sábado, 28 de abril de 2012

Nem uma brisa

O vento soprou forte no final daquela manhã e, por detrás das montanhas, nuvens se aglomeravam e desciam sob as encostas anunciando mais uma frente fria. Quem mora na zona norte ou no subúrbio do Rio de Janeiro e tem como barreira o Maciço da Tijuca, onde ficam as antenas de tevê e rádio do Sumaré, quando vê as nuvens chegando, muitas vezes tem a impressão de que o cume dos morros está coberto por neve. Ou flocos de algodão. Chega a ser bonito. E o barulho que fazem as rajadas de vento, como se soprassem gritos agudos invadindo todas as frestas, derrubando árvores, postes, levantando a poeira a cada cruzamento ou esquina. 

Do outro lado da calçada uma menina linda corre assustada na ponta dos pés, num misto de balé e malabarismo, pois ao mesmo tempo segurava a saia, os livros, a bolsa a tiracolo - que teimava em voar feito pipa - e desviava de quem porventura viesse em sua direção. Com os olhos cheios de terra trazida pelo vento ficava difícil enxergar e a menina, com as pupilas dilatadas, lindas, tentava segurar o choro. Ela tinha pavor de ventania.

Dois quarteirões a frente, a marquise de um edifício alto com grandes portões de ferro pintados recentemente, servia de abrigo a uma dezena de pessoas. Algumas gotas de chuva pesada já começavam a cair. Galhos secos, sacos plásticos, caixas de papelão, latas de cerveja e jornais velhos voavam como se tivessem vida, traçando rasantes. A menina linda tinha conseguido chegar até ali debaixo. A saia já comportada, o cabelo desarrumado, a pele suja, os livros meio que amassados e a bolsa ainda fora de lugar. A vista ardia, a respiração parecia menos ofegante, mas o vento ainda castigava e aquele espaço sob a marquise ia diminuindo a cada instante. Gente de todos os cantos ia chegando na tentativa de se proteger daquele capricho repentino da natureza. Raios e trovões ainda completavam o pesadelo daquele final de manhã. Ela estava assustada a menina linda.

A noite anterior não tinha sido das melhores. Estivera na casa da sua mãe. O pai havia morrido há poucas semanas e a viúva estava inconsolável com a perda. Há dois anos a doença veio arrasadora e levou daquele homem outrora forte toda a musculatura e a alegria de se saber vivo. Deixou-se dominar pelas dores e as articulações que travavam-lhe os movimentos mais sutis. Ela nunca sonhara em perder o pai tão cedo. Não que fantasiasse a imortalidade dos super-heróis, pois desde muito pequena tivera noção de que tudo tem um fim. Mas a imagem que sempre fizera do pai era a de um homem forte, corajoso, de voz grossa, sorriso largo, generoso. Ela achava o pai lindo, mesmo que já lhe faltassem cabelos, mesmo que a barba fosse branca e cada vez mais rala, mesmo que as rugas formassem sulcos em seu rosto e a pele soltasse de seus braços outrora tão ativos. Gostava de ouvir as histórias que o pai contava e sentiu uma saudade imensa de quando ainda criança o pai a embalava até que pegasse no sono. A mãe também amava aquele pai e o queria para ela mais que tudo. Disputava com a filha a atenção do marido praticamente desde que a menina nascera. Ela era uma linda menina. Tão linda quanto a mãe um dia também fora.

Na noite que antecedeu a ventania mãe e filha conversaram sobre coisas que nunca haviam conversado antes. Falaram da vida e do quanto foram felizes antes da doença do pai. Dos ciúmes que a mãe sentia dela quando o pai fazia suas vontades, da raiva que tinham uma da outra quando discordavam de um assunto qualquer, do orgulho de terem vencido as dificuldades que o dia a dia apresentava, da vez em que a filha torceu o pé e o pai a carregou no colo por cinco quarteirões até chegar em casa e aplicar compressas com gelo e do cheiro do perfume que o marido trouxera para a mulher de sua única viagem à Europa. A mãe guardava o frasco até hoje como se fosse uma relíquia, um talismã. A filha amava o cheiro daquele perfume e só de falar nele podia sentir todo aquele aroma de volta.

Falaram também das contas e das dívidas que o pai deixara. A doença consumiu todas as reservas, que não eram muitas. Só restou o apartamento no Andaraí, que estava com o condomínio há meses atrasado. A sociedade no botequim havia sido desfeita. Precisavam daquele dinheiro. A pensão que o pai deixou não ia dar para arcar com todas as despesas. A filha nunca trabalhara antes. A mãe ajudava no balcão do botequim e, com sorte, o ex-sócio do marido talvez precisasse de seus serviços. Ia ajudar a reforçar o orçamento. A menina linda ia ter de arrumar um emprego e esquecer os planos de ir morar na França, fazer intercâmbio, conhecer outras culturas. Deixa isso para mais tarde, quando as coisas melhorarem, você não vai querer me deixar sozinha, vai?

A filha não sabia o que responder. Chorou não por saudade do pai, mas por perceber que a vida estava lhe dando uma rasteira, que suas vontades não iam prevalecer desta vez, que era hora de esquecer os sonhos, que a vida real é muito dura e que o destino é traiçoeiro. Ela tivera noção ali naquela noite dos limites que se impõem à nossa vontade e, como um soco na boca do estômago, se deu conta da dor que a invadia. Levantou, foi até a cozinha, bebeu um copo d´água gelada, perguntou se a mãe queria. A mãe, que àquela altura não sentia sede, não sentia fome, não sentia nada, sequer respondeu. A filha não insistiu. Bebeu sua água, voltou para a sala, abriu a janela.

Nem uma brisa.

quinta-feira, 19 de abril de 2012

A porta do deserto

Ele só queria chegar até ao deserto.
Pisar na areia seca sob o sol forte a queimar-lhe a pele.
As rachaduras na carne a sangrar-lhe as feridas
e as cricatrizes que não fecham e ainda ardem como na hora do corte.

Por que ele vai sozinho, feito quem vai embora para sempre?
Nem mesmo olha para trás, segue em frente sem saber do que ficou.
Parece forte, mas é frágil como são frágeis os que não têm proteção.
Há muito tempo pararam de orar por ele. E seus olhos, tristes.

Menino solto na vida, que prende o choro, se engana, se encobre,
corre, desce, muitas vezes até esquece o quanto deixou se perder.
Lembra do que não lhe foi permitido, dos amores proibidos,
da razão que se fez grave em seus ouvidos, do pouco que falou quando foi feliz.

Ele mesmo quis se desfazer.
Tentava de todo modo esquecer, mudar o rumo da prosa, desaparecer.
Sem que ninguém o procurasse ou ao menos lhe desse falta,
a falta que só ele sentia.

No meio do caminho ele já não se reconhecia,
sequer sabia onde é que aquilo ia dar.
Estava fadado a dor, ele dizia.
Minha ou sua.

Porque eu também fiquei sozinho, pés descalços num chão frio,
o piso incerto, o passo em falso, a dor de me saber vazio.
Há dentro de mim a angústia do desencontro e meu pranto é tanto
que eu nem sei se conto.

Porque eu também sou frágil, embora não pareça.
Versos delicados insistem em me visitar.
Rimas preciosas, vaidosas, difíceis até, me arrancam de mim.
É quando então me sinto mais só.

Eu sou o deserto.