sábado, 23 de julho de 2011

Está tudo assim tão diferente

Deixa tudo como está:
a cama desfeita,
as roupas no chão,
o cheiro de cigarro impregnado no ar.

Vem.

Lembra da tarde perfeita,
da luz em seus seios,
das mãos em meus pelos,
das juras de amor que deixei escapar.

Já faz algum tempo, lembra?

Eu te falava segredos, eu te fazia carinho.
Eu te falava baixinho que eu morria de amores.
Personagem de um sonho que eu nunca esqueci.

Você olhava em meus olhos,
você morava em meus olhos,
você se via em meus olhos,
eu só tinha olhos para você.

Fiquei cego de amor.

Completamente vendado,
totalmente vendido,
me despi menino, me fiz amante, me vesti poeta.
Reescrevi meus versos sobre a linha do destino já traçado nas palmas de nossas mãos.

Rascunhei outras histórias,
reinventei outros roteiros.
Rabisquei,
pintei e bordei.

Agora vem.

Deixa tudo como está:
o mesmo cheiro de cigarro impregnado no ar,
as mesmas roupas no chão,
a mesma cama desfeita.

Mas vem diferente.

Porque eu não sou mais o mesmo.

sexta-feira, 8 de julho de 2011

Estranho

Bateu a angústia. Foi quando ele resolveu sair de casa. Era noite já. Céu estrelado e um frio intenso de fazer tremer a alma do mais caloroso cristão. Desceu a rua encolhido na jaqueta azul surrada, a única que ele tinha. No pescoço, uma corrente fina e uma medalha de São Jorge. Ganhou de presente da avó, pouco antes dela morrer, há dois anos. Foi de repente. Ela estava em casa, sozinha, sentiu-se mal, uma dor no peito, deitou e nunca mais levantou. Pensaram que ela estivesse dormindo de tão sereno o semblante da morte. Parecia mesmo estar sorrrindo. Estranho, ele lembrou.

Na esquina, dois mendigos dividiam civilizadamente um cobertor e uma garrafa de cachaça enquanto liam versos do Neruda. Ao lado deles, um cachorro de pelúcia cor de rosa preso numa coleira improvisada com barbante parecia latir de verdade. Mas ele passou e sequer percebeu. Não notou também que as portas da padaria ainda estavam abertas e que lá dentro, nas prateleiras, no lugar de pães, havia restos de comida. Um carro de som em alta velocidade cruzou a avenida tocando as bachianas brasileiras de Villa Lobos. Logo atrás, um ônibus com os faróis apagados. Ele fez sinal, entrou, tirou uns trocados do bolso, passou a roleta e sentou ao lado de uma velha com um terço de prata enrolado nas mãos. Mais uma vez ele lembrou da avó. Estranho, ele pensou.


O trocador tinha cabelo nas orelhas e um dos dedos da mão esquerda tinha a unha comprida, bem feita, firme feito um casco de cavalo. Ele coçava as narinas com ela, ao mesmo tempo em que tentava equilibrar um rádio de pilha que transmitia uma partida de futebol entre Brasil e França pelas quartas de final da Copa de 86, aquela em que Zico perdeu um pênalti. A menina no banco da frente, linda, de cabelos negros, lisos, e vestido de cetim vermelho, não tirava os olhos dele. Ela escondia um sorriso de canto de boca e revelava as coxas tenras, de pele macia, os pés descalços. Um cheiro doce exalava daquela menina e por um instante ele imaginou se não seria o cheiro da sua buceta. Quis provar, derramar-se em seu seio rijo, roçar seu pau duro naqueles mamilos, passar a língua sobre a nuca, esfregar a barba em suas costas, pegá-la por trás e ali mesmo, naquele ônibus, açoitá-la num coito frenético, ritmado, intenso, feroz até. Só então gozar, disse a velha, olhando pela janela e com o terço de prata ainda enrolado nas mãos. Muito estranho tudo isso, disse alguém lá nos fundos.

A voz soou familiar. Era seu pai, a barba por fazer, o hálito forte. Com o mesmo pijama listrado, as meias de lã e os tamancos de madeira, desses que portugueses costumavam usar. O pai dele sempre estave em todos os lugares, observando cada passo, cada lira com defeito, feito o olho que tudo vê. E julgava. E percebia. Como se soubesse o que devia ou não devia falar. O pai dele nunca se calava. Talvez por isso mesmo parecesse tão rouco, como se a voz fizesse um enorme esforço para sair. Mas ele sempre ouvia seu pai, mesmo que não entendesse ou não fizesse muita questão de escutar. É estranho explicar, eu sei.


A angústia não passava. Uma freada brusca. O rádio de pilha do trocador cai no chão. Anda mais devagar, ô filho da puta, berrou a menina linda do vestido de cetim vermelho. O motorista, um adolescente franzino, com goma nos cabelos e aparentando menos de dezesseis anos de idade, mandou que ela tomasse no cu e acelerou. A velha, o tempo todo com o terço enrolado nas mãos, riu e abriu a janela do ônibus e pôs a cabeça para fora e a boca aberta e o vento gelado a estapear-lhe as bochechas. O pai, falando baixinho, esticou-se no banco traseiro do ônibus e acendeu um cigarro sem filtro. Foi então que ele fez sinal para sair do ônibus. Outra freada. A porta do ônibus abre para ele saltar. A velha quer que ele fique, a menina quer que ele vá. Pela primeira vez o pai não quis se pronunciar. O motorista não olhou e o trocador fingiu que não viu. Ele então tomou a decisão de voltar.


Mas ele ia voltar estranho.