quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Karla com K

Estava tudo muito claro naquela manhã. Era outono e as manhãs de outono nem sempre são alegres ou inspiradoras. Os canários cantavam na varanda daquele apartamento no décimo-segundo andar como se soubessem ser aquele o último dia. No prédio em frente, a vizinha cismava em gritar com o neto a mesma ladainha de sempre. A impressão que dava era a de que o moleque pouco se importava. Importante mesmo era perder o primeiro tempo de aula. Lá embaixo os carros passavam lentamente, anunciando um engarrafamento monstruoso que se estendia por toda a rua, a principal via de entrada e saída daquele bairro decadente.


O quarto ainda cheirava a cigarro e a suor de uma madrugada movimentada. Ao lado da cama, dois copos derramados e um cinzeiro lotado de guimbas de Marlboro vermelho. Os armários abertos e as calças e camisetas jogadas de qualquer maneira denunciavam o desleixo. No criado-mudo, um velho despertador parecia cansado de anunciar que já estava mais do que na hora de levantar. Mas sobre o colchão um casal permanecia enrolado em lençóis baratos de algodão.


Não demorou muito e Leonel virou a cabeça em direção à luz que vinha da varanda. Pareceu não saber onde estava ou o que fizera nas últimas horas. Ao seu lado, ainda dormindo, uma negra com os cabelos pintados de vermelho e um cordão de um metal meio esverdeado onde se lia Karla. Assim mesmo, com K. Havia marcas de quelóide no pescoço da mulher e outras tantas que pareciam ter sido feitas com pontas de cigarro. Ela dormia profundamente e sua respiração era quase imperceptível. Estava gelada e completamente nua. Leonel levantou sem fazer barulho, mas uma forte ardência na região da virilha o impediu de dar mais que três passos naquele quarto minúsculo. Numa rápida inspeção viu que estava tudo no lugar, mas seu saco também havia sido queimado por pontas de cigarros.
Que porra era aquela? O que ele estava fazendo ali? Quem era a negra deitada nua na cama? Que quarto era aquele? E que dor filha da puta!


O telefone tocou estridente. Ele atendeu ofegante. Do outro lado uma voz aguda disse que tudo havia saído como combinado e que dentro de duas ou três horas ele estaria livre.


- Livre do quê? Quem está falando? Que combinado? E esta mulher que não acorda?


- Ela não vai acordar. E se você não fizer exatamente o que combinamos, amanhã estará estampando as páginas policias dos principais jornais, acusado de assassinato.


- Assassinato? Como assim? Alô... Alô...


Uma terrível dor de estômago, acompanhada de ânsia de vômitos impedia Leonel de raciocinar naquele instante. Ele pôs o telefone no gancho e correu nu até a varanda repleta de gaiolas com canários que sujavam de cascas de alpiste e merda o chão de cerâmica vermelha. Olhou ao redor, mas não conseguiu identificar sequer em que bairro estava. Lá embaixo aquele engarrafamento parecia não ter fim. Em frente, a velha já sem o neto em casa, estendia algumas roupas num varal improvisado e nem se deu conta da presença de um homem completamente pelado na varanda do prédio vizinho. “Caralho... o que está acontecendo? No que foi que eu me meti?”


Ao entrar novamente no quarto ele viu que havia alguma coisa escrita na porta. Não reconheceu a letra como sendo dele. Mas aquela frase _ “Vou te queimar até o meu amor morrer” _ era de uma canastrice sem tamanho e o sangue usado para escrevê-la ainda estava fresco. De novo a ânsia de vômito. Ele sempre odiou sangue e qualquer tipo de violência. O máximo que se permitia na hora do vamos ver eram uns tapinhas inocentes e, mesmo assim, quando as parceiras exigiam. Gostava mesmo era de uma boa trepada sem muitas estripulias. Na verdade ele nunca se considerou um cara criativo quando o assunto era sexo. Papai e mamãe pra ele já estava bom. O importante era aliviar a tensão.



A porra da porta estava trancada e ele não tinha a menor idéia de onde poderia estar a chave. Suas bolas ardiam muito e mesmo assim ele resolveu vestir a calça. Nunca ficara muito à vontade andando pelado. Havia sido criado por uma mãe austera. Vai ver era por isso. Aproveitou para cobrir o corpo da tal Karla, não sem antes observar melhor aquele pedaço de carne que jazia na cama. Era realmente um mulherão. Uma negra de se tirar o chapéu e de se render dúzias de homenagens. Assim, deitada de barriga para cima, parecia ter saído de uma tela de Di Cavalcanti, tamanhas as curvas de seu corpo. Os pentelhos estavam bem aparados e deixavam à mostra um beicinho vermelho-carmim. Os seios? Firmes e com os mamilos escuros, que mais pareciam umas grandes chupetas. Ele estava ficando excitado.



O que poderia ter acontecido durante aquela madrugada? Há quanto tempo ele estava naquele apartamento? Os canários não paravam de cantar na varanda e o barulho das buzinas dos carros engarrafados lá embaixo não estavam colaborando para que ele pudesse raciocinar. A sua carteira com documentos estava intacta: cartão de crédito, do plano de saúde, carteira de identidade, duas folhas do talão de cheques e alguns trocados. Nem um vestígio do uso de drogas ilícitas. Em compensação ele contou treze maços de Marlboro vazios e dois ainda fechados. Foi aí que se deu conta da sujeira daquele cárcere.



O piso era coberto por um carpete áspero e cheio de falhas. A cama era daquelas de viúva, parecia feita de madeira de jacarandá e com uns rococós entalhados na cabeceira. O colchão era de molas, daqueles que você afunda e acorda quebrado de dor nas costas. Sobre o criado-mudo, o velho despertador e alguma coisa que um dia ousaram chamar de abajur. O lençol e as fronhas estavam úmidos de suor e outras secreções. Próximo às pernas da morta, uma mancha de sangue. Ele virou a tal da Karla de bruços e não viu nenhum ferimento que pudesse ter sangrado. Apenas as centenas de queimaduras de cigarro que já criavam certa casca e, no máximo, soltavam um prurido. Ele também não tinha um corte sequer. Será que ela estava menstruada? E desde quando cadáveres menstruam? Não se fez de rogado e abriu-lhe as pernas para ver se isso era possível. “Porra, essa filha da puta está morta e mesmo assim menstrua!”.



Aquela rápida passada de dedo entre as pernas do cadáver da negra despertou nele um desejo incontrolável. Como num insight, algumas cenas dos dois naquele quarto foram surgindo em sua mente. A fumaça do cigarro, a luxúria, a dor e o orgasmo ainda entranhados numa faísca de memória. A imagem da negra pincelando os dedos na buceta e escrevendo a tal frase na porta. A entrega dela na hora do sexo. A loucura dele em querer queimá-la e em se deixar queimar. A morte e o tesão que ele sentia em matar alguém de prazer.



Quando se deu conta, estava tendo uma espécie de convulsão, debruçado sobre o cadáver e quase sufocando entre os seios de Karla. Na verdade ele tinha acabado de gozar num corpo sem vida e aquilo não parecia lhe incomodar. Levantou lentamente e tirou um lenço imundo do bolso. Limpou a si e a mulher. Enxugou o suor do rosto com o mesmo lenço, enfiou-o no bolso da calça outra vez, pegou a camisa vermelha que estava jogada na porta do armário e vestiu. Cuidadosamente pegou a lingerie da mulher e começou a vesti-la também. Depois o vestido, as sandálias e por último aqueles brincos enormes. Passou-lhe um pente nos cabelos mal tratados para que ela parecesse estar apenas dormindo. Sentou na beirada da cama, segurou as mãos da morta como se estivesse pedindo perdão, acendeu mais um cigarro e tragou profundamente. Permaneceu assim tempo bastante para fumar mais dois cigarros até que o telefone tocou outra vez. Agora ele já não estava mais ofegante. Parecia saber de tudo. Do outro lado da linha a mesma voz aguda:



- A porta está aberta. Você fez tudo certo.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

O que há de mais bonito


Existem pessoas que são especiais. Meu filho mais velho, por exemplo. Chegou cedo. Muito cedo. Eu e a mãe dele éramos ainda muito jovens. Ela, adolescente. Eu, não muito diferente. Dois irresponsáveis, muitos sonhos e um ser lindo em nossos braços.

Lembro perfeitamente do dia em que ele nasceu. Um sábado. Sexta-feira era o prazo limite dado pela médica para que esperássemos pelo parto normal. Dentro daquela barriga enorme ele quase já não tinha espaço para se mexer. Se aguardássemos mais, talvez pudéssemos fazer com que ele entrasse em sofrimento. Pelo menos esta era a versão da médica. Diante da pressão, a cesariana foi marcada para o dia seguinte. Não dava mais para esperar.

Dia 21 de abril de 1990. 10h da manhã. O dia amanheceu iluminado naquele sábado. Na minha memória, o cenário é de céu azul com direito a todas as demais cores de um outono que jamais se perderá de mim. Demos entrada no hospital Lar Fabiano de Cristo, no Engenho Novo. No quarto, os preparativos e procedimentos necessários para uma cirurgia comum. Jejum. Assepsia total. Enfermeiras entrando e saindo todo o tempo. Ansiedade. Tensão. E todos os demais sentimentos que antecedem o nascimento de uma criança.

16h. A obstetra nos avisa que está tudo certo, que a cesariana está devidamente marcada e que ela iria em casa tomar um banho e voltar renovada para trazer nosso filho ao mundo. A mãe, deitada de lado, sustentando o peso da barriga na cama daquele hospital e o pai, desconfortavelmente instalado num daqueles sofás-camas que acabam com a coluna de qualquer acompanhante.

16h30. A mãe levanta. Precisa fazer xixi. Com aquele andar de pato que é característico das mulheres prestes a parir, lá foi ela. O pai, mezzo sentado, mezzo esparramado no tal sofá-cama, pergunta se está tudo bem . Um breve aceno de cabeça e a resposta é positiva. Um. Dois. Três. Quatro. Cinco... de repente um grito irrompe do banheiro.

- A bolsa estourou!

Numa velocidade digna de ter sido estudada pelo mais conceituado detentor de um prêmio Nobel de Física, corro com ela para debaixo do chuveiro, chamo a enfermeira, ligo para a médica, procuro manter a calma, está tudo bem, todos vão chegar a tempo. Começam as contrações. Respira. Conta até dez. Relaxa. Alivia. O intervalo entre uma contração e outra vai diminuindo.

- Dói!, ela reclama.

19h30. Quase três horas depois. O quarto está lotado de gente. Médica, pediatra, anestesista, assistente, pai, mãe, sogro, sogra, irmão, cunhada, cunhado, tias. Respira. Conta até dez. Relaxa. Alivia? Impossível com mais de oito de dilatação. Quase uma festa e aquele menino já coroando e outra cena que nunca mais vou esquecer: momentos antes da mãe ser levada para o centro cirúrgico já dava para ver perfeitamente a cabeça cabeluda do bebê apontando para fora. Ele estava mesmo chegando.

Eu não quis, não fui incentivado e hoje acho que não estava realmente preparado para assistir ao parto do meu filho mais velho. Lembro bem que fiquei no hall próximo ao centro cirúrgico escutando os gritos que vinham lá de dentro. Verdade que foram poucos os gritos. Para quem conhece a mãe, pode parecer que eu estou mentindo, mas não houve escândalo. Juro. O escândalo quem fez fui eu, ao ouvir o primeiro choro do meu filho que acabava de nascer, às 20h43.

-Quero ver meu filho!, gritei, num tom de voz visceral e desesperador que só quem me conhece de verdade sabe que eu sou capaz de gritar.

Como num passe de mágica surge a médica assistente com meu filho nos braços e ainda envolvido naquele misto de gordura e sangue. O olho esquerdo, se não me engano, fechado. O direito tentando exergar que lugar era aquele. Todo enrugado. Frágil e forte ao mesmo tempo. Lágrimas. Todas de felicidade. Deu tudo certo. Abraços. A mãe está ótima. Ele é perfeito.

- Tem todos os dedos, eu pensava comigo mesmo, enquanto agradecia a Deus aquele momento único.

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Meu primeiro casamento acabou exatamente um ano e uma semana depois daquela noite. Mas o amor incondicional de pai e filho e toda uma história de amizade e respeito foi traçada desde então. Nunca deixei de me fazer presente e vivi todas as dores e as delícias de ser pai solteiro. Tivemos nossos problemas, claro. Não é nada fácil criar um filho. Mas foram poucas as vezes em que precisei ser rígido ou usar de palavras ásperas. Sempre tive a impressão de que meu filho número um me conhecia no olhar e vice-versa. Pode ser simples ilusão de pai. Pode ser. Mas guardo em meu peito as melhores impressões da paternidade. Por sorte tive o prazer de ter mais dois filhos e confirmar que tudo aquilo é realmente verdade.

Hoje, passados mais de vinte anos daquele dia 21 de abril de 1990, estou vendo uma história se repetir. E é engraçado e surpreendente como elas realmente se repetem. No mesmo mês, com a mesma idade que eu tinha, desta vez recebo o roteiro e fico sabendo que o personagem de pai não caberá a mim, mas a meu filho. Fiquei com o papel de avô. Confesso que custei a assimilar a ideia de ter um neto aos 42 anos, mesmo com os cabelos do peito teimando em nascer brancos e a barba cada vez mais grisalha. Coincidentemente - ou não - leio num site que a vida é um eterno ir e vir das mesmas histórias. Só que com diferentes protagonistas: o pai, o filho, o neto e o que há de mais bonito.


* Este post é especialmente para meu filho número um. Aquele que desde muito cedo - mesmo antes de nascer - teve o dom de despertar em mim o que há de mais bonito.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Histórias do apocalipse


Nada neste mundo me deixa mais estressado do que rotina. Detesto ter de fazer sempre as mesmas coisas, ir sempre aos mesmos lugares, ver sempre as mesmas pessoas. Sempre fui assim. Desde pequeno. Na infância, lembro que meu pai sempre perguntava a mim e ao meu irmão onde nós queríamos ir passear. Uma vez eu escolhia e da outra vez, meu irmão. Civilizadamente.


Ou seria rotineiramente?


Cinemas, feira de selos (que colecionávamos), o clube numa Barra da Tijuca ainda antes da invasão dos emergentes e o saudoso Tívoli Parque, na Lagoa, eram algumas das minhas opções. Já meu irmão, não pensava duas vezes antes de responder:

- Zoológico!

Devo ter ido umas 287 vezes ao zoológico do Rio antes mesmo de completar dez anos de idade. Se você fizer as contas, dá uma média de 28,7 visitas por ano aos leões, macacos, girafas, zebras, pavões. Se eu tivesse guardado todos os tíquetes de entrada, poderia estar no Guiness, o livro dos recordes, com toda a certeza.


Para se ter uma ideia, de tanto ler as mesmas plaquinhas em frente às jaulas, eu sabia - e acho que ainda sei - de cor e salteado quais eram as preferências alimentares de cada animal, quanto cada um pesava, quais eram os seus países de origem.

Só nunca consegui saber uma coisa:

- Como meu irmão não enjoava de fazer sempre o mesmo passeio?

Esta minha aversão à rotina talvez possa explicar a minha trajetória profissional. Já corri o mundo quando se trata de trabalho na área de comunicação social. De produtora à agência de publicidade, passando por assessorias de imprensa e roteiros para institucionais e curtas-metragens, já fiz de tudo e um pouco mais.


Vai ver a escolha por jornalismo já trazia, inconscientemente, a certeza de ter uma profissão onde eu não fosse obrigado a fazer sempre as mesmas coisas e que me abrisse um leque de opções. Aliado ao prazer de escrever, eu teria um mundo de gente interessante para conhecer e uma infinidade de histórias para contar. E o que é melhor: usando das mais variadas linguagens.

Hoje, prestes a completar 42 anos e ganhar um neto, me vejo dentro da redação de um dos maiores jornais do país com a mesma garra dos jovens com seus vinte e poucos e em início de carreira. São jovens tão cheios de certezas e planos e eu ali, entre eles, com um único plano - o de aprender mais - e tão poucas certezas. Apenas com a leve desconfiança de que vida não carrega em si nenhuma verdade absoluta.

A vida, isso sim, é cheia de surpresas. Boas e ruins.

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Quarta-feira, 12 de janeiro. Saio da cama, leio o jornal e vou passear com o cachorro, o que já virou rotina, diga-se de passagem. O clima está abafado. Céu nublado e muitas nuvens carregadas. Choveu durante a madrugada. Começam a chegar as notícias de que um temporal havia feito estragos em Teresópolis e Nova Friburgo, cidades da região serrana do Rio de Janeiro. O que não se poderia imaginar é que os estragos, na verdade, se tratavam de uma enorme tragédia, com um número assustador de mortes e cenas que vão demorar um bom tempo para saírem de nossa memória.

Chego no jornal meia hora mais cedo, ávido por saber exatamente o que estava acontecendo. Se imaginávamos que teríamos uma semana tranquila, onde apenas uma reunião ministerial ou a chegada de Ronaldinho Gaúcho ao tal clube da Gávea pudessem valer de manchete, a tromba dágua que destruiu boa parte daquelas cidades e arrastou centenas ou talvez milhares de pessoas, ganhou, de longe, a disputa pelas primeiras páginas e a atenção de todos. E com ela, mais um mutirão de repórteres naquela redação dispostos a levar ao leitor a melhor informação, a melhor cobertura, as melhores histórias. O número de mortos não parava de aumentar e todos, de todas as editorias, solidários com a dor e a tragédia daqueles que presenciaram cenas de um verdadeiro apocalipse.

- Definitivamente, não há rotina dentro de uma redação - eu concluía, triste, com tudo aquilo que estava vendo e ouvindo.

Entre imagens impressionantes de barrancos desabando sobre bairros inteiros e resgates dignos de filmes-catástrofes, analistas e autoridades começavam a dominar os noticiários com suas afirmações, certezas e declarações pontuadas pelo que há de mais hipócrita e , por que não?, demagogo que possa existir.

- Afinal, sempre temos enchentes, senhor governador.

- Não há novidade alguma nisso, senhor prefeito.

- São histórias que se repetem ano após ano, presidente.

Histórias que mesmo aqueles que não gostam de rotina, feito eu, não sentem o menor prazer em contar.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

O cavalheirismo acabou


Meu filho número dois dia desses virou para mim e disse com todas as letras que o cavalheirismo havia acabado. Eu fiquei surpreso com aquela frase dita por um menino de apenas nove anos. Tudo porque minutos antes, ao entrar no carro, ele, mais o meu filho número três, de sete anos, e mais a Vitória, a amiga que também tem nove, quase saíram no tapa porque todos queriam viajar ao lado da janela.

- Deixem a Vitória ir na janela hoje. Sejam cavalheiros - eu disse, tentando resolver a crise dos pequenos.

- Papai, o cavalheirismo acabou.

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Não faz muito tempo e minha mulher reclamou que eu nunca abro a porta do carro para ela entrar e nem a espero sair do elevador. Não sei se pelo fato de sempre termos sido amigos muito antes de namorarmos e entre nós nunca ter havido muita cerimônia, o certo é que não sou mesmo aquilo que se pode chamar de cavalheiro.

Sou meio desligado, só isso.

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Eu demorei alguns segundos para processar a informação que eu acabara de receber do meu filho. Quando eu poderia imaginar que um menino de apenas nove anos de idade pudesse ser tão claro, direto e objetivo ao decretar o fim de uma regra tão básica de educação e bons modos?

Ele ainda completou seu raciocínio dizendo que as mulheres hoje em dia são que nem os homens. Que elas trabalham, ganham dinheiro e não sabem fazer comida.

- Que nem a mamãe, ele disse.

Vitória, a única representante do sexo feminino naquele carro, concordava com tudo e ainda tinha lá seus argumentos, o que me fez ter a certeza de que aquela geração era mesmo diferente. O que cada uma daquelas crianças dizia tinha fundamento. Não eram frases soltas, como se repetissem o que ouviram há pouco. Não. As ideias se complementavam independentemente do sexo e era como se não houvesse mesmo diferença alguma entre meninos e meninas. Eu não tive outra opção a não ser em concordar com o fim do cavalheirismo.

Não sem antes fazer com que eles prometessem que nunca vão deixar a gentileza acabar.


- A gentileza é o cavalheirismo que não depende de gênero feminino ou masculino, eu pensei naquele exato instante.

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Se as mulheres há muito que vêm ocupando um espaço que até então era dos homens, os homens, por sua vez, já começaram a invadir o terreno das mulheres. Tenho cá minhas desconfianças de que seja mais por institinto de sobrevivência - da espécie, do casal e do relacionamento - do que propriamente por vontade própria que boa parte dos homens vai para a cozinha lavar a louça do jantar, por exemplo. Hoje, o tão discutido sexo frágil só dá sinais de fragilidade quando lhe convém ou quando precisa encarar um vidro de palmitos ou de azeitonas.

- Não tenho força, elas dizem.

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Minha mãe sempre teve uma postura que me parecia submissa. Era dona de casa, sabia cozinhar, fazia bolos que deixavam a vizinhança com água na boca e acreditava em tudo o que meu pai dizia. Hoje ela não faz mais bolos, quase não cozinha e a casa, boa parte da semana fica a cargo do meu pai, em quem ela ainda acredita em tudo o que fala.

Tenho minhas desconfianças de que o jeito manso da minha mãe talvez fosse só um disfarce.

Na verdade, acho que minha mãe é forte pra caramba.

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Meu pai tem cara de poucos amigos, daqueles que gostam de alimentar fama de durão. É macho alfa, autoritário e muitas vezes tentou fazer da nossa casa uma extensão dos quartéis que comandava com seus banhos frios, horários e regras.

- Não pense que está falando com seus soldados, respondia, de igual para igual, a minha mãe.

Volta e meia me pego pensando que este lado coronel do meu pai é só um disfarce para sua enorme fragilidade. O coronel, no fundo, no fundo, é frágil.

Já o vi - e o fiz - chorar algumas vezes.

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"Homem não chora!" era o que dizia a minha avó quando eu porventura me machucava.

Homem não chorava, isso sim. Assim como não lavava louça, não passava roupa, não arrumava a casa, não botava as crianças para dormir, não cuidava do almoço... ah, vó, o mundo está mesmo muito mudado!

Hoje as mulheres disputam o mercado de trabalho de igual para igual com os homens. São nossas chefes, governam nosso país, fumam, votam, usam calças, saem para beber sozinhas, compram camisinhas, pagam a conta, dão em cima, dizem não, discordam, concordam, amam, odeiam.

Hoje é todo mundo igual, vó. A geração dos seus bisnetos sabe muito bem disso e, entre outras coisas, já deu por encerrado o cavalheirismo.

- Só não deixem a gentileza acabar, eu imploro.