segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Dúvida

Quem era ele agora, se aquele que outrora fora se desfez? 
Onde ele houvera ficado?
Quando ele houvera partido? 
O que tivera feito para que até ali então chegasse?
O sol, o céu azul e as mesmas tardes de domingo 
a lhe refrescar com as brisas que ainda restavam. 
Naquelas tardes, bastava encher os pulmões com todo o ar e seguir em frente, 
como um náufrago à deriva num mar fecundo.
O medo.
O novo.
O mundo.
O mesmo mundo, muito embora para muitos aquele já tivera sido o fim.

terça-feira, 29 de outubro de 2013

Milagres urbanos

Você sai de casa apressado, pega o carro, o trânsito está misteriosamente bom. Você chega do Méier até a Praça XI em 15 minutos, vira a curva no quarteirão do Balança Mas Não Cai, tudo parado. Você freia. Não dá tempo, bate no carro da frente, o carro amassa. Você vê. A dona do carro também vê, dá ataque, você pede pra ela ficar calma e estacionar logo ali. Enquanto isso os cifrões turvam a sua visão. Você não pensa em mais nada, a vida tá complicada, você sai do carro, olha pro carro da dona, a dona olha pra sua cara, vocês olham de novo pro carro, cadê o amassado?, vocês perguntam, o amassado sumiu, não tem nem um arranhãozinho sequer, como pode?, ela indaga. Foi milagre, você diz. Então tá, até logo, você está atrasado, ela também. Você liga o carro, ela faz a curva, você ri sozinho e agradece, só agradece.

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Amor de menino

Dorme, menino bonito, dorme. 
Deixa o seu corpo arriar, 
que o que eu guardo em mim é o pouso infinito,
feito o céu que se desmancha em azul 
na superfície inquieta do mar. 

Esse mar que jamais descansa, 
que balança nas ondas da praia 
num eterno pra lá e pra cá. 

Esse mar de ressaca e esperança. 
É só o mar de quem sabe o que é amar. 

Sonha, menino, sonha.
Deixa o inconsciente chegar, 
que eu trago em meu peito os delírios mais lindos, 
desses que nos dão asas e brilho
e por aí evaporam, nos deixam soltos no ar.

Toca, menino, toca
com todos os seus anseios o meu coração, 
diz que jamais vai embora,
repete baixinho aqui no meu ouvido 
que nesse mundo a gente não se perde mais não.

Deixa, menino, deixa 
eu tentar fazer o que eu ainda não fiz. 
Deixa o tempo dizer e mostrar 
que é mais do que hora de saber ser feliz.

Fica, menino, fica 
comigo na minha vida, 
seguindo na mesma estrada, 
dedilhando as cordas numa outra lira. 

Faz de mim teu único instrumento, 
costura na minha carne todos os momentos, 
esculpe, molda, talha, nó.

Te amo, menino, te amo.

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Diários III

Na manhã seguinte, o outro havia desaparecido, virado pó, deletado os e-mails, apagado as mensagens, mudado todas as senhas, levado as chaves. Só havia sobrado ele ali, de pé, em frente ao espelho embaçado, reflexo tênue do que houvera sido. Naquela manhã, ele sequer conseguira respirar fundo, e o mundo, ao redor, nem melhor nem pior, seguia o seu rumo.

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Dê tempo ao tempo

Assim que ele conseguiu uma pausa para respirar depois daquela manhã agitada, 
foi que se deu conta de que a vida o levava lentamente.

Parou.
Respirou profundamente.

Uma. Duas. Infinitas vezes.

Dali a pouco era hora de recomeçar.

Não lhe era permitido perder tempo,
já que ele esquecera de sair do lugar.

No pulso, um relógio sem ponteiros
a desviar-lhe as horas.

Os segundos pulsavam presos
dentro do peito,
bombeando o sangue de areia grossa
que escorria naquela ampulheta.

Bem devagar.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Tempos difíceis

Certas horas a poesia silencia
e parece querer se esconder,
fugir de mim,
largar de mão,
desaparecer.

Justo nesses dias,
ela,
a poesia,
sumia.
Que tempos difíceis são esses?

Nas ruas, o bloco negro confundindo as massas,
levantando a voz, queimando a praça,
vidraças quebradas da hipocrisia.

Nas tevês, eles também confundem,
invertem o sentido, usam de artifícios,
roteiros pré-estabelecidos em horário nobre.

A manchete é o vandalismo.
A suíte é o lado sujo.
O mundo,
a cada virada de página,
fica ainda mais difícil.

Brigam os tradicionais e os alternativos
via redes sociais.
Surgem novas ferramentas,
instalam-se outros aplicativos,
um imenso flash mob do dever cívico.

E os ideais?  Quais?

O Estado revida,
bate,
maltrata,
fere com balas de borracha
e sufoca o grito daquele que corre atrás.

Nos palácios estão todos surdos,
fazendo-se de cegos,
contaminados pelo poder.
Não percebem que estão cercados.
Não sabem, não querem, não prestam.

Eles nada vão fazer.

Já não podem ouvir os gritos.
Há muito que eu também não ouvia.
Onde antes era só silêncio
há hoje o risco dos verbos calados à força
e das minhas estrofes continuarem vazias.

Logo as minhas,
que por acaso nasci poeta,
berrando os versos da poesia.

Que tempos difíceis são esses?



domingo, 13 de outubro de 2013

Não sejamos tão ingênuos

Então você acorda e há um mundo diferente lá fora. Sim, é só mais um domingo, são as mesmas nuvens de algodão, o mesmo céu de anil, o mesmo gosto do café amargo e toda a falta que eu sinto de algumas partes de mim. O silêncio daquelas manhãs de domingo sempre me intrigaram. Para mim, tão afeito ao barulho e à velocidade do dia-a-dia rotineiro, era como se nelas, naquelas manhãs, o mundo descansasse e cedesse lugar à preguiça. A tal da pausa, tantas vezes necessária, até recomeçar.

Lembro bem de uma tia que sempre me dizia: "Levantar da cama aos domingos não é difícil. Difícil é recomeçar." Eu era criança quando ouvia tal frase e, confesso, custei a entender o que ela queria dizer com aquilo. Houve uma época em que eu achava que era um recado velado, como se ela implicasse com a minha preguiça, tão mais sem vergonha nas manhãs de domingo. Só mais tarde, anos depois da minha tia ter morrido, foi que entendi o que poderia estar implícito naquilo que ela tanto dizia. Não é mesmo nada fácil recomeçar.  

Eu queria levantar da cama aos domingos com superpoderes e, enfim, enxergar a vida com óculos cor-de-rosa. Queria poder prender cada sem-vergonha que se acha no direito de roubar o que é do outro, de cercear a liberdade de quem quer que seja, de surrupiar na maior cara-de-pau e de me dizer o que é certo, o que é errado ou o que pode e o que não pode. Queria, também, exterminar com as raças de alguns políticos que estampam as manchetes dos jornais e que estão há séculos no comando, acumulando e exercitando o egoísmo desacerbado, enquanto esquecem que é preciso compartilhar, dividir, multiplicar, socializar e respeitar a vida daquele que pisa neste solo com as mesmas necessidades que ele. Poque ele, assim como eu ou você, é um qualquer um.

Queria levantar da cama, correr na varanda e gritar para o meu vizinho que desce a rua que somos todos iguais. Queria que ele, que não perde um Jornal Nacional depois do jantar preparado pela esposa, soubesse que temos, sim o dever de nos manifestar, de invadir as ruas e exigir melhores condições. Queria que daquele domingo em diante a voz dos protesto legítimos não precisasse ceder espaço nos noticiários para os black blocs e sua quebradeira geral, que, juro, ainda tenho cá minhas dúvidas se são ou não necessárias. Queria, na verdade, que tudo isso fosse apenas parte de um processo de reconfiguração ou atualização de sistema da humanidade, feito um software mesmo ou um aplicativo que fizesse com que ela levantasse menos ingênua a cada manhã.

Aí, então, seria este o sinal de um recomeço? O ponto final que anuncia a pausa? Ou já seria o início de um novo parágrafo na nossa história? Eu, neste contexto, sou um personagem que convive com um exército de black blocs em mim não é de hoje, provocando uma quebradeira interna generalizada. Como se o centro desse mundo em ebulição doesse aqui no meu peito, feito a bala de borracha ou o tiro certeiro da arma letal dos meganhas. Porque meu peito é o núcleo quente que derrete, dissolve, digere, transforma e transfere. 

Eu, graças aos midiáticos vândalos que cá me habitam e tacam fogo no que não presta, carrego a certeza de que não sou mais o mesmo. Talvez por isso, hoje, neste domingo, eu tenha acordado vendo um mundo diferente lá fora.






sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Desarrumação

Bastou uma rajada leve de vento para ele olhar para trás e se dar conta de que, mesmo que já tenham se passado mais de 40 anos, ainda havia muito o que arrumar naquela casa. 
Até ali, só o alicerce e a certeza de que a vida é uma faxina ininterrupta.

domingo, 8 de setembro de 2013

Enigma

Então me disse que faltava pouco para o fim e eu ali, parado, não acreditei. Preferi continuar sozinho, sem saber ao certo se era mesmo o tal destino que eu sempre havia traçado em linhas tortas ou se foi tudo culpa da falta de coragem, do medo e da distância entre o meu desejo e aquele que um dia habitou em mim.

Sem predicados

O tiro na testa foi certeiro. Ele não sentiu nada. Nem tampouco sentira o vento forte que levantara a poeira segundos antes, a mesma poeira que lhe sujara a face. Tombou o corpo pesado na esquina escura. Da cintura pra cima, calçada. As pernas, desajeitadas, no meio da rua. Mal anoitecera e a lua já despontava no céu sem nuvens. O estampido. O por quê. O acaso. Tudo mais ficara oculto. E o sujeito ali sem predicados. Quem era ele mesmo?

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Correnteza

Eu quero versos,
eu quero rimas,
quero esquecer o certo
em meio a linhas distorcidas.

Quero errar o tom,
acelerar na curva,
bailar descalço
enquanto cai a chuva.

Desbravar o céu,
me perder no ar,
pular da ponte,
na beira do mar.

Nesse mar gigante,
onde chega o rio
e a correnteza limpa,
lava o meu corpo.

Esse rio que chega no mar
já não é o mesmo rio.

Porque o rio passa,
e eu já não sou o mesmo,
muito embora o corpo,

perdido nas ondas,
em busca do gesto,
em estado de graça.

Os bons versos que me carreguem.

quarta-feira, 31 de julho de 2013

Grandeza

Meu mundo é pequeno,
cabe na palma da minha mão.
Já meu coração, esse não.
Meu coração é um poço sem fundo,
um céu de olhares infinitos,
um mar de versos bonitos
traduzidos em ondas que eu carrego
por onde quer que eu vá.

quarta-feira, 19 de junho de 2013

Dressed to kill

Janaína é uma mulata arrebatadora, com 1,75m, cintura fina, peitos fartos, cabelos tratados, cheirosa e vaidosa que só. Moradora de Marechal Hermes, trabalha no centro da cidade como secretária de um escritório de contabilidade. Casada, costuma sair cedo de casa para pegar o trem até a Central do Brasil, mas antes, prepara o café da manhã pro marido, Nestor, taxista, e pros filhos, Luana, Lorraine, Luan, de 5, 7 e 9 anos, que ficam com uma sobrinha. Janaína é do tipo que faz tudo todo dia sempre igual. Só que não.

Naquela manhã Janaína acordou mais cedo, tomou um banho demorado, passou cremes, caprichou na depilação e deu uma certa exagerada no perfume. Saiu do banheiro enrolada na toalha, entrou no quarto sem fazer muito barulho. Nestor ainda dormia, as crianças idem. Do fundo do armário tirou um vestido de jérsei com estampa de onça, decote sexy, comprimento acima do joelho, novinho em folha, nunca havia usado. Sobre o sutiã cor de pele e a calcinha sem costura, o vestido caiu feito uma luva. Brincos dourados, braceletes com pedrarias e um sapato alto salgo agulha completavam o visual mulata tipo exportação.

Na cozinha, deu um gole no café preto, comeu um pedaço de pão com manteiga e deixou sobre a mesa um bilhete para Nestor, o marido, dizendo que teve de sair mais cedo para preparar o almoço de aniversário de 70 anos do chefe, seu Hilário, mas que as mochilas das crianças estavam prontas e que era para ele deixá-las na casa da sobrinha, como de costume, que quando ela chegasse, mais tarde, ela passava lá para buscá-las.

Da estação de trem em Marechal Hermes à Central do Brasil e durante todo o dia Janaína ouviu cantadas de todos os feitios: Bom dia, tigresa. Que felina classuda. Essa gata é uma fera. E por aí vai. Janaína estava mesmo na alturas. O almoço do chefe foi um sucesso, todos os funcionários do escritório confraternizando, uma alegria contagiante. Parecia até festa de fim de ano.

No meio da tarde ainda teve bolo, salgadinhos e refrigerantes. O chefe não podia estar mais feliz. Nem Janaína, que vestida de onça, estava se sentindo mais poderosa que nunca. Até que no final do dia toca o seu celular. Era Nestor, o marido.

 - Fala, jaguar.

- Jaguar? Por quê?

- Você saiu de casa hoje igual a uma jaguatirica!

- Antes jaguatirica do que jararaca, feito a sua mãe. Faz o seguinte, Nestor, não me espera pra jantar. Pega as crianças e se vira, porque a jaguatirica aqui hoje vai demorar a chegar.

Desligou o telefone antes mesmo que o marido respondesse.


É isso q enfraquece...

sexta-feira, 14 de junho de 2013

Vergonha e covardia

Depois de uma noite no mínimo histórica, onde paulistas e cariocas apanharam brutalmente daqueles que são pagos para garantir a segurança de todos, me perdi entre debates e panfletagens virtuais que vararam a madrugada e me tiraram o sono. Na timeline do facebook, a verdadeira e legítima cobertura da manifestação que mobilizou milhares de pessoas em algumas cidades do Brasil, mas especialmente Rio de Janeiro e São Paulo. As imagens, os vídeos e os relatos eram impressionantes. E mais impressionantes ainda se comparados à cobertura da mídia tradicional, que ainda chamava os manifestantes de vândalos, como se o protesto fosse simples baderna.

Covardia.

Mas não só a covardia daqueles que humilham com o cassetete nas mãos, protegidos por patentes, escudos e capacetes e baixam a porrada em cima de jornalistas, estudantes, trabalhadores, homens, mulheres, enfim. Não. Covardia pelo que somos submetidos diariamente. Seja o cara que mora na baixada e precisa acordar às 4h para pegar o trem lotado, atrasado, mal conservado, sendo empurrado para dentro dos vagões com a delicadeza de um carcerário, ao empresário, dono do Market Place Center Fields, que mora numa cobertura na Delfim Moreira, ali no comecinho do Leblon, paga seus impostos e quer viver num país justo.

Por que não?.

Por várias vezes li textos e publicações, de gente próxima até, chamando os manifestantes de vândalos. Realmente, vandalismo é inadmissível, coisa de povo mal educado, porco, sujo. Pra quê pichar igrejas, monumentos, quebrar praças inteiras? Mas não foi só isso que eu vi. De certo houve vandalismo, o lado pequeno da história, e justamente o lado que tentaram vender nas manchetes dos jornais. Lembro de acordar na quarta-feira e ler na capa do impresso que amanhece em minha porta a seguinte chamada: A Marcha da Insensatez, referindo-se à manifestação que já havia deixado São Paulo e o país em alerta na terça-feira. Insensatez?

De quem?

Ninguém estava nas ruas para protestar apenas contra um aumento de míseros vinte centavos de real nas tarifas de ônibus. Muito embora míseros sejamos nós. O que se viu na noite desta quinta-feira nas ruas foram surtos de indignação, um movimento maciço de protesto contra o que oprime, contra o que é covarde, contra o que é verdadeiramente vandalismo. Porque somos, sim, nós, todos os brasileiros, vandalizados por esse poder que corrompe e assombra e maltrata.

Somos vandalizados no momento em que pagamos nossos impostos e não temos transporte público de qualidade, não temos um serviço de saúde que atenda a todos com um mínimo de dignidade, não temos segurança, esgoto, asfalto, luz, muitas vezes nada. Somos vandalizados quando tomamos porrada na cara e viramos alvo daqueles que deveriam garantir a nossa segurança. E não falo aqui somente da truculência da corporação militar. Falo daqueles que estão no Planalto Central ou dentro de seus palácios de governo interessados nos contratos que vão lhes garantir cada vez mais regalias e poder.

Vergonha.


sexta-feira, 7 de junho de 2013

Capitão Américo

Capitão Américo é daqueles militares que não deixam a patente cair nem quando estão em casa, no lazer com a família. Do tipo durão, acostumado a comandar batalhão de soldados, não é de dar explicações a ninguém. A não ser quando comandado, claro. Casado com Elenice, mulher batalhadora - apesar de ser loira, como ela mesmo faz questão de afirmar -, Capitão Américo traz o casamento no cabresto: gosta de chegar em casa e ver o jantar pronto, os filhos de banho tomado, o Jornal Nacional, a novela, o 'até amanhã, meus filhos', o 'chega pra cá, patroa', o 'foi bom pra você, amor?' e o "boa noite".

Ciumento num nível patológico, vive controlando as ligações que Elenice faz no celular e volta e meia quer saber quais sites ela acessa no laptop que ele deu de presente no último aniversário de casamento. Desde então, cada um tem o seu, que é para evitar briga e preservar a relação. Numa dessas noites, enquanto Elenice tomava banho e as crianças já dormiam, corroído por uma curiosidade absurda, fora dos padrões da normalidade, Capitão Américo resolve instalar um programa espião no laptop da mulher, para rastrear toda e qualquer conversa que ela viesse a ter nos chats das redes sociais. O processo não demorou muito e em poucos minutos o rastreador de conversas alheias estava infiltrado no laptop de Elenice. Capitão Américo só esqueceu de um detalhe: desaparecer com o papel das instruções de instalação. Esqueceu a prova do crime do ali mesmo, junto a umas correspondências e contas a pagar.

Dia seguinte Elenice acorda louca para acessar o seu facebook e dá de cara com o tal papel. Ela, que apesar de loira, de burra não tem nada, na hora se deu conta do que o marido fizera. Como vingança é mesmo um prato que se deve comer frio, deixou passar alguns dias - poucos, é verdade - e, num momento de distração do capitão Américo, foi lá e fez o mesmo no laptop dele. Só que, claro, jogou fora o papel com as instruções.

Num piscar de olhos começaram a surgir conversas comprometedoras do Capitão Américo com dezenas de mulheres nos mais variados chats. Uma delas, inclusive, a melhor amiga de Elenice. Caso clássico de adultério. Ficou puta. Fumou um maço de cigarros de uma vez. Gravou tudo num pendrive. Mas manteve a linha quando o marido voltou da caserna, agindo naturalmente, como se nada tivesse acontecido. Loira, inteligente e ardilosa, eu diria. Naquela mesma noite transformou aqueles arquivos num pdf, determinada a montar uma apresentação. O power point da traição virtual. Foi dormir cheia de si.

No café da manhã, após os filhos saírem para a escola e entre xícaras de café amargo e cestas de pão francês, Elenice diz que precisa mostrar uma coisa para Capitão Américo em seu laptop. Capitão Américo diz que não pode, que está atrasado, que hoje é dia de ordem unida, que ainda precisa engraxar o coturno, entre outras desculpas.

- Não aceito desculpas, Américo - disse ela, com a autoridade de um coronel.

O Capitão arregala os olhos e quase presta continência. Afinal, Elenice nunca havia falado assim com ele antes e antes mesmo que ele se recusasse mais uma vez, ela foi iniciando os slides. Um a um. Bem devagar, que era pra dar tempo dele (re)ler tudo o que havia escrito naquelas últimas semanas nos chats com as amigas.

Após o último slide, um silêncio que jamais houve naquela casa e uma única certeza: Capitão Américo perdera a batalha.

- Isso é só para te avisar que eu sou loira, mas não sou burra, e que a comandante dessa casa agora sou eu.

Isso sim é golpe de estado!

terça-feira, 4 de junho de 2013

A primeira pedra

Perdoa.
Porque é no erro que se revela o homem e eu aqui estou.
Joga você sobre esse corpo, que é o meu, todas as pedras.
Desde a primeira.

Atira em mim.
Mira em minha face suja suas verdades.
Faz do meu contorno o alvo e me acerta
a frase exata.

A palavra certa.
O gesto preciso.
A flecha que atravessa o peito
e fere o corte à lâmina que ainda sangra.

Tira.
Subtrai de mim o que não é certo,
Se decerto você estiver com a razão.
De outro modo, não.

Quem não tem pecados?


quinta-feira, 30 de maio de 2013

Composição

Quisera eu todos os aplausos ao encerrar meu canto
enquanto jaz a voz cansada, solitária,
a capela.

Muito embora eu jamais fosse um poeta lírico,
tenho cá também os meus delírios:
trato versos como fossem filhos.

Declamo.
Derramo.
Afago na hora da dor.

Pudera eu ser todas as rimas afinal,
se por muito pouco me traduzo estrofe
e me encontram em frases rascunhadas por cima do muro.

Carrego em mim o grito forte do trovador.

Poesia fina que resiste na guerrilha urbana,
dicionário lúdico de palavras soltas pelas ruas,
quase que escritas como que para estancar meu pranto.

Pois tudo o que eu digo se desdobra em brisa,
o sopro de um vento leve em busca do mar,
sou a dança profana das marés imprecisas.

Sou um rabisco.
Um risco qualquer.
O traço tênue entre o que é o que jamais será.

Sou prosa literária.
Filosofia amoral.
Retrato desnudo do caos.

Compositor do absurdo.


quarta-feira, 3 de abril de 2013

Chá da tarde



Na falta de algo mais forte para entorpecer e com o preço do tomate nas alturas, do removedor Faísca mais caro que um litro de vinho, e o passe das domésticas valendo mais que o seu, o cara chega em casa e resolve fazer um chá de alecrim, atraído pelas maravilhas recentes que têm sido postadas na web sobre a tal erva inofensiva: alegria, relaxamento, melhora da pressão arterial, sangue mais fino,combate ao diabetes...

O chá tinha gosto de focaccia, aquele pão italiano achatado e furadinho (sem sal grosso e azeite, claro!), e dava pra encarar meio assim assim. Pô, se tem todos esses benefícios, qual o problema de beber uma focaccia?, ele pensava enquanto mandava o líquido quente goela adentro.

Bebeu tudinho, não sobrou nem uma gota na xícara, e ele ficou esperando o resultado. De cara, um arroto. Logo depois, outro. E mais outro. Opa, ele pensou, tá fazendo efeito digestivo! Não demorou muito e deu uma leve tonteira, uma embaçada na visão, um suor frio e o pavor de ter arriado demais a pressão. A coisa foi tão forte que o pobre não conseguiu sequer levantar do sofá, ficou ali apavorado, achando que ia infartar e coisa e tal. Pânico total. Teto preto. Vontade de gritar, de chorar, de chamar pela mãe, até que foi melhorando aos poucos.

Teve forças para levantar o pescoço e olhar pela varanda da sala a chuva que não parava de cair. O vira-latas aos seus pés o encarava como quem dizia: e aí, mané, deu onda? Esboçou um sorriso amarelo ao olhar pro cachorro, lembrando dos tempos em que era adolescente e experimentava uma coisa aqui e outra ali. Saiu do sofá ainda cambaleando e com a nítida impressão que tinha passado da idade pra encarar o que quer que fosse, até mesmo um inocente chazinho de alecrim.

Eu, hein... que onda?!

terça-feira, 26 de março de 2013

Agora folha

Os ventos de outono me espalharam feito eu fosse folha de amendoeira amarelada que cobre todo o chão das ruas da cidade quente. Não adiantou gritar que sou gente, que eu não queria, que eu não esperava. Foi um grito estridente, amedrontador. Voei solto pelo ar que sujava meu rosto de fumaça e pó e ninguém viu. Só eu mais uma vez sozinho me dei conta de que as estações vão e vêm e trazem todas as certezas de que o mundo é mesmo um palco único, um teatro absurdo, um drama, uma comédia perdida entre esquinas que se cruzam e é preciso rir de si mesmo. Não há marcações, não há direção. É tudo um foco de luz apenas. Apaga-se o dia ou acende-se a noite entre as brisas frescas que surgem do nada, enquanto a plateia assiste atenta ao que se passa aleatoriamente. Há o silêncio, a pausa no texto, a descoberta da personagem inquietante que eu represento sem saber. 

-Onde está você?

Quando o outro se aproxima é então que mais me apavora. O não saber de nada, o desconhecido que me incinera o peito e arde a sua chama certeira na cicatriz que me revela, a marca que fica em minha pele suada, carne crua de poros úmidos que ainda implora suas mãos. Tudo o que eu espero é a verdade escrita, falada pausadamente em meus ouvidos, porque de resto em minha mente é só confusão. E eu peço tanto por dias mais tranquilos, aguardo ansiosamente por sopros de felicidade, sonho com gestos mais simples, imploro sorrisos mais sinceros, abraços mais apertados. 

Saudade é o que me invade nessas horas.

Olho pela janela do meu quarto e minha rua está vazia. A vizinhança dorme o sono que eu não encontro e vejo gatos pardos tropeçando nos telhados das casas apagadas, insetos que insistem em se queimar na luz pálida do poste alto que ilumina o rastro do que fica daquele que já não passa, que jaz na hora exata em que o meu relógio para. Eu me dou conta que não preciso do tempo, que meus músculos já perderam o tônus, que meu coração bate desaceleradamente e eu nem sei bem ao certo o que deixei escorrer entre meus dedos há poucos minutos. Quisera eu ter certezas absolutas, encontrar as palavras certas, as frases mais bonitas que escrevi e não sei onde guardei o bilhete de amor que eu deveria entregar àquela que me fez companhia todos esses anos.

- Talvez ela nunca entenda, eu sei.

Ainda há pouco mesmo era verão e todo aquele calor e eu me refrescava nas águas claras da montanha entre pedras e riachos que me inundavam e massageavam meu corpo que continua o mesmo, muito embora eu agora seja outro. O outro que eu não conhecia muito bem, mas no fundo sabia que existia. Foi preciso a ventania e os ventos da nova estação que me espalharam feito eu fosse folha. Sequer entendi por que caí e me deixei levar. Sob o céu azul e cintilante deste outono que hoje se anuncia eu sou quase todo incertezas. 

- Onde será que eu, agora leve feito folha, vou parar?      

sexta-feira, 1 de março de 2013

Ele já sabia

Foi quando ele me disse que se sentia honrado em ter me conhecido que me dei conta do quão nobre era tudo o que eu estava vivenciando naqueles últimos dias. Tentei fazer com que ele entendesse que era como se meu peito se expandisse, como se minha caixa torácica tivesse se transformado num balão de gás, desses que você sopra até quase estourar. Confessei-lhe que desde aquele encontro eu vivia deixando-me corroer pela ansiedade, tinha como companheiras a saudade e uma agitação maior que as de costume. Que os dias me pareciam mais curtos, relógios de horas encolhidas, e que o silêncio fazia das minhas noites companhia. Fiz questão de dizer-lhe coisas que jamais disse a ninguém. Me expus. Me revelei. Me deixei desenhar por suas mãos e só então, depois, em seus traços, foi que me reconheci.

Era como seu eu não tivesse existido antes, como se meu passado pouco importasse, página em branco, zero à esquerda, como se nada que eu vivera até então tivesse muita importância. O que verdadeiramente valia era dali para frente, aquele mundo de possibilidades que se apresentava agora. Não que ele fosse obrigado a me fazer companhia eternamente, a caminhar comigo por todo o sempre, forçar juras infinitas. Muito pelo contrário. Tínhamos, isso sim, firmado um pacto de felicidade, e a liberdade era a condição maior para a expressão do que estávamos experimentando juntos nessa vida. Não sobrava tempo para cair em armadilhas, emaranhados, redutos de tristeza, eu sabia. Ele também me dizia que não era hora para se ter juízo e que era preciso um pouco mais de loucura e coragem para ser feliz. Aspectos que eu tinha de sobra.

Eu cheguei a contar-lhe que nós éramos um o rascunho do outro e que a sombra dos nossos corpos que surgia na parede daquele quarto mais parecia o contorno da luz refletida a preencher todos os espaços. Lembro de uma vez tê-lo escrito dizendo-lhe que o meu mundo ao lado dele parecia bem melhor. Era como se a armadura que vesti durante tantos anos se desmanchasse e trouxesse à tona meus conflitos mais internos, minhas dúvidas transformando-se em certezas, e o peso que eu outrora carregava se fizera leve como as palavras mais bonitas que saíam de sua boca em minha direção.

A surpresa me pegou naquela noite, confessei-lhe. Nunca acreditei nessas histórias que me contavam sobre tudo o que envolve o coração. Pensava eu e meus botões: comigo não! O meu coração batia tão sossegado, adormecido, já meio que acostumado com a anestesia contaminada do dia a dia, amnésia de um cotidiano sem graça, sem novidades, só a mesma ladainha, enquanto tudo em volta era solidão. Guardava meus versos polidos em fundos de gaveta, junto a outros escritos que eu já me esqueci. Eu tinha todas as minhas chaves, trancava muito bem todos os meus segredos, cultivava com apreço certos medos, manias, esquisitices, até que ele apareceu e me disse que se sentia honrado, como eu já contei aqui antes.

Porque ele já sabia o que era o amor. O meu acabava de tomar forma naquele exato instante.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Vem

Vem, me dá a sua mão.
Quero correr contigo as estradas do destino,
ver brotar todo o amor que eu plantei
ainda sementes nestas terras quando menino.

Vem comigo.
Eu lhe prometo ser fiel até o fim.
Vou lhe contar tantas histórias,
deixar você saber ainda mais de mim.

São tantas coisas que você nem imagina:
os lugares por onde andei,
as vezes que me perdi, os passos que dei em falso,
as outras tantas em que caí.

Conte-me as coisas que eu também não sei.
Entregue-me aquelas cartas amareladas,
leia-me seus versos guardados no fundo da gaveta.
Aqueles que jamais recebi.

Tenho mapas refletidos em meus olhos,
trago bússolas presas em minhas mãos.
Veja: meu rosto é marcado, meu sorriso é indiscreto.
Guardo em meu peito segredos que vão lhe tirar do chão.

Vem,
sem você não vou acertar o caminho.
Vou procurar por atalhos, inventar mil desculpas.
Vou querer sair cedo, cerrar as cortinas do meu palco vazio.





segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Inspiração

Quero escrever sobre o que há de mais bonito,
esquecer o amargo da vida,
respirar outros ares,
sair por aí.

Rabiscar nos muros frases coloridas,
alegrar a cidade cinza,
me perder de mim num instante
e neste mesmo instante me encontrar em você.

Quero riscar na sua pele as estrofes da minha poesia
e rimar no seu corpo toda minha inspiração.
Só assim eu criaria os mais belos versos, ritmados, perfeitos, impróprios,
obras-primas rascunhadas em suas curvas pelas minhas próprias mãos, eu diria.

Quero acelerar meus batimentos, potencializar seu coração,
deixar vir à tona um outro sentido, sentir correr o sangue nas suas veias,
ruborizar minha face alheia, mudar o rumo desta prosa,
caminhar lado a lado, esquecer que existe outro mundo lá fora.

Só então entoar meus textos aos quatro cantos,
ver o sol amarelado desaparecer no apagar das horas,
pintar um céu aquarelado de estrelas refletidas, uma a uma,
e zarpar sem receio no seu mar infinito que tanto me encanta.

Porque todo poeta é um barco à deriva.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Fresta

E quando o outro, ao invés de metade, é espelho?
O reflexo daquilo que ninguém nunca viu?
Aquilo que só você sabia,
os sinais que só você conhecia,
o seu verdadeiro eu?

E quando o outro é aquele que se revela,
feito luz por detrás de uma fresta,
uma brecha que se desfaz em clarão?

Ainda há pouco estava tudo mesmo tão escuro.

sábado, 12 de janeiro de 2013

'O biso é rei' ou "O conto atrasado de Natal"

Clima bom de Natal. Casa cheia. Bacalhoada pronta. Pernil desossado. Rabanadas fritas. Peru assando no forno. Criançada pra lá de animada com os presentes e os mais velhos pra lá de animados com o vinho transbordando nas taças. Até que mamãe chega na varanda onde estávamos eu e meus primos e dispara:

. Seu avô Saulo não está nada bem, Mauro.

- O que foi? É a pressão de novo?

- Não. É a cabeça. Está falando umas coisas sem sentido, vai lá dentro pra você ver.

Vô Saulo tem 92 anos, é o patriarca da família. Figura adorável, querido por todos. Excelente contador de histórias, bem humorado que só, dono de um arsenal de piadas impróprias e por isso mesmo divertido. Festa com o vô Saulo era alegria na certa. Naquele Natal não poderia ser diferente. Mas foi. Ou não, dependendo do ponto de vista.

Fui até a sala e ele estava lá, sentado na cadeira de balanço. Ao seu lado o filho mais velho, tio Lauro, irmão de mamãe, com cara de poucos amigos.

- O que é isso, papai? O senhor está ficando louco? Depois de velho deu para falar insanidades?

- O que foi, vô? - perguntei.

- Só porque eu falei do Zezinho o Lauro ficou assim, nervoso, me chamando de doido.

- E quem é Zezinho, vô?

- Vai continuar com isso, papai? Quer estragar o Natal? Porra, Mauro, não dá corda pro seu avô, faça-me o favor. Vamos parar por aqui.

- Zezinho foi o meu primeiro amor.

Silêncio sepulcral. Tio Lauro com olhos arregalados. Minha mãe de queixo caído. Tia Odete, mulher do tio Lauro, sem saber onde se enfiar e eu meio sem entender se era aquilo mesmo o que eu tinha ouvido.

- Quem? - continuei.

- O Zezinho lá de Santo Antônio de Pádua. Ninguém aqui conheceu. Era um menino bonito. Meu amigo.

- Amor de amigo, claro - eu disse, tentando aliviar a situação e segurar o riso ao mesmo tempo. Todo mundo aqui tem um amigo do peito, daquele que é quase irmão - eu completei.

- Sinto saudade dos abraços que ele me dava lá na beira do rio.

- Também abraço meus amigos, vô. Dá aqui um abraço - tentei amenizar.

- A gente dava uns beijos também.

- Porra, pai. Vai continuar com isso? - esbravejou tio Lauro.

- Deixa ele falar, tio Lauro. É normal que amigos se beijem.

- Na boca?

- Mas era na boca, vô?

- Era. De língua e tudo.

Silêncio. Climão.

Tio Lauro enfurecido de um lado, mamãe e tia Odete ruborizadas do outro, enquanto vô Saulo continuava na cadeira de balanço com sua taça de vinho pela metade e os olhos distantes, pensando no tal do Zezinho. Eu, que estou acostumado a ver de tudo um pouco nessa vida, confesso que também achei aquilo muito esquisito. Pô, vô Saulo sempre teve uma imagem de macho viril, gostava de esportes, foi jogador de futebol, porte atlético, um senhor bem apessoado. Pelas fotos nos álbuns da família dava pra ver que ele tinha sido um jovem bonitão, sempre vestido em ternos bem cortados, cabelos engomados, um advogado bem sucedido. Casou cedo com vó Margareth, teve dois filhos, cinco netos, três bisnetos. Teve o que todos sempre consideraram um casamento perfeito, sólido, feliz mesmo. Um exemplo.

- Mas eu gostava mesmo era do Zezinho. Nunca me esqueci dele.

- Tá caducando, só pode - tia Odete falou baixinho, quase que sussurrando.

- Será que é Alzheimer? - perguntou mamãe, tensa que só ela.

- É falta de vergonha mesmo - disse tio Lauro.

A esta atura os demais primos e primas já estavam todos na sala sem entender muito bem o que estava acontecendo. Uns tentavam distrair as crianças, já com fome, e outros se metiam na conversa.

- Quem é Zezinho? - perguntou Cristina, a neta mais nova.

- Acho que era um namorado do vovô - disse Paulo, o primo mais velho.

- Tá de sacanagem, né? Piada, vô?

- Não, não é piada não. Zezinho foi meu primeiro amor. A gente andava muito por aqueles matos lá na roça. Eu tinha 14 anos e ele tinha 15. Bonito que só, vocês tinham que ver.

- Tô bege, vô - disse Cristina, a neta e minha prima mais nova, enquanto tio Lauro ficava cada vez mais roxo de raiva.

- Gente, o babado é fortíssimo - falou Paulo, o neto mais velho, meio que no deboche, meio que soltando a franga, vai saber.

- Que saudade do Zezinho. Ô, tempo bom aquele!

- Mas rolou sexo, vô? - tomei coragem e perguntei.

- Não. Só carinho.

- Perdi a fome - disparou tio Lauro. Não quero mais saber de pernil, bacalhau, rabanada, porra nenhuma. Pra mim chega. Acabou o Natal.

- Quer uma água com açúcar, um lexotan? - perguntou tia Odete que, sem obter resposta, engoliu o comprimido e a água açucarada de um gole só.

- E o peru? - perguntou vô Saulo.

- O meu está aqui, papai. O do senhor está aí. E ai de quem perguntar pelo peru do Zezinho! Eu não quero mais saber. Vou pro meu quarto. Me deem licença. 

Silêncio.

Thiago, o bisneto de apenas 6 anos, que até então brincava no seu tablet, vira pra Júlia, a bisneta de 3 anos e diz muito sério:

- O biso é gay.

Júlia, que mal sabia falar, começa a repetir aos quatro cantos:

- O biso é rei! O biso é rei!

Clima bom de Natal.