A última coisa que eu ouvi antes que tudo se apagasse naquela noite absurdamente quente foi um grito. Eu estava voltando para a minha casa, no subúrbio, completamente suado, cabelo oleoso, amarrotado, fedido, depois de um longo dia de trabalho árduo, dois ônibus sem ar condicionado, um trem lotado e muita aporrinhação. Eu estava cansado, só pensava em tirar os sapatos que me apertavam os joanetes, tomar um banho frio, comer alguma coisa e deitar no meu sofá só de cuecas, barriga apontando para o alto, meu maço de cigarros ao lado e duas latinhas de cerveja até pegar no sono ali mesmo na sala.
Ao descer na estação de trem perto de casa, notei algo estranho. O ar estava pesado, uma espécie de fumaça tomava conta do lugar. Fui logo botando a culpa no calor, que deixa a gente meio zonzo, causa um certo delírio e pode até mesmo matar. Tive um tio que morreu de calor, juro. Eu tentava encarar as pessoas que passavam por mim, mas eu não conseguia foco, a visão tinha ficado embaçada.
Lembro que por alguns segundos eu me encostei numa pilastra, completamente atordoado, um suor gelado que molhou toda a minha roupa, como se tivesse saído do chuveiro. "Devia ser hipoglicemia. Minha mãe tinha dessas coisas. Horrível. Vai passar", eu pensava. Ao meu redor, uma gente muito pálida me olhava, não para me oferecer ajuda, mas como se eles precisassem muito de alguma coisa, muito mais do que eu.
Quando consegui recobrar meus sentidos, estendi a mão para uma uma senhora com lenço branco na cabeça, pele enrugada, olhos fundos, magra, muito magra, saia longa de um tecido já desbotado, uma camisa puída, chinelo de dedos e os pés que mais pareciam raízes de tanto que pisaram esse chão. Mas ela recuou e desapareceu na mesma hora em que alguém gritou desesperadamente, eu caí e, então, tudo se apagou de vez.
Jamais vou conseguir precisar quanto tempo fiquei no escuro. Quando consegui abrir os olhos, custei a entender onde eu estava. Um silêncio e um vazio assustador tomavam conta da estação. Eu via apenas algumas sombras. Tentei chamar por alguém, mas minha voz falhou. Parecia um pesadelo. Eu ainda estava tonto, coração acelerado, uma certa dor nas têmporas e muito medo.
Foi quando eu ouvi um outro grito estridente e percebi uma sombra se aproximando à minha esquerda. Fiquei paralisado. Sequer respirava. Conforme chegava mais perto, mais apavorado eu ficava, até que consegui ouvir os passos, que me pareceram cansados, mas não ameaçadores. Quando passou por mim, a sombra se transformou na silhueta de um homem. Ele parou, percebeu que tinha alguém ali e, silenciosamente, sentou ao meu lado, tirou do bolso da calça um maço de cigarros amassado e uns papeis de carta. Milagrosamente, eu relaxei.
- Quer um cigarro? - ele me perguntou
- Quero.
- É sem filtro, tudo bem?
- Tudo bem, respondi.
Ele tirou dois cigarros do maço, procurou um isqueiro, acendeu o primeiro, tragou e me deu. Um fumo forte, intenso, que queimava a garganta e batia direto no pulmão. Eu engasguei.
- Segura firme, ele disse.
Eu não consegui falar mais nada.
Ele pareceu não se importar com meu silêncio e desandou a falar. Contou que fora ele quem apagara todas as luzes e que não sabia ao certo o que estava fazendo ali. Havia saído de casa há mais de uma semana. Talvez duas. Carregava apenas uma mochila com duas camisetas, uma calça e um pulôver velho, mas que ele adorava. Presente da sua avó. Tinha também um caderno onde ele fazia algumas anotações, um lápis, uma caneta esferográfica sem tampa e um relógio de pulso preto, sem bateria, que ficava jogado no fundo da mochila e o coração nas mãos.
Confessou ter deixado escapar um grande amor recentemente e que desde então ele, seu coração, só sangrava. Não economizou palavras na tentativa de traduzir a dor que o término daquele relacionamento lhe causou. Metade culpa dele. A outra metade também era culpada. Falou de amor para mim como ninguém jamais fizera antes. Logo para mim, que nunca quis muita intimidade com esse negócio de amor. Mas ele falava de um jeito tão bonito, que mesmo sofrido, dava um alento só de ouvir.
Eu continuei sem conseguir falar nada, mas prestava muita atenção no que aquele homem dizia. Sequer estranhei que estava tudo às escuras e que já devia ser tarde da noite. Pouco me importava. Eu queria mesmo era ouvir o que aquele homem tinha para me contar. Quando eu poderia imaginar ter uma noite daquelas? Eu pensava que ia chegar em casa, tomar meu banho, beber minha cerveja e dormir. Só isso. Mas eu estava ali, no breu, sentado no chão de uma estação de trem imunda e com um homem desconhecido ao meu lado a me falar coisas de amor.
Eu não tinha o que dizer.
Por um instante ele também ficou calado. Acendeu outro cigarro e abriu um dos papeis de carta que ele trazia. Não faço ideia de como ele conseguiu enxergar o que estava escrito no papel, ou se realmente tinha algo escrito ali, mas ele começou a ler e foram as coisas mais lindas que eu já ouvi na minha vida. Naquela carta, ele se desnudava e contava tudo o que havia acontecido, desde quando eles se conheceram até quando tudo desmoronou. Ele contou da pureza e da grandeza de um amor de verdade. Disse que sentia falta da cumplicidade, de caminhar lado a lado, de ouvir as mesmas músicas, do toque, do cheiro, do sexo, de tudo, enfim.
Eu vi aquele homem chorar ao falar de um tipo de amor que eu nunca havia sentido. Eu vi aquele homem se desesperar porque ele sabia que precisava apagar todo aquele amor que ainda existia nele. Um amor que o encantou e que fez com que ele acreditasse que tudo era possível, por pior que fosse o cenário real. Mas a corda que durante tanto tempo os uniu havia arrebentado e fora cada um para um lado. Ele jamais soube da outra metade. Ele também não sabia mais o que restava dele.
Seu coração batia tão forte que eu podia ouvir o som do sangue pulsando. Ele suava. Eu também estava morrendo de calor. Senti minhas pernas formigarem de tanto que eu estava sentado na mesma posição. Senti muita pena dele. Senti inveja também e muita comiseração de mim. Há anos eu vivia sozinho, levando aquela vida medíocre e de relacionamentos superficiais com quem quer que fosse. Nunca me entreguei a nada nem a ninguém. Tudo aquilo que eu acabara de ouvir sobre o amor para mim era novidade ou coisa de novela, de livro, sei lá. Soava estranho. Eu sou um cara estranho.
Na carta, ele também falava das cicatrizes que ele carregava e do tanto que tinha se rasgado de amor, dos sacrifícios que ele precisou fazer, das noites que ficou sem dormir, de como era difícil toda aquela distância entre eles, dos abraços apertados, do carinho desmedido e da saudade absurda que parecia querer lhe enlouquecer dia e noite, noite e dia. Dizia que tudo doía: peito, juntas, cabeça, olhos. Um horror. E que ver tudo aquilo se apagando tinha um efeito devastador na sua vida. Ele queria ter tido mais tempo. Ele achava que ainda podia dar certo. Ele estava procurando a luz. Ele pensou ter encontrado. Mas, de novo, era só ele e a escuridão.
- Ainda está tudo aceso aí, eu falei baixinho.
Ele olhou nos meus olhos e não falou mais nada. Dobrou o papel, enfiou no bolso da calça, fumou outro cigarro e saiu sem se despedir de mim.
E eu fiquei ali no escuro, torcendo para tudo acender outra vez.