sexta-feira, 29 de abril de 2011

A travessia





Para quem teve a oportunidade de viajar, o feriado da Semana Santa este ano não poderia ter sido melhor. O sol e o calor civilizado de outono abençoaram ainda mais o significado daqueles dias. Este ano não viajei, não fui à igreja e nem acompanhei a procissão, como é de costume. Na sexta-feira da Paixão eu estava de plantão no jornal e com a missão de preparar o peixe para o almoço da família. No dia anterior, além de ter sido aniversário do meu filho mais velho e chá de bebê do meu neto, eu, Claudia e Rosa, amiga de longa data, emendamos a noite num show e depois numa outra festa. Dançamos e nos divertimos até as três da manhã, coisa que não fazíamos há anos. Resultado: acordei tarde e perdi a hora da missa.

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Eu já contei aqui que plantão é uma coisa pra lá de horrorosa que acontece na vida de todo jornalista uma vez por mês, não é? Plantão em pleno feriado consegue ser pior ainda, acredite. Por sorte, este meu plantão na Semana Santa foi tranquilo. Sem terremotos e tsunamis no Japão, sem guerra do tráfico, sem visita de presidente norteamericano, sem enchentes ou deslizamentos. Tudo correu na santa paz. A notícia que mais me mobilizou foi a de que Rosinha Garotinho, prefeita de Campos, cidade de meus avós maternos, teria sido expulsa do PMDB. Mas o que me chamou a atenção não foi o fato de ela ter sido expulsa do partido, mas sim porque a expulsão havia ocorrido há três dias e ninguém, até então, noticiara. Teria Rosinha Garotinho perdido a importância para a política nacional?

Fica aqui a pergunta.

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Segunda-feira pós-feriado. O céu está nublado, as horas se arrastam no jornal, nada acontece em Brasília, não sabemos nem se teremos manchete e eu crente que vou sair no meu horário habitual. Afinal, é segunda-feira, a capital federal está um marasmo que só, nossos políticos ainda não voltaram do final de semana prolongado e as notícias só falam sobre o número de mortos nas rodovias federais. Depressão é pouco.

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A natureza, vendo aquele cenário triste de jornalistas em busca de um fato realmente relevante para publicar, resolveu que estava na hora de providenciar uma chuvinha. E já que o sol reinou toda a Semana Santa, mandou logo um temporal que é para não deixar dúvidas da sua força. Em poucos minutos, a área da Tijuca, Maracanã e Praça da Bandeira virou uma enorme banheira e o trânsito, um verdadeiro caos. Em questão de segundos o clima na redação era outro. Olhos arregalados. Uma certa tensão no ar. Alguém lembrou que foi justamente na segunda-feira após a Páscoa do ano passado que outro temporal havia arrasado com a cidade.

- Coincidência - eu disse.

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Estava preocupado em adiantar meu trabalho e torcendo para que a chuva desse uma trégua para eu poder voltar para casa. Mas nada aconteceu como eu gostaria naquela noite e só saí da redação às duas da manhã, quando os motoristas que conseguiam voltar para o jornal disseram que tinha um caminho em que os carros poderiam passar. Era só seguir pelo viaduto São Sebastião até o Santo Cristo, contornar o largo à esquerda, entrar na primeira à direita, ir em frente, passar nos fundos da rodoviária, virar de novo à esquerda e subir o viaduto da Francisco Bicalho. De lá, decidir se vai pela Quinta da Boa Vista ou pela Linha Vermelha e depois, Linha Amarela.

Foi o que eu fiz.

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Fora dois bolsões dágua nos fundos da rodoviária, fui bem até chegar ao viaduto da Francisco Bicalho, onde encontrei o trânsito completamente parado. A pista da esquerda, a que eu estava, tomada por ônibus e caminhões enormes. Lá embaixo, uma infinidade de faróis prestes a boiar nas águas podres do Canal do Mangue me fez pensar no apocalipse. Ao meu lado vejo passar uns fotógrafos, todos atrás das melhores imagens. A chuva aperta. Não perdoa. Percebo o tempo passar quando o cd do Marcelo Jeneci chega ao fim. Assim como na canção, eu também estava longe. De repente, a pista da direita começa a andar. Sem pensar duas vezes, embiquei o carro, consegui uma brecha e segui o fluxo para ver onde ia dar. A pista para quem ia pegar a Linha Vermelha ficou livre e eu fui com a cara, a coragem e a certeza de viver numa cidade despreparada.


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Páscoa, do hebraico Pessach, quer dizer passagem, travessia. Eu, que até então não tinha me dado conta de que a Páscoa se fora, lembrei disso assim que pisei em casa, depois de ter cruzado a cidade de madrugada e debaixo daquele temporal.




Que venha, agora, a renovação.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Indispensável


É preciso celebrar a vida.
Deixar-se levar pelas tardes de outono.
Apaixonar-se na luz de cada esquina.
Embriagar-se de amor.
Revelar-se.

Fotografar o ângulo mais bonito.
Registrar o que jamais foi dito.
Nunca deixar de tentar.
E amar.
Sobretudo amar.

É preciso.

Não tenha medo. Tente.
Alimente seus desejos mais nobres.
Sacie todas as suas vontades.
Encha o peito de amor.
Experimente.

Depois, respire fundo.
Aquiete-se.
Volte-se para o seu silêncio.
Só então solte o ar.
Bem devagar.

Num mesmo ritmo.
Repetidas vezes.
Incessantemente.
Sem parar para pensar.
Porque a vida é precisa.

Indispensável é o amor.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Eu só sei fazer poesia


Ainda bem cedo percebi que tem gente que não sabe doar.
Só mais tarde me dei conta que eu também não sabia.
Eu não soube lidar.
Eu não soube sequer entender o que eu era.
Quisera eu compreender.
Quem dera.

Algum tempo depois aprendi que é preciso dividir para multiplicar.
E me troquei por mais de mil pedaços.
Distribuí salivas em milhões de beijos.
E me perdi na conta e no suor dos seus abraços.
Até me juntar por inteiro.
E de novo repartir.

Incessantemente.

Misteriosamente então parti.

Furiosamente me joguei sem saber por onde ir.
Silenciosamente vi a ciranda que não para.
Eu entrei na roda, eu rodei na gira.
Eu virei criança.
Recriei versos com as rimas que eu trazia da minha infância.
Eu me reconhecia.

Era eu ali.
Bem perto.
No sentido daquelas palavras.
No arfar daquele peito.
No eco de tantas vozes.
Por dentro, por fora e ao redor de mim.

Porque eu só sei fazer poesia.

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Parece loucura


Já faz algum tempo e eu passava ali pela Fonte da Saudade quando vi uma cena que nunca me saiu da cabeça. Era final de uma manhã ensolarada. Destas em que a palheta de cores que nossos olhos refletem fica muito mais intensa. Nas manhãs ensolaradas o tempo também anda bem mais devagar.

Foi em câmera lenta que eu contornei o largo em direção ao engarrafamento que me levaria ao Humaitá quando, à minha esquerda, um grupo de meninas com no máximo nove anos de idade, com uniforme de escola pública, atravessava a rua, em fila indiana. A professora ia na frente e atrás dela aquelas meninas - umas dez, talvez - com praticamente a mesma altura e todas, sem exceção, com mochilas nos mais variados tons de rosa nas costas. A professora, inclusive.

Aquelas meninas estavam felizes naquela manhã. E eu também.

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Tenho acordado cedo estes últimos dias. Muito por conta da criançada que desde às 7h começa a chegar ao colégio que tem bem ao lado do meu prédio. Tem um menino - um dia vou descobrir o nome dele - com o tom de voz acima do que é permitido por lei, que vive aos berros. Já consegui descobrir que seus melhores amigos são a Camila, o Igor e o Bernardo de tanto que ele grita seus nomes. Acho que ele gosta da Camila, mas a Camila gosta do Igor, que não gosta dela. Já o Bernardo, eu não sei. Só sei que tenho acordado cedo por conta do movimento no colégio ao lado.

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Aí, levanto, leio o jornal, dou um giro na internet. Nunca como nada de manhã. Não consigo. No máximo bebo um suco. Segundas e quartas os professores de violão e desenho dos meus mais novos amanhecem lá em casa. Nos outros dias, eles dormem até mais tarde. Os meus filhos. Os professores, eu não sei. Nunca ligo a TV pela manhã. Nesta quinta-feira, sabe-se lá por que cargas dágua, eu liguei.

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As cenas de um massacre numa escola americana que tanto me impressionaram há alguns anos já estavam escondidas no meu baú de lembranças ruins. Os filmes Tiros em Columbine e Elefante também. Não poderia imaginar que, ao ligar a TV na manhã daquela quinta-feira, todas aquelas cenas que eu pensava ter esquecido voltariam à tona. Eu só queria ver se a Ana Maria Braga - e daí? - ia fazer alguma receita que valesse a pena. Só isso. Mas Ana Maria e seu inseparável Louro José estavam conversando com uma menina que havia sofrido bullying - o tema da moda - na escola. A mãe, costureira, achava que a filha sofria preconceito por ter vindo do interior do Paraná.

- Lá no interior do Paraná, de onde nós viemos, nós temos o sotaque carregado mesmo -justificava a mulher, com todos os "esses e erres" bem torcidinhos, antes de ser interrompida por uma chamada do plantão do RJ TV.

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Uma escola municipal na Zona Oeste do Rio de Janeiro havia sido invadida por um bandido. A única informação era que tiros foram disparados dentro da escola e a sensação de que alguma coisa muito grave estava acontecendo por lá. Olhei pela janela do meu quarto e vi cruzar no céu nublado dois helicópteros. O barulho que eles fizeram despertou a ira do meu vira-latas, que deu o ar da graça na varanda. Meus filhos continuavam dormindo, minha mulher tinha levado meu sogro para fazer exame de sangue, e eu ali na cama, com a TV ligada e as imagens de um crime sem precedentes invadindo a minha manhã e contaminando todo o meu dia.

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Saí do quarto, tomei meu banho, me arrumei e corri para o Largo do Machado. Desde a semana passada eu tinha marcado um compromisso que me tomaria todo o início da tarde. Fui ouvir que preciso aprender a falar francês, que tenho de levar meus textos a uma editora, que necessito urgentemente voltar a fazer exercícios físicos e que, ora bolas, a Claudia era a mulher da minha vida. Ouvi também que não sou filho do meu pai, que minha mãe só veio aqui para me encontrar, que não posso nunca usar acento no meu nome, que meu filho mais velho já foi filho da minha mulher e que eu só fiz 18 anos em 1995. Portanto, só tenho 34 anos e não 42. Parece loucura.

Naquelas duas horas eu ouvi muita coisa. Mas nada a respeito da louco que invadiu o colégio em Realengo e matou 12 crianças inocentes.

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Cheguei na redação mais cedo que de costume naquela quinta-feira. Clima pesado. Todos, cada um a seu modo, chocados com as notícias que, infelizmente, teríamos de publicar. A editoria Rio precisando de reforço, as pautas que não paravam de surgir, as histórias dramáticas daquelas vidas interrompidas, a impotência de nossas autoridades, o choro da nossa presidenta, o desespero dos pais que perderam seus filhos e em mim a certeza de que sou de outro planeta.

Eu estava triste e tinha a sensação de que todo mundo também estava.

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- Agora vai todo mundo achar que só porque você é tímido, retraído, que gosta de ficar sozinho e que passa horas na Internet, que você é louco, me disse um amigo, no dia seguinte à tragédia.

- É um risco que não corremos sozinhos, respondi. Respondi também que outros fatores deveriam ser observados e que se analisássemos a fundo história de vida daquele rapaz que invadiu a escola e que disparou contra os alunos poderíamos encontrar algumas explicações. Só não iríamos encontrar uma coisa: amor.

- Ou a gente ama ou a gente enlouquece, eu falei.

E aquela brutalidade toda, naquela escola em Realengo, naquela manhã nublada de quinta-feira... meu Deus, que loucura!