quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

Poesia perdida

Parte teu peito em pedaços e joga teus restos nas margens desse rio de águas profundas em que te banhas.

Nada contra as correntes, deixa por lá esse amargo que ainda habita na tua boca quando fala, quando afoga, quando traga e vem me dar um beijo.

Mata esse desejo.

Solta esse teu corpo tão fechado em cima do meu corpo tão cansado e vem com calma.

Deságua tua alma em meus abraços e confia nos meus olhos de farol.

Vem ser meu guia na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, vem correr perigo, vem ficar comigo.

Vem.


quinta-feira, 12 de novembro de 2020

Tudo vai mudar

Dia desses li num post de uma amiga numa dessas redes sociais algo a respeito de uma certa ausência criativa que muitas vezes acomete quem tem o hábito de escrever. Confesso que quando essa pandemia de coronavírus começou eu até pensei que fosse baixar o santo escrevinhador em mim, um caboclo contador de boas histórias, mas me enganei. Talvez o fato de eu ter ficado um bom tempo isolado, sem encontrar quase ninguém nessa Brasília já tão árida, só eu comigo mesmo, tenha servido para me mostrar que eu não sou um bom laboratório para quem, como eu, gosta de brincar com as palavras vez ou outra. Não que eu não seja interessante, isso eu sei que eu sou. E não há nada de soberba nessa afirmação. É que eu sou um cara confuso, cheio de nuances, trago comigo as percepções únicas de uma vida que desde cedo vejo passar feito um filme diante dos meus olhos, lentes miúdas, muitas vezes tão sensíveis, e então, crio cenas ao meu redor.

E eu acho isso muito interessante.

Escrevi uns dois ou três pequenos poemas nesses meses, é verdade. Esses poemas por aí que eu escrevo desde sempre. Eu ainda era um menino e, quisesse ou não, já criava algumas estrofes mal estruturadas na minha cabeça e corria para botar tudo no papel. Hoje, um pouco mais crescidinho que aquele menino, descobri que a matéria-prima do poema sou eu conversando com os outros que só eu sei que habitam em mim. Para eu parir um poema é só eu navegar para dentro desse mar de versos, rimas, dores e amores desses eus que seguem a minha correnteza, nesse eu oceano, e nadar com eles sem perder o fôlego, até a minha arrebentação.

Palavras, são tantas, a me nausear.

Não fiz amigos novos nesse ano esquisito. Digo amigos físicos mesmo, desses que a gente olha no olho, abraça quando é de abraço e beija quando é de beijo. Aqui em Brasília eu tenho uns poucos e bons, minhas referências afetivas do Cerrado, que estiveram por perto nesses dias estranhos e que estarão para sempre por perto, mesmo que estejamos longe. Por outro lado, fiz alguns amigos virtuais, desses que a gente nunca viu ao vivo e a cores, mas que acabam sendo amigos também devido a esses Facebooks e Instagrams da vida, que estreitam muitos laços e fazem com que a gente se sinta íntimo de uma pessoa só porque ela publica determinadas coisas que vão ao encontro do que você pensa e faz e gosta. Então, a gente se aproxima e se atrai e se fala de vez em quando e se abre e se descobre um pouco naquele outro que está longe, naquele outro que a gente nunca viu, mas que também já é amigo, claro.  

Eu gosto muito disso.

No meu último dia no Rio de Janeiro, dois dias antes de tudo fechar por conta desse vírus que está aí, acordei cedo porque precisava voltar para Brasília e lembro que ao levantar da cama uma voz falou no meu ouvido que minha vida ia mudar. É bastante esquizofrênico, eu sei, mas eu ouvi a voz me dizer com todas as letras que minha vida ia mudar, acredite. Na hora não dei atenção, mas os dias foram passando e aquela frase passava a fazer todo sentido. Em menos de quinze dias eu mudei de apartamento. Saí de perto do lago, vim para o plano. Saí de um flat sem fogão e vim para um apartamento de verdade. Deixei a piscina para trás e me encontrei no pedal. Quase não ando mais de carro, tenho andado muito a pé. Nunca mais apareci para trabalhar no escritório, resolvo tudo em casa, na maioria das vezes pelo meu celular mesmo. Meus ternos estão cheirando a naftalina, minhas calças estão pensando que se aposentaram, meus sapatos já nem lembram mais de mim.

E eu não acho isso ruim.

Hoje, um pouco antes de eu resolver sentar para escrever esses poucos parágrafos aqui, uma dessas amigas virtuais que fiz esse ano me mandou uma mensagem dizendo que com certeza ela vai sair desse ano uma outra pessoa. Eu respondi que está todo mundo tendo de lidar com uma questão muito importante nas suas vidas e que quem tem um mínimo de sensibilidade vai sair diferente disso tudo. Ela me disse que agora sabe que não tem controle de nada. Eu disse que não adianta planejar nada porque a vida vem e te mostra que quem manda é ela e pronto.

Ponto final.

terça-feira, 1 de setembro de 2020

É preciso sonhar

Há meses ele não sonhava. Talvez porque de olhos abertos o mundo já se apresentava por demais surreal, convenhamos. O que outrora soprava feito brisa, hoje irrompe em vendaval, essa é que é a verdade. Ele mostrava-se surpreso, pois ninguém esperava que fosse acontecer tudo aquilo em tão breve espaço de tempo, toda essa mudança repentina, antigos elos se rompendo e aquele ego frágil ali, ferido, perdendo o controle de tudo e as máscaras caindo ao seu redor. As imagens vinham como náuseas naquela sala onde ele sufocava entre os livros espalhados pelo chão de tábua corrida, deitado num sofá de couro velho e ressecado, desconfortável como a vida de fato é. Ele sempre esteve ali sozinho e isso era o que mais lhe machucava e destruía tudo por dentro. Lá fora, só o silêncio constrangedor dos que não enxergam nada além do próprio nariz. 

Não faz tanto tempo assim, talvez dois ou três anos, era noite e suas mãos seguraram e apoiaram outras mãos, um sentimento forte, arrebatador, olhares cúmplices, luxúria, pecados da carne que ele insistia em chamar de amor. Fez de tudo para que aquele sentimento não se esvaísse, não fosse apenas mais um, não escorresse pelo ralo e fosse embora até nunca mais. Ao contrário, cultivava cada pequeno gesto, cada palavra bonita, cada verso, rima, canção. Algumas coisas, então, começaram a fazer sentido: o que ele vivera até ali, os laços cada vez mais estreitos, portas entreabertas, histórias mal contadas, luzes e sombras entre as frestas, tantos segredos, tanto prazer e tanta dor. O resto era música em seus ouvidos e o outro sempre a lhe dizer que não.

Não era a hora, era muito cedo, ele não queria e não adiantava insistir. A vida já havia lhe mostrado um outro lado que talvez fosse melhor esquecer, deixar no passado, não tinha o porquê reviver. Bom seria se tudo pudesse ser apagado, tal e qual aquele filme de uma mente sem lembranças, deletar todos os arquivos, passar uma borracha e não deixar mais ninguém se aproximar, só relações fortuitas mesmo, sem envolvimento, sem carinho, rituais mecânicos, desprovidos de qualquer sentimento, o falo duro, um gozo e nada mais. E o outro preso na armadilha, sem conseguir se desvencilhar, fugir, correr, tentando sobreviver, respirar um pouco, encontrar uma saída. 

Eram dias de muita angústia aqueles. Do céu haviam sumido as estrelas e em nossos pés o barro seco a levantar poeira. Calor. O suor escorrendo enquanto os barcos à deriva no meu peito oceano, coração pulsando o mar e meu eu submerso, inquieto, curioso, com tudo aquilo ancorado dentro de mim. Porque amar é verbo intransitivo, eu sei. Mas nem todo mundo sabe. 

(eu preciso voltar a sonhar) 

quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Tomado de assalto

Entre tantas amarras, entre tantas desculpas, tamanha confusão, 


aquele outro lhe dizendo não 


e o pranto involuntário da dor arrebatando o mundo dentro do seu peito-solidão. 


(roubaram-lhe a vontade de amar) 

quarta-feira, 1 de julho de 2020

Hoje eu sei - ou delírios da pandemia I

Os ipês haviam florescido antes da hora e a alegria que eles trouxeram fazia tempos eu não percebia ali no coração-berçário do mundo. As ruas andavam vazias, ninguém encontrava ninguém. O silêncio predominava e a secura em minha garganta abafava ainda mais a minha voz que aqui jaz tão tímida.

Na noite passada ouvi passos apressados bem debaixo da minha janela. Tentei correr pra ver quem era, mas nem sombra restava. Só o vento trazendo a frente fria e arrastando as folhas das árvores no asfalto, feito coreografia de um balé qualquer. No céu, as nuvens fechando o tempo, e dentro daquelas casas só o vazio. 

Cerrei as cortinas, tevê ligada na sala, um ator canastrão em cena dizia que o seu maior medo era nunca mais encontrar aqueles que ele amava. Perdi a conta já do tempo que eu não encontro os meus, respondi pra mim mesmo, sem muita paciência para dramas e tentando manter a esperança de que tudo vai dar certo, como aprendi com a minha mãe.  

Lembro que eu sentia saudades do mar, água salgada na minha pele, meus pés na areia e do meu corpo flutuar até ser arrastado para muito além da arrebentação. Era quando me faltava o ar no peito carente dos abraços demorados, de poder tocar e sentir o outro bem ali junto a mim, o hálito quente, olho no olho e aquela vontade de estar perto de alguém que me ame de verdade. 

Eu me viro bem sozinho, hoje eu sei.

sexta-feira, 19 de junho de 2020

Arrebentação

Já batia aqui dentro a saudade e, em meu peito escudo, um baú de lembranças soltas feito passos de um balé com as canções que eu nunca esqueci. Era como se as palavras ficassem à sua espera para dançar e enquanto ele não aparecesse, elas, as palavras, apenas ecoavam em meu ouvido sem o menor sentido. 

Sempre foi assim. 

Porque volta e meia ele se afasta. Como se não quisesse mais saber de mim. Já cheguei a pensar que fosse ser para sempre, mas aprendi com o tempo que eu não vivo sem ele e ele não vive sem mim. Porque corre em meu leito um rio de frases perfeitas, correntezas de rimas que, de tão lindas, só conseguem desaguar nas suas mãos.  

E, então, ele escreve e tudo ganha outro sentido. 

É quando a água do rio se agita porque sabe que vai chegar no mar, naquela imensidão que é o mar, e mexe com o que a gente tem de mais profundo. Quando ele escreve, revira aqui dentro de um tudo, memórias apagadas, sonhos naufragados e amores que eu nunca vivi. 

Eu sempre me afogo entre as estrofes soltas na espuma das suas ondas. Ele, na minha arrebentação.  

Eu sou oceano poema. Ele é às vezes sim, às vezes não. 




quarta-feira, 13 de maio de 2020

Vírus imoral

Quando tudo começou, juntei todos os eus ali naquele apartamento-corpo morada de mim.

Cada um num canto.

Enquanto eu lia trechos de um conto nervoso, lá fora a noite se derramava em temporal.

Um outro eu ouvia os versos que eu mesmo escrevia cá dentro, rimas, ritmos, músicas.

Eu me pus a dançar.

Eu e eu noite e dia.

Pensei tantas coisas, revirei por inteiro, baguncei minhas gavetas, me desfiz de tudo aquilo que por muito tempo escondi.

Despido de mim.

Sobraram a fantasia do eu-menino, os delírios do eu-homem, e aquela minha liberdade imoral que contaminava feito o vírus perigoso no ar.

Foi então que me calei e me tranquei sozinho.

E em meio a tanto silêncio, os olhos dos outros eus confiantes de que tudo aquilo também ia passar.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

Veleiros

Logo eu, alma-oceano, a transbordar de mim. 
Veleiros à espera do vento por tanto tempo,
nesse mar-amor-amar que nunca teve fim. 

Alma que se sabe infinita essa minha.

A que mergulha no lado mais profundo 
e reconhece um mundo, o meu, sob essas ondas, marés, 
correnteza de frases tão bonitas, quase perfeitas. 

Palavras escritas sobre finos grãos de areia.  
Nossos nomes-horizontes, lado a lado, de mãos dadas, 
um risco-coração e a certeza de que isso também vai passar.

Logo eu, corpo-água-sentimento, com o que mais posso sonhar?