quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Pensando em quê?

Eu vivo num lugar hostil. Por mais que o cenário ao meu redor seja dos mais bonitos do mundo, eu vivo num lugar hostil. É violência, falta de assistência, falsidade, cada vez menos oportunidades, pobreza, abandono, corrupção, pouca vergonha, nenhuma educação, rasteira, pernada, todo mundo querendo te derrubar no chão. As coisas andam quentes demais por aqui. Minha mãe tem reclamado sempre que eu chego em casa que o calor está fora do normal, que ela nunca viu um verão assim, que deve ter muita gente morrendo por aí. Eu respondo que sim, digo que as coisas estão realmente estranhas, que na minha opinião o mundo já acabou, que nós estamos apenas sobrevivendo com o que restou e que quando todas as fontes secarem, babau, já era pra nós, humanos, raça desgraçada. Ela arregala o olho bom, faz um muxoxo com a boca, acha que eu não estou falando sério e pede um copo d'água bem gelado.

Eu obedeço.

Tenho visto muita maldade por aí, e confesso, estou meio que anestesiado. É como se eu mergulhasse num mar de xilocaína antes de levantar da cama e sob o efeito anestésico e quase letárgico eu me mantivesse durante todo o dia, até voltar para casa, para dentro da minha fortaleza, no meu aconchego, na minha pseudo segurança, para aquilo que eu reconheço como sendo eu. O mundo é muito mais bonito dentro de mim. É um laço infinito de cor azul turquesa, são flores brancas que eu semeio num jardim e as cartas de amor que eu ainda rabisco sobre a mesa. Minha mãe sabe que existe esse outro mundo em mim, pois as mães sabem de tudo sempre. Ela faz questão de não me deixar esquecer um só instante daquilo que eu devo acreditar, diz que em breve essas coisas todas vão melhorar, que a crise vai passar e que os meninos que há poucos meses resolveram morar na esquina da minha rua vão voltar para suas casas. Eu respondo mal criado que sou que eles não têm casa, pois se tivessem, era lá que estariam agora e não na rua, à mercê da sorte. Eles não querem a morte, ela diz baixinho, enquanto pega o terço e vai rezar.

Eu me calo.

Penso em como ela consegue ser tão simples, encontrar as soluções mais fáceis, acreditar num mundo cor de rosa, criar uma outra realidade. Será efeito dos remédios?, eu me pergunto. Não, ela sempre foi assim, dessas que nunca reclamaram de nada e suportaram bem a dor. Tão diferente de mim, que não aceito, que me revolto, que esbravejo, falo alto, corro atrás daquilo que eu acho que é meu de direito, não engulo sapos, bato de frente, dedo em riste, olho no olho, dente por dente. A vida me transformou nesse sujeito da porta para fora. Criei cascas, usei armaduras, envelheci. Caíram meus cabelos, outros pêlos me nasceram brancos, deixei para lá tantas certezas, quero outra profissão, um recomeço, enquanto vejo no espelho à minha frente o mesmo riso franco que sempre me serviu de âncora todas as vezes que eu quis voltar para dentro de mim.

Pensando em quê?, minha mãe pergunta.

Nesse calor, minha mãe, nesse calor.