terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Vergonha

Desde aquela tarde em que os termômetros marcavam mais um recorde de altas temperaturas na cidade, era como se ao redor dele tudo fosse se distanciando, perdendo o foco, saindo do seu campo de visão. Gradativamente. Melhor assim.

Aquele verão havia sido de um calor apocalíptico, pele constantemente suada, céu azul sem nuvens, sem água nas torneiras, sem trens, sem respeito algum. O trânsito ultrapassava os limites do suportável, infernal. A população inteira parecia estar vivendo à beira do caos, o IPTU, o IPVA, outras tantas contas a pagar e aquelas pessoas todas nas ruas, nas redes, tantas vozes estridentes e a porrada comendo solta em plena luz do dia.

Perderam a noção, ele dizia, ao mesmo tempo em que, pela tela plana da TV, ainda enxergava mais um homem morrer na praça, antes mesmo do sol se pôr.

O corpo daquele trabalhador havia tombado, a cabeça explodido, correria ao seu lado, imagina você a confusão que se formou. Já temos um mártir, anunciavam alguns. Foi assassinato, berravam outros tantos. Imprensa, polícia, vândalos, deputados, manifestantes, black blocs, milícia. Debates acalorados no palanque virtual. Um diz que é o certo. O outro afirma que nunca esteve errado. De ambos os lados, ânimos exaltados. Eles gritam estridentemente e ninguém mais pode se fazer de surdo.

No fundo ele tinha certeza do por quê daquilo tudo: nunca fizeram nada. Tal e qual um filho recém-parido que é abandonado na roda da sorte, o cidadão daquelas bandas era tão desassistido como um órfão esquecido no dormitório úmido do asilo junto a tantos outros iguais, largados ao Deus dará. Ele também se sentia sozinho.

O estado havia sido omisso desde os primórdios, as autoridades só enxergavam a si próprios, se escondiam nos palácios com seus assessores bem remunerados, covardes como sempre, enquanto ordens extremas liberavam o braço armado em cima de quem quer que fosse. O que começou pacífico, plural, espontâneo, bonito até, transformou-se numa luta desigual, ele sabia.

Cidades no país inteiro viraram palco de batalhas sangrentas como nunca antes na história desse país. Manifestante virou vândalo. Protesto virou baderna. Os ninjas quase viraram imprensa. A imprensa virou chacota. Enquanto os telejornais por um momento tentavam esconder, a internet mostrava tudo a quem quisesse ver: fogo, corre-corre, gás lacrimogêneo, jornalistas acuados na tentativa de cumprir seu dever, jovens machucados e a polícia agindo como se estivesse à caça de bandidos.

E ele então não esquecia que meses antes a mesma polícia deixava traficantes escaparem aos olhos de todos, mas agora, por todos os cantos, de todos os lados, era só tiro, porrada e bomba. Você precisava ver.

Dias difíceis, ele já suspeitava. Como o carro que derrapa na curva, a parábola que não tangencia o arco, o circo pegando fogo e tudo mais fora do controle. Maniqueísmos explícitos, partidos políticos chafurdados na lama, radicais inflamados, anarquistas desinformados, fascistas facínoras, psicopatas infiltrados, coxinhas bem arrumados, que tais, todos deixavam cair suas máscaras, as verdades descortinadas, preconceitos nus. Vergonha ele sentia.

Eu também sentia. Muito antes daquela tarde quente.