quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Uma questão de nonsense


Se havia algo de estranho naquela manhã, era o silêncio. No elevador, ao sair de casa, sequer um bom dia da vizinha adolescente, que tinha fones no lugar de brincos nas orelhas. O zelador, para variar, não estava na portaria. A garagem, além de escura, vazia. Entra no carro, bate a porta com cuidado, o cheiro forte de cigarro no estofado, o celular descarregado, ajeita os espelhos, gira a chave. Só o ronco do motor. O rádio não funciona. O vidro elétrico também não. O filtro do ar condicionado precisa ser trocado, assim como os dois pneus traseiros.


É cedo. Ainda não há trânsito.

Pouco dormira na noite anterior. A dor intensa que sentia na perna direita não deixara que relaxasse um só instante. Aquele furúnculo não parava de crescer e o inchaço no tornozelo era indisfarçável. Há duas semanas que ele aparecera. Num primeiro momento parecia mordida de inseto. Coçava até. E desde então, só aumentava. Precisava urgente procurar um médico.

Há mais de dois anos não procurava sua mãe.

Na entrada principal do edifício comercial em que trabalhava, uma placa onde se lia 'não abriremos hoje'. Um velho que recolhia restos de papelão não soube lhe responder por quê. A mulher da banca de jornal também não e o dono da lanchonete ao lado nunca foi mesmo de muita conversa. Precisava de uma explicação. Qualquer uma que fosse. A perna doía. Latejava demais aquilo. De vermelho, o tornozelo estava quase roxo. Precisava sentar. Enquanto tudo ao seu redor vertiginosamente rodava.

Caía.

Quando retomou a consciência, já não havia mais ninguém ali. Só a dor na perna direita que insistia em não ir embora. Feito mágoa que não se apaga, não se afoga, não se esquece, não se liberta. Bem ali, naquela rua deserta, onde placas indicavam pistas sem saber onde parar. Entre os arranha-céus, bem lá no alto, nuvens aceleradas num balé frenético davam sinais de que o tempo urgia em se apressar.

- Corra!, pensou.

Seu corpo permanecia imóvel e não respondia a nenhum estímulo. Nada se mexia. Era só o pensamento e a respiração. Mais pensamento que respiração. Como se tivesse fumado erva das mais fortes. Trincava-lhe os dentes. Cerrava-lhe os olhos. Aumentava-lhe os sentidos. E a dor e a dor e a dor e a dor.

A dor.

Tinha saudade de casa. Da infância esquecida nos subúrbios. Do cheiro de doce de batata doce que só a sua avó fazia. Da casa cheia de alegria. Do abraço forte que acolhia. Dos tombos no quintal e dos pés descalços que pisavam a terra descompromissadamente. Molhada, seca ou fria. A terra tudo absorvia... vagarosamente.

Ardia.

Pulsava.

Sangrava.

Saía.

Lá fora, um silêncio enlouquecedor.