quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Fresta

E quando o outro, ao invés de metade, é espelho?
O reflexo daquilo que ninguém nunca viu?
Aquilo que só você sabia,
os sinais que só você conhecia,
o seu verdadeiro eu?

E quando o outro é aquele que se revela,
feito luz por detrás de uma fresta,
uma brecha que se desfaz em clarão?

Ainda há pouco estava tudo mesmo tão escuro.

sábado, 12 de janeiro de 2013

'O biso é rei' ou "O conto atrasado de Natal"

Clima bom de Natal. Casa cheia. Bacalhoada pronta. Pernil desossado. Rabanadas fritas. Peru assando no forno. Criançada pra lá de animada com os presentes e os mais velhos pra lá de animados com o vinho transbordando nas taças. Até que mamãe chega na varanda onde estávamos eu e meus primos e dispara:

. Seu avô Saulo não está nada bem, Mauro.

- O que foi? É a pressão de novo?

- Não. É a cabeça. Está falando umas coisas sem sentido, vai lá dentro pra você ver.

Vô Saulo tem 92 anos, é o patriarca da família. Figura adorável, querido por todos. Excelente contador de histórias, bem humorado que só, dono de um arsenal de piadas impróprias e por isso mesmo divertido. Festa com o vô Saulo era alegria na certa. Naquele Natal não poderia ser diferente. Mas foi. Ou não, dependendo do ponto de vista.

Fui até a sala e ele estava lá, sentado na cadeira de balanço. Ao seu lado o filho mais velho, tio Lauro, irmão de mamãe, com cara de poucos amigos.

- O que é isso, papai? O senhor está ficando louco? Depois de velho deu para falar insanidades?

- O que foi, vô? - perguntei.

- Só porque eu falei do Zezinho o Lauro ficou assim, nervoso, me chamando de doido.

- E quem é Zezinho, vô?

- Vai continuar com isso, papai? Quer estragar o Natal? Porra, Mauro, não dá corda pro seu avô, faça-me o favor. Vamos parar por aqui.

- Zezinho foi o meu primeiro amor.

Silêncio sepulcral. Tio Lauro com olhos arregalados. Minha mãe de queixo caído. Tia Odete, mulher do tio Lauro, sem saber onde se enfiar e eu meio sem entender se era aquilo mesmo o que eu tinha ouvido.

- Quem? - continuei.

- O Zezinho lá de Santo Antônio de Pádua. Ninguém aqui conheceu. Era um menino bonito. Meu amigo.

- Amor de amigo, claro - eu disse, tentando aliviar a situação e segurar o riso ao mesmo tempo. Todo mundo aqui tem um amigo do peito, daquele que é quase irmão - eu completei.

- Sinto saudade dos abraços que ele me dava lá na beira do rio.

- Também abraço meus amigos, vô. Dá aqui um abraço - tentei amenizar.

- A gente dava uns beijos também.

- Porra, pai. Vai continuar com isso? - esbravejou tio Lauro.

- Deixa ele falar, tio Lauro. É normal que amigos se beijem.

- Na boca?

- Mas era na boca, vô?

- Era. De língua e tudo.

Silêncio. Climão.

Tio Lauro enfurecido de um lado, mamãe e tia Odete ruborizadas do outro, enquanto vô Saulo continuava na cadeira de balanço com sua taça de vinho pela metade e os olhos distantes, pensando no tal do Zezinho. Eu, que estou acostumado a ver de tudo um pouco nessa vida, confesso que também achei aquilo muito esquisito. Pô, vô Saulo sempre teve uma imagem de macho viril, gostava de esportes, foi jogador de futebol, porte atlético, um senhor bem apessoado. Pelas fotos nos álbuns da família dava pra ver que ele tinha sido um jovem bonitão, sempre vestido em ternos bem cortados, cabelos engomados, um advogado bem sucedido. Casou cedo com vó Margareth, teve dois filhos, cinco netos, três bisnetos. Teve o que todos sempre consideraram um casamento perfeito, sólido, feliz mesmo. Um exemplo.

- Mas eu gostava mesmo era do Zezinho. Nunca me esqueci dele.

- Tá caducando, só pode - tia Odete falou baixinho, quase que sussurrando.

- Será que é Alzheimer? - perguntou mamãe, tensa que só ela.

- É falta de vergonha mesmo - disse tio Lauro.

A esta atura os demais primos e primas já estavam todos na sala sem entender muito bem o que estava acontecendo. Uns tentavam distrair as crianças, já com fome, e outros se metiam na conversa.

- Quem é Zezinho? - perguntou Cristina, a neta mais nova.

- Acho que era um namorado do vovô - disse Paulo, o primo mais velho.

- Tá de sacanagem, né? Piada, vô?

- Não, não é piada não. Zezinho foi meu primeiro amor. A gente andava muito por aqueles matos lá na roça. Eu tinha 14 anos e ele tinha 15. Bonito que só, vocês tinham que ver.

- Tô bege, vô - disse Cristina, a neta e minha prima mais nova, enquanto tio Lauro ficava cada vez mais roxo de raiva.

- Gente, o babado é fortíssimo - falou Paulo, o neto mais velho, meio que no deboche, meio que soltando a franga, vai saber.

- Que saudade do Zezinho. Ô, tempo bom aquele!

- Mas rolou sexo, vô? - tomei coragem e perguntei.

- Não. Só carinho.

- Perdi a fome - disparou tio Lauro. Não quero mais saber de pernil, bacalhau, rabanada, porra nenhuma. Pra mim chega. Acabou o Natal.

- Quer uma água com açúcar, um lexotan? - perguntou tia Odete que, sem obter resposta, engoliu o comprimido e a água açucarada de um gole só.

- E o peru? - perguntou vô Saulo.

- O meu está aqui, papai. O do senhor está aí. E ai de quem perguntar pelo peru do Zezinho! Eu não quero mais saber. Vou pro meu quarto. Me deem licença. 

Silêncio.

Thiago, o bisneto de apenas 6 anos, que até então brincava no seu tablet, vira pra Júlia, a bisneta de 3 anos e diz muito sério:

- O biso é gay.

Júlia, que mal sabia falar, começa a repetir aos quatro cantos:

- O biso é rei! O biso é rei!

Clima bom de Natal.