quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Conforme a música

O bom é quando a vida é transparente
e sem os véus se revela
na luz que encontra brechas na janela
e no ar que instintivamente deixo entrar em meus pulmões.

Porque às vezes fica tudo nebuloso
e vem um peso enorme pressionar o peito,
como se quisesse dizer: não tem jeito,
caminhos, encruzilhadas, nós.

 Algumas pessoas se arriscam e dançam a ciranda lá fora
e do lado de cá outros não sabem sequer o que eu sei.
A vida é ritmo acelerado, é música em descompasso,
instrumento desafinado cujo som eu sempre gostei.

É preciso aprender com as partituras.

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Parágrafo curto

Resiste em mim um fio tênue da lembrança que insiste em rasgar meu corpo inteiro, feito lâmina afiada que deixa na pele cicatrizes e uma certa lucidez. O que a loucura quis fazer de mim cabe apenas em breve memória, das mais remotas, parágrafo curto de uma mesma história que eu não esqueci. Ainda sei de cor todas as frases que me cabem neste texto.

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Falta um mês

Tarde tensa na repartição, como de costume. O colega ao lado não consegue terminar o relatório, mas também não pede ajuda. A demanda da sucursal de Brasília é grande, o diretor-financeiro do grupo resolveu estender sua viagem ao exterior e esqueceu das pendências, o gerente da matriz parece ter surtado com tantos pedidos de última hora e até mesmo dona Lurdes, a moça da faxina, perdeu o bom humor habitual. Vai ver é a lua fora de curso, diria uma amiga, ligada nesse papo de astrologia e tal.

Eu consigo me manter relativamente equilibrado em meio àquele turbilhão de problemas. Minhas tarefas estão todas sob controle, os contratos que deveria assinar eu assinei, liguei para quem deveria ligar, fiz minhas notificações, conferi. Tudo certo. Cheguei até mesmo a me oferecer para ajudar ao colega que estava enrolado com tantos afazeres, mas recebi um 'não, obrigado' como resposta. Olhei para o relógio do meu monitor, que marcava cinco e trinta e três. Dali até que meu gerente resolvesse sentar comigo para analisar minha parte no processo, seriam horas intermináveis. Deu um certo desânimo. Foi quando levantei para dar uma mijada e garantir o bom funcionamento dos meus rins, tomar um café, fumar um cigarro no estacionamento e dar uma relaxada daquilo tudo. Do banheiro eu ouvia todo o falatório que vinha das salas ao lado e tive a impressão de ter escutado meu gerente gritar com o estagiário. Eu nunca gostei muito de estagiários, confesso, mas em compensação, nunca fui capaz de destratar nenhum deles. Na verdade isso tem a ver com o fato de eu não conseguir dividir tarefas. Além do mais, mesmo já tendo servido ao exército, não tenho voz de comando. Acabo resolvendo tudo sozinho. Meu terapeuta me sacaneia dizendo que eu tenho potencial para virar um eremita. Vai ver ele está certo.

Termino de me aliviar no mictório repleto de bolinhas de naftalina, lavo as mãos num fio tímido de água, me olho no espelho, cansado, ajeito o pouco que que me resta de cabelo e saio dali direto para a máquina de café. Quero um capuccino. Custa setenta e cinco centavos. Se fosse um expresso ou um longo eu não pagaria nada, mas o capuccino a firma não paga. Tiro do bolso uma moeda de um real, coloco na máquina, aperto o botão do danado do capuccino, a máquina começa a preparar meu pedido - que em segundos fica pronto - mas não me dá meu troco. Foda-se. Pego meu copo de plástico cheio daquela bebida quente e perfumada e desço as escadas para fumar meu Marlboro. Vício danado esse.

Lá embaixo, no estacionamento, um entra e sai confuso dos caminhões com as entregas que chegam de todo o país, o papo furado dos seguranças, o mau humor dos motoristas e um e outro colega que, como eu, não consegue abandonar o tabaco. Lauro é um deles. Fazia tempo que não esbarrava com ele. Das últimas vezes que nos encontramos eu não fui muito receptivo e fiquei com a impressão de tê-lo magoado. Lauro era um rapaz alto, magro feito um vara pau, ombros retraídos, pele excessivamente branca, óculos quadrados que lhe acentuavam ainda mais a aparência sensível, ingênua até. Dizia já ter sofrido muito por conta de uma timidez mórbida que o acompanhou durante toda a infância e boa parte da adolescência, mas agora estava curado. De origem humilde lá das bandas de Quintino, subúrbio da Central, onde sua família tinha um armazém. O pai herdara o negócio do avô, um português corpulento que jamais permitira que o neto ficasse atrás do balcão. Esse menino tem mais é que estudar, tirar um diploma, ser alguém na vida, o velho dizia. Lauro, que sempre gostou de ler e escrevia corretamente, optou pela advocacia e hoje, ao invés de vender as mercadorias que o avô vendia e que o pai seguiu vendendo, veste ternos e anda engravatado por aí, resolvendo pepinos e abacaxis dos outros. Assim que me viu veio em minha direção.

- Falta um mês, não é? - ele disse.

- Para o Natal? - eu perguntei.

- Não. Para o fim do mundo. Hoje é dia 21 de novembro e, conforme o calendário dos maias, dia 21 de dezembro acaba isso tudo.

- E você acredita nisso?

- Não. Até porque, para mim, o mundo já era faz tempo. Não posso acreditar no que estamos vivendo. Não foi isso o que sonhei pra mim e acho que nem ninguém sonhou algo tão absurdo - ele desembestou a falar, o que me fez duvidar se ele realmente chegou a sofrer daquela timidez mórbida que um dia me contou.

Lauro parecia calmo e discursava a respeito da nossa realidade sem demonstrar revolta. Era apenas uma constatação dos dias que vivíamos. Um reflexo de tudo que se passava ao nosso redor, talvez, mas que ele, com tamanha sensibilidade, devia captar com mais facilidade. Meu terapeuta volta e meia me diz que a grande maioria das pessoas apenas vive por instinto. Respira, come e caga sem pensar e sem enxergar muito mais do que se passa além de nossos limites. Ele me diz também que estas pessoas estão presas em suas vontades, vaidades incontroláveis, e não veem um palmo à frente do nariz. Talvez eu me enquadre nessa categoria, não sei.  Faz tempo já que eu apenas vivo um dia atrás do outro, sem me preocupar com o que acontece ao meu redor. Tenho um ego muito grande, sou egoísta por natureza, costumo dizer por aí que sou autossuficiente, que eu me basto e pronto. Não é verdade. No fundo, assim como Lauro, eu também sofria. Mas por defesa, sei lá, eu procurava disfarçar.

Lauro não disfarçava o que sentia. E cada vez mais fazia questão de demonstrar sua insatisfação e suas angústias fosse com quem fosse. Falava o que lhe vinha à cabeça. Muitas vezes parecia desequilibrado, muito embora tudo o que falasse fosse pertinente. Ultimamente estava cansado das guerras que entristecem e envergonham nossa raça. Dizia que não podia mais suportar os mandos e desmandos dos governantes, os aumentos absurdos, os impostos inexplicáveis, a corrupção que corria cada vez mais solta, a exploração do trabalhador, que vivíamos todos esmagados num contexto social aquém do que merecíamos, que a violência era tratada agora como um produto de marketing político, que não acreditava na humanidade, que não havia luz no fim do túnel, que a crise econômica era uma bola de neve, que nosso país vivia uma mentira e que a hipocrisia havia contaminado tudo e mais um monte de absurdos indiscutíveis.

- Eu também sou hipócrita - ele admitiu, enquanto eu dava o último trago no meu cigarro.

Permaneci calado, ouvindo tudo aquilo. Ele continuou afirmando que estávamos todos contaminados, cegos, tontos, caminhando sem rumo, feito máquinas sem controle, robotizados. Por um instante eu fui obrigado a pensar naquilo tudo e me dei conta que ele talvez estivesse certo e que se o mundo acabasse dali a um mês eu seria apenas mais um a virar poeira, assim como ele, mas só que ele tinha algumas contestações que o faziam diferente de mim e de todos os demais. Me deu uma sensação de vazio, de que até hoje eu não fizera nada, como se eu tivesse sucumbido e entrado naquela roda viva que me deixava inerte e inútil. O que eu poderia ter sido se perdeu e eu nem soube onde foi que isso se deu. Me subiu um frio na espinha. Apaguei o meu cigarro ali mesmo no chão do estacionamento, olhei para ele meio sem graça e admiti que tinha medo,  que eu também gostaria de viver num mundo diferente, mas que era daquele modo rude que a vida se apresentava para mim e para ele e que, sendo assim, era preciso aceitar o que o destino nos reservava. Disse essas coisas todas sem muita convicção e me despedi dele sem confessar que eu também era um hipócrita, um covarde, que deixei alguns amores escaparem nesta vida, deixei de agradecer a quem devia, que esqueci de alguns amigos e parei de escrever poesias para encarar um mundo que se mostrava a cada dia mais cruel.

Subi as escadas devagar. Já passava das seis. Lá em cima, o caos. E nem era o fim do mundo ainda.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Líquido viscoso

Eu te daria um beijo na boca neste exato momento.

Daqueles que fazem perder o ar, o coração bater em disparada e tudo ao redor desaparecer. Depois eu apertaria mais seu corpo contra o meu, pegaria firme em sua nuca, roçaria minha barba em seu pescoço e teu dorso encontraria o que de mim jamais se perdeu. Seus mamilos rosados, duros, grandes, entre meus dedos tão rijos quanto o sexo que lateja em minha calça, e a minha mão, que ora desliza no toque suave da tua pele úmida, atraída pelo cheiro bom que exala enquanto alisa o que se esconde no vão de suas pernas.

É o que eu quero.

Eu te beijaria toda, nua, nesta noite clara onde a lua, tímida, seria só minha e sua. Levantaria sua blusa azul de seda, abriria seu sutiã de nobre renda e nas curvas dos teus seios fartos eu me perderia por dias e dias. Eu te apreciaria feito obra das mais valiosas, dessas que raramente vemos em exposição. Eu te usaria, abusaria de você, gastaria minha saliva em tuas ancas, misturaria o teu suor no meu, o teu gosto em minha boca, eu tentando entrar em você, você sem se importar com meu corpo pesando sobre o seu.

Eu juro.

Eu te deixaria completamente louca, vermelha de sangue jorrando em suas veias da face desavergonhada, entregue, puta, pequenos lábios inchados com o beijo sutil e meus cotovelos apoiados no encosto de couro cru no meio daquela sala vazia. Olharia para sua bunda empinada, redonda, lisa, linda, apontando para mim enquanto você se abriria suavemente a se mostrar por trás. Um tapa. Você pediria mais. Eu te obedeceria, satisfaria seus desejos mais mundanos, realizaria meus fetiches, te revelaria muitas das minhas taras.

Você imploraria.

Então eu te penetraria e te preencheria e seus músculos mais íntimos se contrairiam de prazer e me acolheriam, me sugariam ferozmente cada vez mais para dentro, bem no fundo, feito animal faminto, o cio, num vai e vem sem fim, até que eu me perdesse de mim em você.

Seríamos apenas líquido viscoso.



 

terça-feira, 13 de novembro de 2012

A dúvida

Às vezes é necessário que a poesia venha como um grito histérico de uma voz aguda há muito embargada que manda para fora aquilo que não nos serve mais.
É feito a água que transborda no copo translúcido - e até outrora sujo - apoiado sobre a mesa do centro da sala vazia e que escorre sem direção pelo chão frio e liso até molhar de leve a ponta dos nossos pés. 
É quando todas as luzes se acendem do nada e interrompem o exercício discreto e silencioso da escuridão, encontrando o que até então estava timidamente guardado, escondido, trancafiado a sete chaves presas à porta pesada de madeira nobre e talhada.
Lá no fundo a poeira, jogada displicentemente sob os tapetes desenhados e ásperos do tempo onde pisamos e sequer percebemos que os pisamos porque raramente nos damos conta de onde vamos ou o que verdadeiramente queremos e nos tornamos.
É só o pó, palavra, vento, verso, refrão, sem nexo, algum sexo, dia sim, outro não, quem sabe talvez.
Expõe-se assim a dúvida: é tudo em vão?  

domingo, 4 de novembro de 2012

Aquele que se fez de mudo

Não venha você mais uma vez tentar me fazer falar. Nem mesmo se eu conseguisse soltar minhas mordaças eu falaria. Optei por permanecer calado até o fim dos meus dias já que os demais não iam mesmo me ouvir. Nem a mim, nem a você, nem a ninguém. Não que eles tenham sido acometidos por alguma otite ou meningite ou qualquer outra desgraça terminada com o sufixo ite, e tenham perdido a audição. De jeito nenhum.

Sob o ponto de vista clínico, são todos saudáveis, diria o plantonista da emergência de uma unidade de pronto atendimento qualquer. O que talvez o tal plantonista não soubesse, o que o doutorzinho recém-formado sequer desconfiasse, é que todos ali são surdos em potencial e, portanto, não lhe dariam ouvidos.

O som da sirene atormentando lá fora, as buzinas incessantes, os gritos das crianças no pilotis e as armas de fogo comendo soltas nas ruas da maior cidade do país são apenas ruídos, sujeira urbana, o caos anunciando que a vida é um eterno conflito enquanto um cartaz entra em quadro e eu leio que a paz que eu procuro está no silêncio que eu não faço. Então, não venha você me fazer falar porque eu já avisei com toda a antecedência devida que estou mudo. Você me parece que não escuta muito bem.

Lembra que da última vez eu lhe disse que uma infinidade deles, além de surdos, têm graves problemas de visão e não enxergam além do espelho, não veem um palmo a frente, não olham para fora, perdem o foco, a clareza e o resto que sobra é só escuridão? Vivem numa solidão tão extrema que chega a sufocar, porque por mais que saibam se expressar, só conseguem falar de si mesmos, não entendendo muito bem o que se passa ao seu redor. A humanidade é mesmo um sem-número de ilhas.

Você sabe que eles falam demais e que toda esta verborragia na sua maioria das vezes não quer dizer nada, é tudo eco, apenas mais um texto mal escrito, umas frases sem significado, uma lição comum, de gente ordinária, sem papas na língua, pensamento acelerado, uísque, poder, luxúria, dinheiro, pó. Dá um vazio encontrar com gente assim.

Acredito que se você viesse conversar comigo numa outra ocasião eu sequer lhe daria atenção. Seria incapaz de ouvir toda aquela ladainha interminável de sempre, da qual eu já estou cansado de saber que poucas coisas mudaram desde a última vez que você me interrompeu no refeitório, sentando ao meu lado sem pedir licença e derramando as mesmas histórias escabrosas sobre a mesa, atrapalhando meu ritual de almoço solitário e por si só silencioso.

Assim como meu falecido pai, nunca gostei de falatório na hora das refeições. Era uma hora sagrada, ele dizia. Além do mais, hoje em dia eu procuro evitar contato mais próximo com quem quer que seja, não revelo a ninguém os meus problemas, não deixo transparecer minhas angústias, conservo minha intimidade. Há anos tento me acostumar a conversar somente o indispensável - sem deixar de lado a polidez -, que é para não parecer mal educado. Mas confesso que cansei.

Eu ando mesmo distraído, desatento, com meus reflexos mais lentos a cada dia, como se o foco fosse se desfazendo em plano sequência ali na tela imaginária que volta e meia se forma à minha frente e tudo o que resta de mim é um borrão, um pensamento inerte, alheio, sem direção.

Eu procuro não pensar muito no que pode estar acontecendo ao meu redor ou no que está me deixando deste ou daquele modo. Por mais que eu revire meus arquivos, não encontro a razão para que tudo se dissipe deste jeito. Confesso agora que não tenho noção de quanto tempo já me sinto assim. Talvez por eu me achar tão autossuficiente, tão dono do meu nariz, tão bem sucedido profissionalmente, tão egocêntrico e, por isso mesmo, tão diferente de tudo e de todos, me fecho agora numa redoma e não me importo se dela eu nunca mais sair. Porque eu fui único enquanto os demais eram só coadjuvantes, figuração sem a menor importância nesta história.

Não se assuste. Mande o pudor às favas e não venha tentar me revelar seu lado frágil. Também eu estou meio surdo e não sei se quero ouvir o que você tem a me dizer. Prefiro mastigar a carne mal passada que resta em minha boca cheia de dentes enquanto meus olhos fitam os seus, castigados pela vida e que há tempos eu conhecia, mas jamais me deixei enxergar de verdade.

Não que eu seja suscetível ao sofrimento. Meu ou seu. Muito pelo contrário. Há anos eu teria me ausentado e me encolhido numa bolha frágil e nada nem ninguém me faria ter uma outra visão. Eu também estaria cego e talvez por isso não seria capaz de perceber lágrimas nos meus olhos, já que tudo seria tão surreal para mim: um ser sempre tão duro, tão frio, que vive despertando inquietantemente com qualquer burburinho ao romper das manhãs.

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Quando o verbo escorre

Escrevo forte porque me preciso assim.
Soubesse eu verbalizar a frase precisa,
a palavra exata, a oração e o sujeito,
entre graves e agudos, eu me surpreenderia.

Escrevo por sorte.
Não fosse isso eu seria praticamente mudo,
alheio a tudo, o ser mais solitário do mundo.
Enquanto outros tantos falam demais.

Porque eu não sei me expressar tão bem.
Antes, talvez, fosse necessário aprender a gritar,
subir o tom, elevar a voz e me fazer ouvir.
É que eles falam muito, porém são surdos.

Ainda bem que não sou cego.
Enxergo tão perfeitamente
que em mim reflete
o que neles se esconde.

É quando então eu me revelo em versos,
transformo tudo em prosa,
o céu assume tons de cinza e rosa
e escorre a tinta sobre o meu papel.