Na minha casa, bem em cima da minha mesa do escritório, tem uma foto de quando eu sequer tinha completado cinco anos ainda. É daquelas fotos antigas, as tais sete carinhas, tão comuns no início da década de 1970. Numa das carinhas eu apareço sorrindo, noutra estou com o dedo na boca, tem ainda a que estou coçando a cabeça, falando ao telefone, de óculos e com pose de intelectual, franja cobrindo a testa e a última, com o olhar distante. Atualmente, quando eu olho para esta foto, vejo poucos traços meus em cada uma daquelas poses e penso em quantos eu já fui até o dia de hoje e me vejo ainda na expectativa de saber quantos ainda serei.
Lembro que já fui chato, chorão, tinha medo de ficar sozinho, de tomar vacina, de ficar doente. Gostava de gente ao redor, de andar de meias, de fazer meus desenhos e de ouvir meu pai chegar em casa, tarde da noite, eu já na cama, a respirar baixinho. Gostava de ir para a escola, de fazer redações, de tirar notas boas, elogios das professoras, orgulho da minha mãe, de cachorro-quente na piscina do clube onde eu fazia natação, de usar as roupas novas do meu irmão, de trocar uns livros com a Denise, minha amiga de ontem, hoje e sempre.
Tão logo virei adolescente eu já namorava. Bernadete, dois anos mais velha, um queixo proeminente, perninhas roliças, bunda arrebitada, disputada entre os mais velhos, me ensinou a fumar, a beijar de língua, a tirar um sarro. Namoro avançado, diziam as mães dos meus amigos. Hoje em dia eu concordo. Era mesmo avançado. Fazia coisas que meus amigos sequer poderiam imaginar que existissem na época e quando eu contava para eles, via seus olhos cheios de desejo. Tempo de descobertas, de irresponsabilidades, de deixar os estudos em segundo plano, de ficar em segunda época, repetir de ano e desperdiçar o tempo que eu jurava ser todo meu.
Outras paixões surgiram. Pelos cresceram no meu peito, no meu rosto já tinha uma certa sombra que mais tarde se transformaria em barba. Fiquei vaidoso, gostava de andar cheiroso, arrumadinho, camisa de botão aberta que me fazia sentir viril, másculo, bonito. Gostava de ler e de tirar onda porque sabia escrever. Na verdade, ter sido bem alfabetizado foi a minha sorte, eu sempre repito isso. Era como eu conseguia me destacar na escola.
Escrevia poesias durante as madrugadas em que já passava acordado, acompanhado por meus versos e as palavras que chegavam aos meus ouvidos incessantemente, até que eu as expulsasse de mim em estrofes riscadas num caderno de capa dura que guardo até hoje. Aquele caderno foi meu melhor amigo durante muitos anos. Só eu sabia dele e ele sabia de mim, apesar de tantos outros amigos.
Minha casa vivia cheia. Era lá que todos costumavam se reunir antes de saber o que íamos fazer. Minha mãe nunca se incomodou com aquele entra e sai de gente, fosse a hora que fosse. Quando juntava os meus amigos com os amigos do meu irmão e todos os outros nossos amigos em comum, era festa na certa. O primeiro porre, as gargalhadas que varavam a madrugada, os vizinhos pedindo silêncio, os filmes no primeiro aparelho de vídeo-cassete, a namorada com que me casei tão cedo e mãe do meu primeiro filho.
O casamento, a faculdade, o primeiro baseado, a separação, outras descobertas, a vida profissional e uma vontade incontrolável de permanecer jovem e congelar o tempo, as horas, os minutos que eu no fundo sabia serem efêmeros, mas ainda não tinha me dado conta de que as coisas passavam mesmo tão rápido.
Eu quis fazer de tudo. Cinema, televisão, publicidade, roteiro, fui ser repórter numa produtora em Botafogo, produtor, redator, fiz campanha política, trabalhei em assessoria de imprensa, conheci gente louca, gente boa, gente à toa, que não presta, que se engana, que se esconde e acha que ninguém percebe. Virei noites, percorri caminhos estranhos, enganei, fui enganado, fui ingênuo, safado, me achavam engraçado.
Amei descontroladamente até me casar de novo, sonho lindo, mais dois filhos, mamadeiras, esquece o cinema, não sai pra jantar, fica em casa, novela, roupa suja para lavar. Rotina é uma merda, eu vou te contar. É água, é luz, é telefone e outras tantas contas para pagar. Não sobra tempo, não sobra dinheiro, aperta daqui, aperta de lá. Vontade de viajar.
E o coração desacelera, parece até que vai parar. Sem querer ele desperta, arrebenta no peito, faz que vai sufocar. Sinto saudades, sinto falta de ar quando penso, quando lembro, quando vejo o tanto que já fui que nem consigo falar. Se eu voltar as páginas da minha história talvez não me reconheça em determinados momentos. Feito na foto das sete carinhas, que eu sei que sou eu que estou ali enquadrado, mas aquele eu, dividido por sete, não é nem a décima parte dos personagens que me completam. Aqueles rostos, aquelas sete expressões, já me diziam que eu sou múltiplo, muito embora eu só fosse me dar conta disso décadas mais tarde. E agora, quem é esse que se apresenta para mim neste instante? A fila anda.
----------------------
Quando sentei para escrever este texto, pensava em contar um pouco sobre o reencontro com amizades de infância, aquelas que a gente jamais esquece, inspirado num almoço sábado passado na casa de minha amiga Ester, irmã do Wiltinho, cúmplice de longa data e muitas histórias engraçadas. Lá estavam ainda a Diana e a Andréa e relembramos histórias de quando não tínhamos nem dez anos de idade. Foi graças ao tal do facebbok que nos reaproximamos. Ficamos anos sem nos ver, mas o curioso é que mesmo tendo passado tanto tempo, alguma coisa muito forte ainda nos une. Mesmo que não sejamos mais os mesmos. Porque o tempo passa numa velocidade estonteante e transforma todos nós.