sábado, 29 de outubro de 2011

Nu. Vem.





Para se desfazer em nuvens é preciso estar leve.
É preciso estar entregue e se permitir.
Porque o vento sopra e você nem percebe.
Quando se dá conta já é hora de ir.

Entre as montanhas.
Aos pés do redentor.
Nos arranhacéus.
Sobre toda a cidade.

De todas as formas.
Com nuances de cor
No por do sol
À procura do amor.

Partícula.
Água.
Gelo.
Vapor.

Condensação.
Sólido.
Líquido.
Seja lá o que for.

Para se desfazer em nuvens é preciso estar livre.
Soltar as amarras, seguir a corrente.
Deixar a máscara cair, se despir por inteiro.
E deixar desprender do varal.

Com a delicadeza da brisa,
A força da ventania,
Ou a fúria de um vendaval.
É preciso ter coragem.

Para se desfazer
Em nevoeiro,
Chuva fina,
Tempestade.

Então vem, nuvem,
Vem.
Nu.
Vem.

domingo, 23 de outubro de 2011

Raíssa

Mais uma semana e ele ainda não estava curado. Sentia-se mal com frequência. Uma letargia, uma falta de apetite, a vontade de não fazer nada, sequer de sair de casa, mãos geladas e uma dor nas têmporas constante. Estava assim desde que Raíssa partiu, há pouco mais de dois meses, naquela tarde fria de agosto.



Ele sempre soube que ela iria embora e que muito provavelmente eles nunca mais se encontrariam. A história dos dois tinha todos os ingredientes para se transformar num romance, destes que a gente chama de pocket book, curto, do tipo que a gente lê rapidinho numa viagem de trem, com princípio, meio e fim. Não parecia ter enredo de novela.



Ele não estava preparado para se apaixonar. Tinha acabado de sair de um relacionamento desgastado, com brigas frequentes, filhos traumatizados, advogados, partilhas de bens. Uma confusão só. Ela estava focada na vida que ia levar em Berlim, precisava resolver os trâmites burocráticos de quem vai morar fora do Brasil, um corre-corre danado e ainda queria aproveitar ao máximo o tempo que teria junto de sua família e de seus amigos.



- Tudo, menos me apaixonar - ela repetia feito um mantra.



Foi por acaso que eles se conheceram. Uma troca de mensagens por engano resultou num bate-papo bem-humorado e despretensioso que se repetiu por mais três dias. Até que depois de dezenas de mensagens, tantas coisas em comum e um misto de curiosidade e carência, resolveram se conhecer.



Raíssa morava com um irmão em Vila Isabel, numa espécie de sobrado bem na esquina de uma rua tranquila, com ar de cidade de interior. Foi fácil chegar lá. Na manhã daquela quinta-feira de outono, com o céu pintado de azul e o trânsito da Grajaú-Jacarepaguá fluindo bem, da Freguesia até a casa dela foram menos de vinte minutos. Ele estava nervoso. Ela também. No carro, Nine of ten na voz de Caetano Veloso. A boca seca. O coração acelerado. Parecia que estava fazendo algo proibido.



Ela também se auto-censurava, contou depois. Disse que pensou muito antes de aceitar sair com ele, que aquilo nunca tinha acontecido antes, que ele era mais velho, que ela ia viajar, que eles não deviam se envolver. Ele também não queria, dizia. Estava fragilizado com o término recente do casamento. Não queria saber de compromisso tão cedo. No máximo seriam bons amigos.



Ela entrou no carro com uma garrafa de água mineral nas mãos, vestia uma camiseta vermelha de algodão leve e gola v, uma bermuda cinza, bastante magra, seios rijos, cabelos negros soltos na altura do ombro, olhos grandes, repuxados, donos de uma profunda tristeza e uma voz serena de arrepiar. Ele sorriu, tirou os óculos e, olhando firme para ela, perguntou se tinha cara de mau.



- Não.



Sem saber onde levá-la, resolveu subir o Alto da Boa Vista e seguiu rumo à Floresta da Tijuca. Conversaram o tempo todo. Um contava um pouco o que achava que o outro podia saber. Afinal, era um primeiro encontro e todo primeiro encontro tem uma certa polidez e só se mostra o que cada um tem de mais bonito. Mas falaram da vida, das suas alegrias, suas frustrações, coisas íntimas até. Não havia por que se esconder, não havia nada a perder e no mais, ele teve a impressão de que já se conheciam há anos.



Parou o carro em frente a um mirante, desceram em meio aos mosquitos, ele soube que a mãe dela havia morrido, ela soube que ele sentiu vontade de morrer. Falaram também daquela situação em que se encontravam, que não deviam se envolver, que nenhum dos dois queria sofrer, que talvez aquela seria a primeira e última vez, mas ela cedeu a um beijo. Ele ainda roubou-lhe outro e todo o discurso racional começou a desmoronar ali.



No dia seguinte, já tarde da noite, ele estava no meio do trabalho quando ela mandou uma mensagem: preciso de um abraço. Em questão de segundos ele terminou o que tinha para terminar e num piscar de olhos estava em Vila Isabel envolvendo Raíssa em seus braços dentro do carro e numa explosão de sentimentos a tentar lhe confundir a vida. O coração batia forte, descompassado, esperançoso e feliz. A cabeça não parava de pensar que aquilo não poderia acontecer, que ele ia se dar mal mais uma vez, que tudo o que ele não precisava naquele momento era se envolver com alguém. Tudo ao mesmo tempo. A eterna disputa da razão versus coração.



E Raíssa ali, com o corpo leve em seu colo, entregue, frágil, linda. Ela também não sabia se o que estava fazendo era o certo, se devia ter mandado a mensagem, se não teria sido melhor nunca mais procurá-lo. Mas alguma coisa havia de mais forte ali com aqueles dois. Entre os olhares e beijos e sussurros, perderam a noção da hora e a madrugada avançava sobre eles. Alguns bêbados passavam ao lado do carro sem se dar conta do casal que ali estava. Àquela altura o casal já não se dava conta de muita coisa. O tempo foi passando, as madrugadas passaram a ser mais constantes. Ele insistia. Ela dizia que não queria. Ele sofria. Ela então cedia.



Faltando pouco mais de um mês para que ela fosse embora para Berlim foi que deixou escapar que o amava. Ele, que já se entregara há muito tempo, não se conteve de tanta felicidade. Parecia mesmo um sonho tudo aquilo que estava vivendo. Logo ele, que tinha certeza que nunca mais voltaria a amar outra mulher na vida e que - mais grave - não se achava merecedor do amor de mais ninguém. Ouvir que alguém o amava, especialmente ouvir que Raíssa o amava, era como encontrar um novo final nessa trama mal escrita que é a vida.



Mas Raíssa o amava racionalmente. Era como se ela fosse feita de uma casca dura, grossa, e só lá no fundo, a muito custo, amaciava. Ela o amava. Ele sabia disso. Mas ela se contentava em vê-lo uma ou duas vezes na semana, quando não tinha compromissos com os amigos, quando não tinha roda de samba, quando não tinha que defender um troco ou quando não estava cansada. Mas ela o amava, ele sabia disso. Mas ela não falava coisas bonitas, não o convidava para as festas, não telefonava, sumia, só aparecia quando queria.



Ele foi ficando triste porque ele sabia que a amava. Ele gostava de falar coisas bonitas, de sair para encontrá-la onde quer que fosse, a hora que fosse. Pouco importava. Ele a amava. Sabia que não deveria, mas amava. Sabia que era loucura, mas amava. Sabia que não teria chance, mas amava. Ele quase ficou louco de tanto amar.



Mais louco ficou quando se deu conta que teria de dar um fim àquele amor. Mas como? Como ele ia conseguir se desfazer de todo aquele amor depois que ela fosse para Berlim viver plenamente tudo o que ela teria para viver por lá? Onde ficava a tecla que ia fazer com que aquele jogo terminasse? Como fazer para surgir na tela o game over?



Raíssa cumpriu o seu destino e foi embora. Na véspera de partir repetiu que o amava. Disse também que era para ele se cuidar, seguir a vida em frente. Raíssa, vinte anos mais jovem, parecia tão coerente. Raíssa não se deixava revelar quase nunca. Ele, sim, sofria e ao mesmo tempo ficava cada vez mais fascinado. Ele estava fraco. Raíssa parecia tão forte. Raíssa não chorava. Não na frente dele. Ele vivia com os olhos cheios dágua porque sabia que ela o amava.


Raíssa está em Berlim. Ele continua na Freguesia. Raíssa tem novos amigos. Ele quase já não encontra os seus. Volta e meia Raíssa manda umas mensagens. Esteve em Barcelona, Amsterdam, Londres. Da última vez ela contou sobre uma tal ponte dos artistas, em Paris, onde ia comer queijos e beber uns vinhos à noite com uns amigos. Ele teve vontade de pegar o primeiro avião para encontrá-la e dividirem uma garrafa de tinto. Mas ele não podia. Ele não tinha muito o que contar. Não quis falar das dores, muito menos da saudade e da falta que ela fazia em sua vida.



Só ele sabia. E isso bastava.