segunda-feira, 5 de março de 2018

Dá aqui um abraço

Era fim de tarde, tinha chovido demais, nuvens cinzas num céu carregado de relâmpagos, asfalto molhado, pistas derrapando, motoristas desatentos, imprudentes, um perigo constante nessa cidade sem esquinas. Ele já havia caminhado não se sabe por quantos quilômetros nem por quanto tempo, muito menos por onde. Ele não se importava com a chuva, que nesta época do ano vem aguar o Cerrado. Ele não se importava com a lama, que vem da terra vermelha e molhada que tingia seus pés. Ele sequer falava.

Ele apenas caminhava.

Por horas, dias, meses, uma vida inteira se preciso fosse. Ele seguia em silêncio. Olhava curioso para fora, prestava muita atenção no que vinha de dentro. Havia o ritmo, ele sabia. Um compasso suave, uma mente mais quieta e outras tantas lições para que ele pudesse aprender a viver sozinho e a não reclamar mais de nada. Não é de hoje que ele só olhava para frente, traçava o caminho, pisando descalço, aquelas mesmas músicas na playlist, os livros de sempre na mochila, outros sonhos em mente e lá adiante, por onde quer que ele fosse, o destino.

Eu não lembro muito bem onde ele estava quando encontrou o outro. Fazia tempo que não se falavam, que não se viam. Era como se não se conhecessem mais. Estavam ambos muito diferentes. Sei que ele seguia em frente, como de praxe, e o outro ali, parado, sem esperar nada nem ninguém, um álbum cheio de recortes, poucas histórias, uma vida distante, planos meio que esparramados pelo chão, numa confusão latente que eu confesso que nunca entendi. Era tudo muito estranho, mas ao mesmo tempo envolvente. Talvez por serem tão diferentes, não sei, pareciam se entender e saber o que cada um necessitava. Foi o que eu pude observar naquele fim de tarde, já quase noite, quando eles finalmente se encontraram depois de toda aquela chuva.

Eles se olharam.

Custaram um pouco a se falar. Lembro que foi ele quem quebrou o gelo e perguntou se estava tudo bem, por onde ele havia andado todo aquele tempo, que ele sentia saudades, mas que a vida era feito um rio caudaloso, desses que a correnteza te levava e você ia, apenas ia, mesmo sem saber onde aquele rio vai desaguar. O outro carregava uma certa tensão, tinha um jeito sério, um olhar tristonho, perdido. Respondeu quase que num sussurro que estava precisando chorar, que tinha um monte de coisas engasgadas, um peso que não era dele, um fardo que o deixava preso nesse chão e que seu terapeuta ultimamente tem sido cruel e que nas últimas sessões de análise tem apanhado sem dó nem piedade. Era preciso crescer, ele respondeu. Mas o outro parecia não dar atenção.

Mesmo assim, ele contou ao outro que fazia tempo que vinha andando por aí, que passou por poucas e boas, conheceu tantos lugares, conversou com tanta gente, amou, traiu, iludiu, se deixou iludir, pensou já ter encontrado a verdade, perdeu as máscaras, criou armaduras, não deixou endurecer seu coração, não perdeu a ternura, disse que quer amar de novo, que vinha esbarrando cada vez mais vezes com a felicidade e que a liberdade era o que deixava mais confiante na vida. O outro ouvia aquilo tudo em silêncio, sorvia cada palavra, sorria por dentro, se soltava aos poucos e deixava revelar um brilho manso no olhar. O outro muitas vezes não sabia o que falar. Não estava acostumado, não gostava de gente, achava vantagem ter poucos amigos. Vai ver é vantagem mesmo e eu não sei. Ele também parecia não saber, mas o outro estava acostumado assim. Ele gostava do outro. O outro dizia que também gostava dele. Eles eram amigos.

- Dá aqui um abraço.

(E isso naquele momento bastava)

quinta-feira, 1 de março de 2018

Pele precipício

Hoje sou janela que abre pra dentro e pra fora.
Parapeito a debruçar sobre mim mesmo
até perder-me no horizonte, essa linha tênue,
que me divide entre o raso e o profundo,
entre o claro e o escuro,
a razão e o coração,
o sim e o não,
minhas luzes, tantas sombras.

Carrego tudo aqui comigo.

Ganhei de presente cenas do céu mais bonito,
da lua cheia iluminando estrelas azuis
e a constelação de escorpião no centro do meu país,
bem no alto da minha cabeça,
fazendo tudo ao redor girar.

Sim, eu sou janela que um vento quente e forte cisma em querer fechar.

Porém, meus olhos, esses sempre bem abertos,
veem que lá fora já se despede a madrugada, essa insone inveterada.
Ela desconfia que trago dentro do peito a esperança,
feito catarse refletida nos primeiros raios de sol
de outras manhãs de amor infinito a me tatuar.

Ainda não te contei do inferno a queimar minha pele precipício.

Nem do salto que eu dei.
Nem do abismo em que eu mergulhei.
Nem do medo que eu não senti.
Não precisa.

Isso é só o início.