sexta-feira, 23 de julho de 2010

Papo paralelo


Há anos existe um outro dentro de mim me contando coisas. Este outro praticamente não para de falar um só instante. Enche meus ouvidos. Me dá umas ideias. Volta e meia me vem com uma frase pronta, quase que um verso. Já aconteceu de me soprar um poema inteirinho, estrofe por estrofe, e eu sem ter onde anotar. Isso mais de uma vez. Quando cisma, me diz as coisas aos poucos, como se preparasse o terreno. E de uma maneira ou de outra eu sempre paro para escutar o que este outro tem a me dizer. Confesso que me surpreendo a cada dia. Me emociono até.

Não raro não consigo ouvir muito bem o que ele me fala. O mundo é muito barulhento e está cada vez mais difícil ficar em silêncio para poder ouvir aquilo que o outro tem a nos dizer. Entenda como este outro aquele que está dentro de nós. É difícil, eu sei. Talvez a tarefa mais difícil de nossa existência. Lembro que há uns 17 anos eu tomei ayhuasca, numa cerimônia do Santo Daime. Naquela noite, aos pés da Floresta da Tijuca, eu tive uma das experiências mais marcantes da minha vida.


Depois de beber o chá e de cantar uns hinos, o corpo meio que se anestesiou e era como se eu fizesse parte de uma outra vibração. Como se eu pudesse realmente ver um universo paralelo. Ver e sentir. O frio virara calor. Não havia o tempo. E a respiração era longa, tranquila, serena. Quase imperceptível. O mundo ficara lá fora.

- Que louco, você deve estar pensando.

O silêncio entre um hino e outro era o sinal para que eu megulhasse mais profundo naquilo que eu desconhecia. Naquela noite - tenho certeza absoluta - fui apresentado a mim mesmo e a tudo àquilo que eu entendo até hoje como infinito. Não tive medo pelo simples fato de eu poder abrir os olhos e, ao abrir os olhos, me dava conta do quanto nosso mundo externo é limitado. Ou o tanto que ele nos impõe de limites. Enquanto que ao fechar os olhos um mundo de possibilidades se abria. Parece antagônico. E é. Mas desde então tem alguém me dizendo que a mágica talvez esteja em olhar para fora sem deixar de olhar para dentro.

Caso contrário, eu me perco.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Música até o fim

Nunca tive um só cd de Elizeth Cardoso. Embora conheça suas músicas desde criança graças à minha minha mãe, que volta e meia cantarolava uns versos que, conforme suas palavras, eram do tempo do ronca. Só bem mais tarde fui prestar atenção naquelas músicas e no talento daquela que foi uma das maiores cantoras brasileiras. Eram preciosidades feito Ellizeth Cardoso que faziam sucesso e a cabeça da geração dos meus pais. Lembro eu, bem menino, de um lp da Maysa e toda aquela fossa na minha casa. Dalva de Oliveira era habitué e volta e meia surgia uma Ângela Maria. Nelson Gonçalves também batia ponto e Roberto Carlos nunca perdeu a majestade. É o rei. O primeiro disco de João Gilberto tenho guardado até hoje. Depois veio Elis. Lembro que minha avó, mãe do meu pai, só se deu conta do talento da Elis pouco antes de morrer. Eu não. Gosto dela desde sempre.

Um dia eu descobri o Milton e os mineiros do Clube da Esquina. Injetei na veia. Sentinela é um dos discos cujas faixas devem constar do meu dna de tanto que me emocionam e me inspiram. Um pouco antes conheci Vinícius, Toquinho e toda sua poesia. Chico veio depois, meio tímido, mas arrebatador. Por Caetano sempre rolou admiração e muita atenção ao que ele dizia. Gil foi com Realce. E teve Baby, teve Moraes, teve Alceu. Mas Elizeth Cardoso nunca.

Daí que hoje cedo, ao ler o jornal, dei de cara com uma matéria falando da Divina. Dos seus 90 anos. A matéria começava com uma declaração de Tom Jobim, explicando o por quê de Elizeth ter sido escolhida para gravar o LP Canção do Amor Demais, onde se ouve pela primeira vez o violão de João Gilberto. Li de um fôlego só e levantei do sofá com o firme propósito de comprar um cd ao menos daquela que era dona de uma suavidade mais suburbana do que de beira de praia, conforme a matéria dizia. Me arrumei para ir pro jornal e no caminho entrei na loja de discos mais antiga do Méier. Uma das únicas do Rio de Janeiro que, por ora, sobreviveram aos downloads. Entrei meio descrente de que iria encontrar o que eu queria. Afinal, disco de Elizeth Cardoso, no Méier? Só deve ter na Modern Sound, eu pensava. Que nada. Comprei logo dois.

No jornal, mostrei para um amigo as aquisições, mas fui cooptado por uma passeata, por um comício e por seus flashes intermináveis. O tempo voou na redação hoje por conta disso. Quando vi já eram mais de dez da noite, eu só tinha ido ao banheiro duas vezes, comido um sanduíche entre uma publicação e outra e ainda me restavam duas páginas para virar até meia-noite, antes de chegar em casa, relaxar e ouvir Elizeth. Até lá eu estaria no olho do furacão e nem sei como consegui tempo de me emocionar com um vídeo que postaram no Twitter. É uma gravação com o grande Paulo Moura, feita dias antes de sua morte, esta semana. Ele na varanda da Clínica Sao Vicente, nos últimos sopros de vida. Um olhar já distante. Uma postura elegante. E música até o fim.

Despedida from Eduardo Escorel on Vimeo.

Eu também quero música até o fim da minha vida. Juro.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

O cansaço, os mortos e a política


Minha semana teve doze dias. O plantão de sábado e domingo no jornal fez com que eu fosse apresentado a uma sensação de cansaço até então inimaginável. Quem acorda de manhã cedo, depois de uma boa noite de sono, talvez não tenha noção do trabalho que dá para produzir as notícias que batem à nossa porta. A redação do jornal nunca para. Por volta das onze da noite, quando a maioria dos trabalhadores brasileiros já está na cama, ainda pode-se estar discutindo qual será a manchete do dia seguinte. Isso se não mudar tudo com uma notícia urgente, daquelas de última hora.


Esta semana, por exemplo, andei torcendo para que o José Alencar, nosso vice-presidente, não morresse. Ou ao menos que não morresse no meu plantão ou na hora do meu fechamento. Por sorte o que ele teve foi uma crise de hipertensão. Coitado. Simpatizo com ele e admiro a luta que ele trava contra o câncer. Desde que ele surgiu no cenário da política nacional que é sabido de todos a sua doença. E nas inúmeras vezes em que ele sai de um hospital após alguma internação, nunca vi aquele homem com ar de derrota. Nunca. Sempre confiante. O último boletim da equipe médica esta noite dizia que seu estado era estável. Foi a nota que eu publiquei pouco antes de sair do jornal, na torcida para que ele melhorasse mais uma vez.

Quem morreu de verdade foi o Ezequiel Neves. Produtor musical, jornalista, ator e a todo vapor. Não o conheci. Não pessoalmente, mas para quem é da geração do Barão Vermelho e do Cazuza, como eu, nunca foi um nome que soasse estranho. Zeca, como era chamado pelos mais chegados, descobriu o som do Barão e apadrinhou muita gente na seara do rock brasileiro dos anos 80. A relação dele com Cazuza rendeu coisas boas, como 'Codinome beija-flor', que não parava de tocar nas rádios justamente numa época em que eu estava me separando da mãe do meu filho mais velho. Melhor trilha sonora, impossível. Zeca morreu aos 72 anos, sem deixar de lado suas doses mortais de vodca, exatos 20 anos depois de Cazuza.


- Deve estar acontecendo a maior festa de arromba no céu, gritaram na redação.


- Deus é mesmo um mestre na arte de criar roteiros, eu pensei baixinho.


Quem não morreu, mas já tem seu obituário pronto é Marcello Alencar, ex-prefeito e ex-governador do Rio de Janeiro. Qual não foi meu susto ao me deparar com um texto esquecido numa das gavetas da casa de um amigo, também jornalista, anunciando a sua morte? Não que eu seja fã dele ou algo parecido, mas é que quando eu li aquela notícia fiquei realmente na dúvida se ele havia morrido ou não. A matéria tinha sido escrita há mais de dois meses e eu não lembrava de ter ouvido falar ou lido qualquer coisa a respeito.
- Esta matéria eu fiz há uns dois meses. Se o cara morresse ela já estaria pronta, faltando só uns ajustes, ele me disse.
Lembro que trabalhei na Prefeitura na época em que ele era o prefeito. Tinha um ar bonachão, uma fala mansa e a fama de que gostava de um goró. Na verdade, whisky. Um dia ele passou mal e foi internado às pressas. Ia ter de fazer uma cirurgia e se não me engano, foi alguma coisa nos rins. Cálculo, talvez. Mas o boato que corria na rádio corredor era de que o prefeito havia engolido a tampinha de uma das tantas garrafas que entornara. Pura maldade.

Para terminar, a gente não pode é se fazer de morto. As eleições estão aí, a campanha já começou, os candidatos estão nas ruas e a gente sabe que o que mais tem é político vivo aos quatro cantos. Entenda este vivo como algo não muito positivo. Pelo menos não para nós, eleitores. Este ano teremos uma eleição diferente e que já começou diferente por vários aspectos. Como se não bastasse, é a primeira, em anos, sem a opção de voto no Lula. Temos duas mulheres concorrendo ao mais alto cargo da nossa política. Temos também a Lei da Ficha Limpa. E temos a internet e com ela todo o seu poder de mobilização. Pelo menos é isso que será posto à prova neste pleito. Qual candidato vai realmente saber usar o poder da rede mundial de computadores e transformá-lo em voto? Qual marqueteiro brasileiro vai se sobressair e virar o novo Papa das campanhas eleitorais? Quem vai ocupar a vaga deixada por Nizan Guanaes e Duda Mendonça? Ou vai me dizer que ninguém lembrou de escrever seus obituários por aí?

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Like a poem





I


Há um risco em toda palavra

Escrita

Em toda frase dita

Por toda parte

Há um risco.


II


Por vezes me falta o ar
E minha cabeça ainda gira.
É quando preciso ficar sozinho
Para dar passagem às palavras
Nem sempre certas
Que carrego em mim desde então.

Ainda hoje mesmo lembrei do meu quarto de menino.


Dos meus livros, desenhos e poemas.

Ah, como eu gostava de ser menino.


É que o mundo não me parecia tão pequeno.

Naquele mundo eu corria.
Cruzava suas esquinas, praças e avenidas.
Por ali eu desaparecia.
Num mundo que cabia naquele quarto.
No quarto daquele menino.