terça-feira, 29 de outubro de 2013

Milagres urbanos

Você sai de casa apressado, pega o carro, o trânsito está misteriosamente bom. Você chega do Méier até a Praça XI em 15 minutos, vira a curva no quarteirão do Balança Mas Não Cai, tudo parado. Você freia. Não dá tempo, bate no carro da frente, o carro amassa. Você vê. A dona do carro também vê, dá ataque, você pede pra ela ficar calma e estacionar logo ali. Enquanto isso os cifrões turvam a sua visão. Você não pensa em mais nada, a vida tá complicada, você sai do carro, olha pro carro da dona, a dona olha pra sua cara, vocês olham de novo pro carro, cadê o amassado?, vocês perguntam, o amassado sumiu, não tem nem um arranhãozinho sequer, como pode?, ela indaga. Foi milagre, você diz. Então tá, até logo, você está atrasado, ela também. Você liga o carro, ela faz a curva, você ri sozinho e agradece, só agradece.

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Amor de menino

Dorme, menino bonito, dorme. 
Deixa o seu corpo arriar, 
que o que eu guardo em mim é o pouso infinito,
feito o céu que se desmancha em azul 
na superfície inquieta do mar. 

Esse mar que jamais descansa, 
que balança nas ondas da praia 
num eterno pra lá e pra cá. 

Esse mar de ressaca e esperança. 
É só o mar de quem sabe o que é amar. 

Sonha, menino, sonha.
Deixa o inconsciente chegar, 
que eu trago em meu peito os delírios mais lindos, 
desses que nos dão asas e brilho
e por aí evaporam, nos deixam soltos no ar.

Toca, menino, toca
com todos os seus anseios o meu coração, 
diz que jamais vai embora,
repete baixinho aqui no meu ouvido 
que nesse mundo a gente não se perde mais não.

Deixa, menino, deixa 
eu tentar fazer o que eu ainda não fiz. 
Deixa o tempo dizer e mostrar 
que é mais do que hora de saber ser feliz.

Fica, menino, fica 
comigo na minha vida, 
seguindo na mesma estrada, 
dedilhando as cordas numa outra lira. 

Faz de mim teu único instrumento, 
costura na minha carne todos os momentos, 
esculpe, molda, talha, nó.

Te amo, menino, te amo.

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Diários III

Na manhã seguinte, o outro havia desaparecido, virado pó, deletado os e-mails, apagado as mensagens, mudado todas as senhas, levado as chaves. Só havia sobrado ele ali, de pé, em frente ao espelho embaçado, reflexo tênue do que houvera sido. Naquela manhã, ele sequer conseguira respirar fundo, e o mundo, ao redor, nem melhor nem pior, seguia o seu rumo.

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Dê tempo ao tempo

Assim que ele conseguiu uma pausa para respirar depois daquela manhã agitada, 
foi que se deu conta de que a vida o levava lentamente.

Parou.
Respirou profundamente.

Uma. Duas. Infinitas vezes.

Dali a pouco era hora de recomeçar.

Não lhe era permitido perder tempo,
já que ele esquecera de sair do lugar.

No pulso, um relógio sem ponteiros
a desviar-lhe as horas.

Os segundos pulsavam presos
dentro do peito,
bombeando o sangue de areia grossa
que escorria naquela ampulheta.

Bem devagar.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Tempos difíceis

Certas horas a poesia silencia
e parece querer se esconder,
fugir de mim,
largar de mão,
desaparecer.

Justo nesses dias,
ela,
a poesia,
sumia.
Que tempos difíceis são esses?

Nas ruas, o bloco negro confundindo as massas,
levantando a voz, queimando a praça,
vidraças quebradas da hipocrisia.

Nas tevês, eles também confundem,
invertem o sentido, usam de artifícios,
roteiros pré-estabelecidos em horário nobre.

A manchete é o vandalismo.
A suíte é o lado sujo.
O mundo,
a cada virada de página,
fica ainda mais difícil.

Brigam os tradicionais e os alternativos
via redes sociais.
Surgem novas ferramentas,
instalam-se outros aplicativos,
um imenso flash mob do dever cívico.

E os ideais?  Quais?

O Estado revida,
bate,
maltrata,
fere com balas de borracha
e sufoca o grito daquele que corre atrás.

Nos palácios estão todos surdos,
fazendo-se de cegos,
contaminados pelo poder.
Não percebem que estão cercados.
Não sabem, não querem, não prestam.

Eles nada vão fazer.

Já não podem ouvir os gritos.
Há muito que eu também não ouvia.
Onde antes era só silêncio
há hoje o risco dos verbos calados à força
e das minhas estrofes continuarem vazias.

Logo as minhas,
que por acaso nasci poeta,
berrando os versos da poesia.

Que tempos difíceis são esses?



domingo, 13 de outubro de 2013

Não sejamos tão ingênuos

Então você acorda e há um mundo diferente lá fora. Sim, é só mais um domingo, são as mesmas nuvens de algodão, o mesmo céu de anil, o mesmo gosto do café amargo e toda a falta que eu sinto de algumas partes de mim. O silêncio daquelas manhãs de domingo sempre me intrigaram. Para mim, tão afeito ao barulho e à velocidade do dia-a-dia rotineiro, era como se nelas, naquelas manhãs, o mundo descansasse e cedesse lugar à preguiça. A tal da pausa, tantas vezes necessária, até recomeçar.

Lembro bem de uma tia que sempre me dizia: "Levantar da cama aos domingos não é difícil. Difícil é recomeçar." Eu era criança quando ouvia tal frase e, confesso, custei a entender o que ela queria dizer com aquilo. Houve uma época em que eu achava que era um recado velado, como se ela implicasse com a minha preguiça, tão mais sem vergonha nas manhãs de domingo. Só mais tarde, anos depois da minha tia ter morrido, foi que entendi o que poderia estar implícito naquilo que ela tanto dizia. Não é mesmo nada fácil recomeçar.  

Eu queria levantar da cama aos domingos com superpoderes e, enfim, enxergar a vida com óculos cor-de-rosa. Queria poder prender cada sem-vergonha que se acha no direito de roubar o que é do outro, de cercear a liberdade de quem quer que seja, de surrupiar na maior cara-de-pau e de me dizer o que é certo, o que é errado ou o que pode e o que não pode. Queria, também, exterminar com as raças de alguns políticos que estampam as manchetes dos jornais e que estão há séculos no comando, acumulando e exercitando o egoísmo desacerbado, enquanto esquecem que é preciso compartilhar, dividir, multiplicar, socializar e respeitar a vida daquele que pisa neste solo com as mesmas necessidades que ele. Poque ele, assim como eu ou você, é um qualquer um.

Queria levantar da cama, correr na varanda e gritar para o meu vizinho que desce a rua que somos todos iguais. Queria que ele, que não perde um Jornal Nacional depois do jantar preparado pela esposa, soubesse que temos, sim o dever de nos manifestar, de invadir as ruas e exigir melhores condições. Queria que daquele domingo em diante a voz dos protesto legítimos não precisasse ceder espaço nos noticiários para os black blocs e sua quebradeira geral, que, juro, ainda tenho cá minhas dúvidas se são ou não necessárias. Queria, na verdade, que tudo isso fosse apenas parte de um processo de reconfiguração ou atualização de sistema da humanidade, feito um software mesmo ou um aplicativo que fizesse com que ela levantasse menos ingênua a cada manhã.

Aí, então, seria este o sinal de um recomeço? O ponto final que anuncia a pausa? Ou já seria o início de um novo parágrafo na nossa história? Eu, neste contexto, sou um personagem que convive com um exército de black blocs em mim não é de hoje, provocando uma quebradeira interna generalizada. Como se o centro desse mundo em ebulição doesse aqui no meu peito, feito a bala de borracha ou o tiro certeiro da arma letal dos meganhas. Porque meu peito é o núcleo quente que derrete, dissolve, digere, transforma e transfere. 

Eu, graças aos midiáticos vândalos que cá me habitam e tacam fogo no que não presta, carrego a certeza de que não sou mais o mesmo. Talvez por isso, hoje, neste domingo, eu tenha acordado vendo um mundo diferente lá fora.