terça-feira, 24 de julho de 2012

Rascunho

Solte o texto. Desamarre as palavras bonitas que você aprendeu desde a infância, quando sua mãe inventava histórias preciosas à beira da sua cama até que o sono chegasse e te levasse embora. Não se esqueça: escrever é como narrar um sonho, é ater-se a detalhes, criar novas realidades, romper barreiras e dar sentido aos vocábulos que muitas vezes correm soltos desnecessariamente. É quase como saber costurar, seguir o fio da meada, o corte certo, o risco iminente da emoção e da razão.

Não pense que é fácil, mas também não tenha medo. É só ter cuidado e saber tecer a trama, dar vida a personagens completamente diferentes daqueles que você se vê obrigado a representar, com discursos improváveis vindos da sua boca, mas tão presentes no seu imaginário desde todo o sempre. Como se estivessem guardados, só esperando a hora de serem postos à prova. O ridículo é apenas um adjetivo sem muita precisão.

Exponha-se. Não tenha vergonha de expressar o que sente e muito menos deixe que alguém o censure. Isso é um crime. Aceite as críticas, mas não leve a ferro e fogo tudo o que você porventura ouve por aí. Separe o joio do trigo e acredite na coerência do que acabou de ser escrito, na frase exata e derradeira que surge e preenche a angústia da página em branco. Confie, segure no leme da narrativa e deixe que sua tripulação faça o que eles devem fazer. Dê as ordens que eles vão obedecer.

Seja firme. Mate se for preciso, mude o percurso, inverta os valores, provoque. A arte é proporcionalmente inversa - e avessa - à zona de conforto. Fuja do comum, esqueça as rimas perfeitas, quebre regras, risque e rabisque. Subverta. Surpreenda. A vida só é interessante porque a gente sabe que depois deste dia vem sempre um outro dia e que a história nunca termina e não tem o tal do ponto final. Eterno rascunho.

sábado, 21 de julho de 2012

A fila anda

Na minha casa, bem em cima da minha mesa do escritório, tem uma foto de quando eu sequer tinha completado cinco anos ainda. É daquelas fotos antigas, as tais sete carinhas, tão comuns no início da década de 1970. Numa das carinhas eu apareço sorrindo, noutra estou com o dedo na boca, tem ainda a que estou coçando a cabeça, falando ao telefone, de óculos e com pose de intelectual, franja cobrindo a testa e a última, com o olhar distante. Atualmente, quando eu olho para esta foto, vejo poucos traços meus em cada uma daquelas poses e penso em quantos eu já fui até o dia de hoje e me vejo ainda na expectativa de saber quantos ainda serei.

Lembro que já fui chato, chorão, tinha medo de ficar sozinho, de tomar vacina, de ficar doente. Gostava de gente ao redor, de andar de meias, de fazer meus desenhos e de ouvir meu pai chegar em casa, tarde da noite, eu já na cama, a respirar baixinho. Gostava de ir para a escola, de fazer redações, de tirar notas boas, elogios das professoras, orgulho da minha mãe, de cachorro-quente na piscina do clube onde eu fazia natação, de usar as roupas novas do meu irmão, de trocar uns livros com a Denise, minha amiga de ontem, hoje e sempre.

Tão logo virei adolescente eu já namorava. Bernadete, dois anos mais velha, um queixo proeminente, perninhas roliças, bunda arrebitada, disputada entre os mais velhos, me ensinou a fumar, a beijar de língua, a tirar um sarro. Namoro avançado, diziam as mães dos meus amigos. Hoje em dia eu concordo. Era mesmo avançado. Fazia coisas que meus amigos sequer poderiam imaginar que existissem na época e quando eu contava para eles, via seus olhos cheios de desejo. Tempo de descobertas, de irresponsabilidades, de deixar os estudos em segundo plano, de ficar em segunda época, repetir de ano e desperdiçar o tempo que eu jurava ser todo meu.

Outras paixões surgiram. Pelos cresceram no meu peito, no meu rosto já tinha uma certa sombra que mais tarde se transformaria em barba. Fiquei vaidoso, gostava de andar cheiroso, arrumadinho, camisa de botão aberta que me fazia sentir viril, másculo, bonito. Gostava de ler e de tirar onda porque sabia escrever. Na verdade, ter sido bem alfabetizado foi a minha sorte, eu sempre repito isso. Era como eu conseguia me destacar na escola.

Escrevia poesias durante as madrugadas em que já passava acordado, acompanhado por meus versos e as palavras que chegavam aos meus ouvidos incessantemente, até que eu as expulsasse de mim em estrofes riscadas num caderno de capa dura que guardo até hoje. Aquele caderno foi meu melhor amigo durante muitos anos. Só eu sabia dele e ele sabia de mim, apesar de tantos outros amigos.

Minha casa vivia cheia. Era lá que todos costumavam se reunir antes de saber o que íamos fazer. Minha mãe nunca se incomodou com aquele entra e sai de gente, fosse a hora que fosse. Quando juntava os meus amigos com os amigos do meu irmão e todos os outros nossos amigos em comum, era festa na certa. O primeiro porre, as gargalhadas que varavam a madrugada, os vizinhos pedindo silêncio, os filmes no primeiro aparelho de vídeo-cassete, a namorada com que me casei tão cedo e mãe do meu primeiro filho.

O casamento, a faculdade, o primeiro baseado, a separação, outras descobertas, a vida profissional e uma vontade incontrolável de permanecer jovem e congelar o tempo, as horas, os minutos que eu no fundo sabia serem efêmeros, mas ainda não tinha me dado conta de que as coisas passavam mesmo tão rápido.

Eu quis fazer de tudo. Cinema, televisão, publicidade, roteiro, fui ser repórter numa produtora em Botafogo, produtor, redator, fiz campanha política, trabalhei em assessoria de imprensa, conheci gente louca, gente boa, gente à toa, que não presta, que se engana, que se esconde e acha que ninguém percebe. Virei noites, percorri caminhos estranhos, enganei, fui enganado, fui ingênuo, safado, me achavam engraçado.

Amei descontroladamente até me casar de novo, sonho lindo, mais dois filhos, mamadeiras, esquece o cinema, não sai pra jantar, fica em casa, novela, roupa suja para lavar. Rotina é uma merda, eu vou te contar. É água, é luz, é telefone e outras tantas contas para pagar. Não sobra tempo, não sobra dinheiro, aperta daqui, aperta de lá. Vontade de viajar.

E o coração desacelera, parece até que vai parar. Sem querer ele desperta, arrebenta no peito, faz que vai sufocar. Sinto saudades, sinto falta de ar quando penso, quando lembro, quando vejo o tanto que já fui que nem consigo falar. Se eu voltar as páginas da minha história talvez não me reconheça em determinados momentos. Feito na foto das sete carinhas, que eu sei que sou eu que estou ali enquadrado, mas aquele eu, dividido por sete, não é nem a décima parte dos personagens que me completam. Aqueles rostos, aquelas sete expressões, já me diziam que eu sou múltiplo, muito embora eu só fosse me dar conta disso décadas mais tarde. E agora, quem é esse que se apresenta para mim neste instante? A fila anda.

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Quando sentei para escrever este texto, pensava em contar um pouco sobre o reencontro com amizades de infância, aquelas que a gente jamais esquece, inspirado num almoço sábado passado na casa de minha amiga Ester, irmã do Wiltinho, cúmplice de longa data e muitas histórias engraçadas. Lá estavam ainda a Diana e a Andréa e relembramos histórias de quando não tínhamos nem dez anos de idade. Foi graças ao tal do facebbok que nos reaproximamos. Ficamos anos sem nos ver, mas o curioso é que mesmo tendo passado tanto tempo, alguma coisa muito forte ainda nos une. Mesmo que não sejamos mais os mesmos. Porque o tempo passa numa velocidade estonteante e transforma todos nós.  

quinta-feira, 19 de julho de 2012

letras miúdas

parte
metade
todo

lodo
limo
chão

espada
lança
corte

sorte
trevo


fanatismo
cegueira
crença

vida
morte
é

tesão
sexo
amor

fazer
gozar
fluir

deixar
tocar
sentir

potência
força
dom

viagem
ácido
som

onde
quando
vai

calcinha
sandália
batom

menina
moça
mulher

barba
cabelo
bigode

frágil
homem
forte

trabalho
diário
labuta

doida
santa
puta

pau
buceta
cu

loucos
livres
sãos

laços
elos
nós

poetas
palavras
versos

plurais
sinônimos
complexos

eu
ele
você

vários
todos
um

quarta-feira, 18 de julho de 2012

No way out

Pior é se enganar
Se deixar levar,
ludibriar,
apaixonar.

Envolver,
seduzir,
usar, abusar
e depois sumir.

Desaparecer sem deixar sinal,
sem dizer adeus,
sem querer saber,
sem se interessar.

Ruim é se machucar,
saber que vai se ferir,
que vai se foder,
Porque sempre é assim.

Eu não sei de você,
você deveria saber de mim,
oh baby,
aqui na solidão da minha ruína.

O sol queimou a minha retina
pouco a pouco,
dia a dia,
você já deveria saber, oh baby.

Na impaciência de um sinal fechado,
no colorido desbotado da rotina,
Acendem os faróis,
rua sem saída.

No way out.
Mãos nervosas nas buzinas,
olhos dispersos nas esquinas.
Cadê você?
Eu me perdi de mim.

quinta-feira, 12 de julho de 2012

Pedra de limo verde

Certas noites eu chego em casa assim, meio que massacrado, como se eu tivesse passado o dia inteiro num martírio, me sentindo um nada, um ser passivo, subserviente, daqueles que assiste contemplativamente o mundo lá fora avançar em suas guerras podres de poder e corrupção. Nestas horas eu não queria ter nascido gente, essa espécie esquisita, que rouba, mata, ri, chora, brinca e grita. Preferia ter nascido pedra de limo verde na beira de um rio claro, lá pelas bandas da Serra da Mantiqueira, onde logo cedo faz um frio danado, mas o céu é azulzinho e a água ainda corre boa. Tem vaca no pasto, roupa coarando no varal entortado, cheiro de pão fresquinho, café no fogão a lenha e tempo de sobra. Tem cigarro de palha, conversa fiada, filharada na rede, pinga da boa, mulher rindo à toa, roda de viola e muita cantoria. É uma alegria. O pintassilgo assovia, o sabiá vem de lá, tem biquinho de lacre, melro, canário da terra, pardal, rolinha. Tem até beija-flor, que é o mesmo que colibri, que eu já vi.

Mas acontece que eu nasci gente, nesta terra estranha, de família pobre, com poucos recursos, cheia de manias e não me toques, um não fala com o outro, isso você não pode saber, aquilo outro é proibido, não faça, não venha, não olhe, pare, saia. Ganância, poder, corrupção, tudo a gente vendo lá fora, outros tantos vendendo a alma, a mãe, a vergonha e a moral. Qual é a moral, eu me pergunto? Onde me enquadro nisso tudo se há comida em minha mesa e na calçada agora mesmo eu vi um menino deitado sobre folhas soltas de jornal onde a manchete era o rombo de mais um parlamentar nos nossos bolsos? Eu tenho náuseas. Eu vomito. Fico doente. Incham-me as glândulas e sufoca-me não ter mais com quem conversar por horas e me perco entre os abraços que ficaram no vácuo da lembrança que jaz morta entre a ferida cicatrizada na epiderme úmida e suja feito tatuagem mal feita, borrada, mancha negra bem do lado esquerdo do meu peito.

É lá que dói e pulsa e carrega o sangue quente por todo o meu corpo pesado, inútil, fútil, do mesmo jeito de quando eu chego em casa assim, massacrado, consumido de um dia inteiro na rua em que o tempo não para, que nem a água clara que corre perene no rio onde fica encravada a pedra do limo verde. A água passa, esbarra, encobre, mas não carrega a pedra. A pedra é firme. Quem me dera ser.

Com início, meio e fim

Se não está acabado é porque sequer comecei. O que deixo de lado é só desprezo.