava, que nós, nessa aventura humana, independente de raça, cor e credo, somos finitos. 

Naquela tarde em que nos vimos pela última vez, ela ainda preservava o sorriso largo e o jeito doce e carinhoso de olhar pra gente e dizer que estava tudo bem. Eu havia chegado de Brasília e fui direto do aeroporto para o hospital de mala e cuia. Lá estavam ela e minha tia num exercício pleno de amor entre mãe e filha que sabiam que iam precisar se despedir muito em breve. Só eu sei o quanto me segurei para não desabar ali na frente daquelas duas mulheres que eu tanto admirava. Por dentro, eu era só o pó. Quando nos falamos de fato pela última vez, num bate-papo rápido via celular, há uns vinte dias, minha prima me confessou, com a voz bem fraca, que já estava cansada de tentar encontrar forças, que estava difícil, que tudo doía muito. Aquilo doeu profundamente em mim também. Ruim demais imaginar o sofrimento daqueles que você ama. Ainda mais estando longe, como eu. Dá um nó na garganta, sabe? 

A verdade é que as últimas duas semanas foram de muita apreensão. Minha prima havia piorado e voltado para o hospital. Minhas tias por parte de mãe sempre foram muito unidas, sempre estiveram muito presentes nas nossas vidas e, por conta disso, as relações que temos entre os primos é muito forte. Coisa de irmão, sangue, família. Amor mesmo. Vivíamos uns nas casas dos outros e a casa dessa minha prima era meio que o porto seguro de todo mundo. Era para lá que corríamos quando havia festa ou algum problema. Ou seja, estávamos todos muito fragilizados, preocupados, entristecidos com o que estava acontecendo. A gente sabia que estava chegando a hora de a Mônica ir embora, mas a gente não entendia por que tinha que ser ela, por que tinha que ser daquele jeito, por que tão cedo, por que tanta dor. A gente só sabia que estava chegando a hora e pronto. 

Aí, então, nessas horas a memória resolve brincar e chega trazendo as imagens de uma infância cheia de histórias, das brincadeiras na vila de um subúrbio ainda ingênuo e tranquilo, dos primeiros bailes da nossa adolescência no Clube dos Sargentos de Cascadura, da primeira vez que fomos à praia de Ipanema sozinhos de ônibus, do primeiro porre, da vigilância cerrada do meu tio, das tardes na piscina, das sacanagens que eu falava, das merdas que eu aprontava, do comportamento exemplar da minha prima que não falava nome feio e não se revoltava com nada. Eu, o doido. Ela, a boazinha. A gente se completava assim desde que nos entendemos por gente. Casei, ela foi minha madrinha. Ela casou, eu fui seu padrinho. Mal ou bem, a gente estava sempre perto um do outro. Mas na manhã desta segunda-feira ela se foi e eu estava aqui, longe dela. 

Agora ela é mais uma que vive dentro de mim. 

domingo, 29 de abril de 2018

Amais-vos, porra!

O mundo acabou, a humanidade é que ainda não se deu conta disso. Afirmo isso talvez porque volta e meia penso que sejamos uma raça alienada, atrasada e destinada a exterminar nossa própria espécie. Somos cegos, alguns se fazem de surdos e outros tantos de mudos. Assim somos nós, os humanos, voltados para os nossos próprios umbigos. Não faz muito tempo e eu ouvi de uma pessoa próxima que pouco importava o que se passava com o outro. Importante, para ele, era o seu bem-estar e o bem-estar da sua família. O resto era o resto, não lhe interessava. 

Eu, que sou por muitos considerado esquerdopata, comunista, pró-direitos humanos, louco, entre tantos outros impropérios, só conseguia olhar para aquela pessoa e pensar em como o egoísmo e a falta de cuidado com o outro são atitudes nocivas ao ser humano e, consequentemente, ao nosso planeta. Todas essas guerras, todo esse discurso de nós contra eles, toda essa divisão imposta pelo sistema gera desigualdade, que gera ódio, tristeza, pobreza, atraso, miséria, caos e fim. E é isso tudo o que estamos vendo com os nossos próprios olhos por aí, não é mesmo?  

Perceba que isso não é privilégio nosso, do povo brasileiro. A situação é grave em todo o planeta, cada povo com as suas mazelas. Sejam elas de cunho material ou moral. Ou ambos, o que acho ainda mais grave. Acontece lá, imediatamente a gente sabe aqui e muitas vezes vamos juntos inconscientemente num mesmo movimento (quem não lembra da Primavera Árabe que chegou aqui nas manifestações de 2013?). Tudo isso agora, num mundo cada vez mais globalizado, com todas essas facilidades tecnológicas da atualidade ao nosso alcance, nos aproximando mais uns dos outros e ao mesmo tempo nos afastando, nos deixando cada vez mais sozinhos, ilhados nas nossas bolhas. 

Preocupante, eu acho.

Hoje tudo é para ontem. Se não for para ser agora, já não presta mais. Imediatismo. Respostas rasas. Pouco tempo para um aprofundamento em seja lá qual assunto for. Ninguém mais lê nada que não tenha mais de dois parágrafos, não se concentra em nada por mais de dois minutos, as relações não fluem, pais não veem os filhos, os afetos se resumem a emoticons em mensagens via redes sociais. É tudo muito rarefeito, escapa pelas nossas mãos. E o cenário parece ainda mais assustador quando esfregam na nossa cara que a maior concentração de renda fica nas mãos de poucos, muito poucos, por pura ganância e egoísmo mesmo, e daí? Exploração total e absoluta. A consequência? Essa realidade atual e cada vez mais impactante para nós, brasileiros, e para nós, raça humana. 

Como eu disse lá em cima, o mundo acabou. Mas é verdade também que podemos tentar criar um mundo diferente e a hora para um levante é agora. Não dá mais para esperarmos. Não é preciso pegar em armas. Não vamos cair no discurso do lado negro da força e alimentar ainda mais o ódio e a violência. Nada disso! Precisamos deixar esses sentimentos ruins se diluírem por si só e pronto. Nossas armas são outras. Nossas armas são o conhecimento, o respeito, o empoderamento, o cuidado com o outro, a igualdade de direitos e o amor. A revolução que a humanidade precisa agora não é mais a revolução cognitiva, dessa já tomamos consciência. A hora é da Revolução do coração. 

Amais-vos, porra!


domingo, 15 de abril de 2018

Verbo intransigente

Cada vez que meu coração esvazia
uma estrela se apaga no céu,
é meia-noite invadindo o meio-dia,
raios, trovões, ventania,
um peso no peito,
é essa agonia.

Cada vez que meu coração esvazia
tudo ao redor escurece,
o sol meio que desaparece,
não tem luz de fim de tarde,
não tem luz no fim do túnel,
cegueira, poeira, pó.

Cada vez que meu coração esvazia
um sorriso vira lágrima em algum lugar,
chora o grande, chora o pequeno,
o antídoto é o mesmo que o veneno,
todo mundo junto de novo - eu, tu, ele,
conjugando o verbo intransigente:

amar.









sexta-feira, 13 de abril de 2018

Porto solidão

Carrego o mar em mim.
Sou maré cheia, correnteza,
onda brincando na areia,
água salgada, arrebentação.

Banho meu corpo em oceanos profundos,
nesses, onde o amor é mais bonito,
lá fora horizonte infinito, e eu ali,
ainda menino, aprendendo a nadar.

Porto solidão

segunda-feira, 5 de março de 2018

Dá aqui um abraço

Era fim de tarde, tinha chovido demais, nuvens cinzas num céu carregado de relâmpagos, asfalto molhado, pistas derrapando, motoristas desatentos, imprudentes, um perigo constante nessa cidade sem esquinas. Ele já havia caminhado não se sabe por quantos quilômetros nem por quanto tempo, muito menos por onde. Ele não se importava com a chuva, que nesta época do ano vem aguar o Cerrado. Ele não se importava com a lama, que vem da terra vermelha e molhada que tingia seus pés. Ele sequer falava.

Ele apenas caminhava.

Por horas, dias, meses, uma vida inteira se preciso fosse. Ele seguia em silêncio. Olhava curioso para fora, prestava muita atenção no que vinha de dentro. Havia o ritmo, ele sabia. Um compasso suave, uma mente mais quieta e outras tantas lições para que ele pudesse aprender a viver sozinho e a não reclamar mais de nada. Não é de hoje que ele só olhava para frente, traçava o caminho, pisando descalço, aquelas mesmas músicas na playlist, os livros de sempre na mochila, outros sonhos em mente e lá adiante, por onde quer que ele fosse, o destino.

Eu não lembro muito bem onde ele estava quando encontrou o outro. Fazia tempo que não se falavam, que não se viam. Era como se não se conhecessem mais. Estavam ambos muito diferentes. Sei que ele seguia em frente, como de praxe, e o outro ali, parado, sem esperar nada nem ninguém, um álbum cheio de recortes, poucas histórias, uma vida distante, planos meio que esparramados pelo chão, numa confusão latente que eu confesso que nunca entendi. Era tudo muito estranho, mas ao mesmo tempo envolvente. Talvez por serem tão diferentes, não sei, pareciam se entender e saber o que cada um necessitava. Foi o que eu pude observar naquele fim de tarde, já quase noite, quando eles finalmente se encontraram depois de toda aquela chuva.

Eles se olharam.

Custaram um pouco a se falar. Lembro que foi ele quem quebrou o gelo e perguntou se estava tudo bem, por onde ele havia andado todo aquele tempo, que ele sentia saudades, mas que a vida era feito um rio caudaloso, desses que a correnteza te levava e você ia, apenas ia, mesmo sem saber onde aquele rio vai desaguar. O outro carregava uma certa tensão, tinha um jeito sério, um olhar tristonho, perdido. Respondeu quase que num sussurro que estava precisando chorar, que tinha um monte de coisas engasgadas, um peso que não era dele, um fardo que o deixava preso nesse chão e que seu terapeuta ultimamente tem sido cruel e que nas últimas sessões de análise tem apanhado sem dó nem piedade. Era preciso crescer, ele respondeu. Mas o outro parecia não dar atenção.

Mesmo assim, ele contou ao outro que fazia tempo que vinha andando por aí, que passou por poucas e boas, conheceu tantos lugares, conversou com tanta gente, amou, traiu, iludiu, se deixou iludir, pensou já ter encontrado a verdade, perdeu as máscaras, criou armaduras, não deixou endurecer seu coração, não perdeu a ternura, disse que quer amar de novo, que vinha esbarrando cada vez mais vezes com a felicidade e que a liberdade era o que deixava mais confiante na vida. O outro ouvia aquilo tudo em silêncio, sorvia cada palavra, sorria por dentro, se soltava aos poucos e deixava revelar um brilho manso no olhar. O outro muitas vezes não sabia o que falar. Não estava acostumado, não gostava de gente, achava vantagem ter poucos amigos. Vai ver é vantagem mesmo e eu não sei. Ele também parecia não saber, mas o outro estava acostumado assim. Ele gostava do outro. O outro dizia que também gostava dele. Eles eram amigos.

- Dá aqui um abraço.

(E isso naquele momento bastava)

quinta-feira, 1 de março de 2018

Pele precipício

Hoje sou janela que abre pra dentro e pra fora.
Parapeito a debruçar sobre mim mesmo
até perder-me no horizonte, essa linha tênue,
que me divide entre o raso e o profundo,
entre o claro e o escuro,
a razão e o coração,
o sim e o não,
minhas luzes, tantas sombras.

Carrego tudo aqui comigo.

Ganhei de presente cenas do céu mais bonito,
da lua cheia iluminando estrelas azuis
e a constelação de escorpião no centro do meu país,
bem no alto da minha cabeça,
fazendo tudo ao redor girar.

Sim, eu sou janela que um vento quente e forte cisma em querer fechar.

Porém, meus olhos, esses sempre bem abertos,
veem que lá fora já se despede a madrugada, essa insone inveterada.
Ela desconfia que trago dentro do peito a esperança,
feito catarse refletida nos primeiros raios de sol
de outras manhãs de amor infinito a me tatuar.

Ainda não te contei do inferno a queimar minha pele precipício.

Nem do salto que eu dei.
Nem do abismo em que eu mergulhei.
Nem do medo que eu não senti.
Não precisa.

Isso é só o início.