sexta-feira, 18 de novembro de 2016

As mais finas flores

Faz pelo menos dez dias que não se ouve um barulho sequer lá fora. Nem o sopro do vento, nem o balanço do mar, nem o tic tac das horas. Nada. Silêncio, silêncio e mais silêncio. Justo ali, onde poderíamos gritar aos quatro cantos  o que se passava dentro de nós. Mas sequer queríamos. Debruçadas na varanda, as luzes distantes de uma cidade inteira não paravam de brilhar. Ninguém nas ruas. Acima, o céu era dos pássaros que davam seus rasantes como fossem entrar pelas janelas da casa, no verde alto daquele morro. Abaixo, nossos pés pisavam em ladrilhos cor de nuvem cinza, chumbo, chão. O sol nas nossas mãos queimava os cigarros apertados com fumo das mais finas flores. No ar, um cheiro de mansidão.

E nós dois ali, germinados, a plantar sementes, calados, mudos, terra fértil, útero, seio, alimento, vida, sim e não.


terça-feira, 27 de setembro de 2016

Quase uma prece

Havia muito tempo ela já estava ali.
Ele também.
Mas ambos cegos.

Foi preciso um sopro de vento que lhes desembaçasse a visão e levantasse o véu das nuvens.

Alívio no peito, alegria na alma, perderam o chão.
A emoção era tanta que não cabia mais.
A madrugada fora a única testemunha.

Os dois com o coração em festa, a desnudar segredos, arrepiar os pêlos e umedecer a pele em silêncio, na sutileza do toque, quase uma prece.

O verdadeiro amor é sagrado.




terça-feira, 13 de setembro de 2016

Contramão

O coração do poeta vai na contramão do mundo.

Se há o caos lá fora,
a ira.
o ódio,  
todos os males.
Caixa de Pandora.

Aqui dentro, a paz,
a lira,
a dança,
o fluxo infinito
dos versos de amor que correm nas minhas veias.

No coração do poeta, o mundo é muito mais bonito.

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

Paisagem






Da minha cidade eu vejo o mar.
Vejo a água que bate na pedra,
a onda que chega na areia,
maré baixa,
lua cheia,
o cais.

É linda a minha cidade.

sábado, 30 de julho de 2016

Plantio

Agora eu quero ficar sozinho.
Deitar no chão da sala e me encolher.
relembrar o útero,
fazer do meu abraço em mim um ninho, 
passarinho que sou, 
bem-te-vi. 

Voar para perto de mim. 
Meus braços-galhos, pés-raízes, 
frutos espalhados pelo chão
e o nó na minha garganta, tronco-árvore, 
corpo estendido, despido, germinando, 
plantação.

Encher de terra as minhas mãos. 
Cavar até as entranhas, 
procurar o lado mais profundo, 
descartar o raso, semear o riso fácil, 
sou sujeito simples, 
fecundo.

Semente de mim.


terça-feira, 26 de julho de 2016

Ou dá ou desce

- Alô?

- Fala aí! Te acordei?

- Não, mas já estava indo deitar. Tá tudo bem?

- Tá.

- Duvido. Pra você me ligar a essa hora é porque deu alguma merda. Fala logo.

- Lembra daquela mulher que eu saí lá em São Paulo?

- Aquela dos quinze segundos?

- A própria.

- Puta que pariu! Tá grávida?

- Claro que não!

- Menos mal, convenhamos. Imagina você trepar sem camisinha, o que é uma irresponsabilidade, gozar em quinze segundos, o que é uma vergonha, e ainda por cima engravidar a mulher que você acabou de conhecer e não sabe quando e nem se vai encontrar novamente? Só você, numa boa...

- Só eu.

- Mas diga lá. Qual é a dela?

- É louca.

- Isso você também é.

- Sou. Mas já basta a minha loucura, né?

- Isso é verdade. Como você dá conta eu não sei. Mas e ela? Conta aí.

- A mulher me liga todo dia. Gamou. Se quinze segundos fizeram isso com ela, imagina mais uns minutinhos? Diz que me ama, que vai casar comigo, quer me levar para a Itália, que eu sou o homem da vida dela, que vai me fazer feliz. Tem um papo meio de bruxa, sabe?

- Sei. Tá cheio dessas doidas por aí. Desde que me divorciei já conheci algumas. Esses aplicativos ajudam bastante. Mas só encontro gente rasa, carente, maluca. Outro dia conheci uma que cismou que ia cuidar de mim que nem minha mãe cuidava. Achei fofo, mas perdi o tesão. Imagina comer minha mãe?

- Porra, Édipo nível hard. Graças a Deus ela não quer ser minha mãe. Era só o que me faltava.

- Mas qual o problema, então?

- Quer me comer.

- Oi?

- Cismou que vai me comer, é mole?

- Ela quis dizer que vocês vão transar, que vocês vão gozar muito e que vai ser bom pra caralho, foi só isso, não foi?

- Não. Não foi isso. Ela quer comer meu cu. Disse com todas as letras. Está ameaçando sair de São Paulo e vir pra cá nesse final de semana. Diz que tem uma cinta com um pau preto pendurado. Que nem de filme, já viu?

- Já.

- E agora?

- KY, ora bolas.

- Sem sacanagem, vai. O que eu faço?

- Corre dessa demônia, né, porra? A não ser que...

- A não ser o quê?

- Ih... está em dúvida, já vi tudo.

- Dúvida o escambau!

- Então por que me ligou nervoso, aflito, angustiado? Ou dá ou desce!

- Ela é gente boa.

- Então, dá.

- Nem.

- Então, desce.

- Vou pensar.

- Humm... vai dar!

- Sifudê, cara!

- Ela não é gente boa?

- Muito. Gostosinha, pele macia, cheirosa, style, cheia de tatoo, bem estilo daquelas paulistanas da Rua Augusta.

- Tua cara.

- Pois é.

- Então, dá.

- Tô falando sério.

- Então, desce.

- Porra, me ouve. Eu gosto dela. Quero encontrar com ela de novo e tentar apagar aquela má impressão, pelo menos para mim, dos quinze segundos. Meu pavor é a gente lá na maior pegação e a danada começar com esse papo de inverter os papéis. Brochada na certa.

- Tô imaginando aqui.

- A brochada?

- Não. Ela te pegando de jeito!

- Pode parar!

- Parei. Vou ter pesadelo.

- Pesadelo é o que eu tô vivendo.

- Sem drama. Bebe que passa.

- Só bebendo mesmo, vou te contar. É cada uma...

- Bebe, mas não bebe muito. Cu de bêbado não tem dono!

- Ah, vai...

- Vou... vou tentar dormir depois dessa, isso sim. E você, cuidado com a maluca.

- Mas e eu? O que eu faço?

- Já disse: ou dá ou desce!

- Teu cu!

segunda-feira, 18 de julho de 2016

Quando seus olhos vieram morar nos meus

Ele me disse que queria me escrever uma carta para me dizer que fazia meses que andava engasgado, com um nó na garganta, olhos sempre marejados e o peito prestes a explodir. Uma bomba. Me disse que metade dele respira fundo e finge que está tudo bem, mas que a outra metade anda sufocada pelas ruas em busca do ser inteiro. Eu lhe disse que também sentia muita falta dele, mas que tenho sentido uma saudade enorme de mim, que atualmente meu mundo se fez deserto, mesmo eu frequentando todos os dias os mesmos lugares, andando pelas mesmas ruas, encontrando sempre as mesmas pessoas. Todas desconhecidas. Eu, inclusive.

Confessou que havia voltado para a terapia, mas acho que ele chegou a comentar isso comigo numa das últimas vezes em que eu o procurei. Depois de tantas perdas recentes, voltar para a terapia foi a decisão mais acertada da sua vida, eu lhe disse. Que precisava fazer alguma coisa por ele depois do tanto que fez por quem ele amava, depois de tudo o que ele passou, depois de tudo aquilo que se foi. Com a voz meio travada, ele me disse que uma parte muito bonita dele havia ido embora e eu tive medo de que ela fosse a sua melhor parte e que só tivesse restado, então, a sombra. 

Ele falava tanto que eu me esqueci de dizer-lhe que eu me senti muito só esse tempo todo. Por mais que eu tivesse companhia, por mais que eu saísse para me divertir, por mais que eu tivesse com quem conversar, eu me sabia só. Ele também estava só e aquilo o perturbava, mexia com ele, tirava seu sono. Em mim vieram as gripes incuráveis, as dores físicas, a tosse encatarrada e a porra de uma tristeza tentando arrombar a minha porta dia após dia. Foi quando já não aguentava mais que ligou para o terapeuta. Agora, ou vai ou Reich, ele brincou. 

Com tantos anos de terapia reichiana, não era muito difícil perceber onde suas frustrações se manifestavam em seu corpo. Ele me revelou que desta vez havia voltado às sessões consciente de que essa bronquite eterna, essa falta de ar constante, esse pulmão fragilizado, isso tudo é tristeza, é medo de se encher de ar, oxigênio, combustível da vida, e andar para frente. Enquanto ele falava, eu lembrei que também devo seguir o meu caminho, seja lá que caminho for. Ele também me fez perceber que eu preciso esquecer a dor do mundo que eu cismo de carregar. E é verdade. Por que eu busco esse peso? Por que, meu Deus, eu teimo em carregar essa tonelada nas minhas costas? 

Mas eu não disse nada na hora.

Ele, ao contrário de mim, não se furtou em repetir várias vezes que estava louco para me encontrar e me contar todas aquelas coisas, colocar tudo para fora, tudo o que sentiu nesses últimos meses. Sem o menor constrangimento, disse que eu o conhecia mais do que qualquer terapeuta e que ainda guardava uma confiança enorme em mim. Não sei por que, pensei. Logo eu, que me iludo tanto. Eu, que projeto muito do que eu desejo no outro. Eu, que idealizo, que sonho, que crio diálogos, frases que eu talvez nunca venha a usar, faço da minha vida uma verdadeira novela. E eu me engano muito, é lógico. 

Foi quando eu consegui lhe dizer que havia me enganado e que aquela seria a última vez que nos víamos. Fiquei com a nítida sensação de que ele não queria ir embora, que seria só um hiato, não um para sempre. Era final de tarde de verão. Estava muito quente. Um vaivém de gente. Calçadas disputadas, bares lotados, amigos, casais de namorados, mãos dadas, beijos, abraços, cervejas, encontros e eu ali, naquele pesadelo do adeus, olhando ele subir a rua até desaparecer, sem acreditar que seria até nunca mais. 

Mas foi.

 (E eu ainda guardo a lembrança daquela primeira vez, quando seus olhos vieram morar nos meus.)

domingo, 17 de julho de 2016

Feito ilha

Eis que estou aqui. Só.
De novo o barco sem rumo, 
à deriva. 
No peito eu carrego um nó. 

E a correnteza do rio que molha meus pés 
me leva até a foz do meu corpo,
que é filho d'água,
deságua em outro corpo que também é meu. 

Porque o leito que acolhe o rio é berço,
acalenta o meu caminho, 
nascente de mim, enchente de mim, 
estiagem de mim. 

Destino. 

E eu ali, parado, 
feito ilha. 

Um horizonte ao meu redor.


sábado, 2 de julho de 2016

Madrugada

A madrugada chega.

E com ela, o silêncio que faz a gente se desligar de todas as coisas e baixar as armas, retirar as máscaras, esquecer de tudo.

Luzes que se apagam, casais que se deitam, amores rarefeitos, beijos mais que perfeitos, desejos expostos e um certo cansaço no ar.

Janelas se fecham, alguns olhos bem abertos, insônias, sonhos, outros céus que se revelam em estrelas, Marte, Vênus e o balé da lua seduzindo as horas à espera do sol.

A madrugada gosta de me bolinar. Passar as mãos sobre o meu corpo, roçar a língua na minha língua, a pele na minha pele. Não faz cerimônia, fica comigo, escreve, rabisca, me enche de versos, estrofes sem fim. É meu prazer e minha interseção, dia após dia, é minha palavra em linha reta, minha inspiração.

A madrugada é breve e a vida passa mesmo num instante.

segunda-feira, 20 de junho de 2016

Nublado

Ela havia chorado um brado lamentoso, uma espécie de querela infinita a noite toda. Chorou sozinha no seu quarto cinza e o frio daquele inverno que mal começara entrava pela fresta da janela, cortinas fazendo sombra, cama bagunçada, lençóis baratos, livros, smartphone, televisão. A verdade é que ela estava só mais uma vez. Uma solidão que a deixava asfixiada, doía-lhe o peito, quase matava. Um sufocamento lento, gradativo, que aumentava a cada lembrança, a cada visita da saudade e essa saudade cada vez mais aflita, nervosa, histérica. A dor.

Quebrou um copo na parede, cravou as unhas no pescoço e as lágrimas já banhavam seus seios fartos, os mamilos arrepiados e o corpo nu em posição fetal largado bem ali no meio do chão. A madrugada toda e aquele cheiro de cigarro insuportável que emanava da sua pele. Dava dó de ver. Dias antes era lera um poema que dizia que o amor era uma espécie de câncer. Ora, como se ela não soubesse, como se ela não sentisse, como se ela não sofresse daquele mal. Então, chorava copiosamente.

Na playlist tocou Gal. Como dois e dois. Algumas lágrimas bastavam pra consolar e tudo em volta estava mesmo tão deserto, conforme dizia a música. Há certas coisas que não são simples coincidências, ela pensou. Pensou também que há meses tentava se reerguer e nada. Havia uma espécie de corrente, uma âncora imaginária que a prendia naquele mundo nublado, um mundo que nunca fora o dela. Logo ela, que gostava de dias pintados de azul. Mas aquele amor, aquele amor que o poeta chamou de câncer, desbotou tudo.

Lá fora já amanhecia e o canto de alguns pássaros anunciava um novo dia. Naquela hora tudo a afligia. Pra quê mais um dia? Ela não precisava de tudo aquilo de novo. Estava farta daquele recomeço, daquelas mesmas horas, das mesmas pessoas, da falta de assunto, tamanha mesmice. Odiava rotina, achava sem sentido, sem graça. Queria outra vida, mas precisava se livrar da âncora. Estava cansada. Fraca. Pouco tempo depois ela dormiu.

Teve sonhos em preto e branco.

domingo, 19 de junho de 2016

Final infeliz

Há amores que são feito um câncer:
quando surgem, nos destroem por completo,
nos arrebatam, nos tiram o chão.
nos deixam totalmente cegos.

São do tipo que se espalham por todo o corpo:
órgãos, pele, língua, boca, pulmão.
Criam feridas, viram metástases,
contaminam e matam sem dó nem perdão.

Esses amores são os doentios,
os que nos levam à derrocada.
Cravam uma facada em nosso peito
e enchem a nossa cara de porrada.

Da classe de amores que são tão ruins,
daqueles que devemos extirpar,
eliminar de uma vez da nossa vida
feito tudo aquilo que não presta.

Esses amores são finitos
e da história deles nada resta.
Por mais que no início tenha sido tudo tão bonito,
cedo ou tarde ele diz: não te amo mais.

Há amores com final infeliz.
















sábado, 28 de maio de 2016

A prisão nossa de cada dia

Ele encontrou comigo já passava da meia-noite. Fazia frio, eu estava indo para casa, com fome, cansado e tudo o que eu não queria era bater papo aquela hora. Mas ele deu cara comigo na esquina da minha rua e veio logo puxando assunto, falando com aquele timbre de voz alto, acelerado, meio fora do tom e aquela mania insuportável de pegar toda hora no meu braço. Na verdade, ele era sempre assim e eu também era sempre o chato que nunca estava a fim de nada. Minha timidez já há muito que se confundia com falta de educação eu não me importava mais com isso. Fato. Só que algumas pessoas ou se faziam de desentendidas ou não estavam nem aí e me atropelavam com conversas que pouco me interessavam. 

Ele era uma dessas pessoas.

Me contou que estava indo embora, que não estava mais aguentando tudo aquilo, que por muito tempo ele andou sufocado, um ar pesado invadia seu peito e aquelas palavras todas a embaralhar sua cabeça. Confessou que não conseguira assimilar tudo o que ocorreu na sua vida nos últimos meses, tantas perdas, um labirinto esquisito, uma saudade doída, uma casa desfeita, uma vida vazia. Amigos desempregados, um dia-a-dia difícil, um país de pernas para o ar e ele ali, se sentindo sozinho e ouvindo dele mesmo que ele estava preso às suas escolhas.

- Eu não escolhi isso, juro que não, ele repetia.

Ficava nervoso porque nem escrever ele conseguia mais. Estava com dois livros praticamente prontos, faltava só editar, tinha outras tantas poesias guardadas, uns contos e alguns rabiscos.Eram esses os seus pertences mais valiosos. Mas não terminava o que tinha para terminar. Era como se os dias não rendessem, se arrastassem e junto vinha a preguiça, a letargia e a depressão. Há tempos ele abandonara tudo e, sem sentir, foi se afastando daquele que um dia ele fora. Disse que estava difícil se reconhecer e que aquela confusão toda o deixava cada vez mais atormentado.

 - Por que isso?, ele perguntava.

Num rompante, bateu com força no peito, olhou nos meus olhos, apontou para o seu coração e me revelou que algumas cicatrizes nunca fecham e que as dores são eternas, assim como algumas lembranças que teimam em nos visitar. Eu precisei concordar. Também me sentia assim muitas vezes. Eu, na minha solidão, no meu isolamento consciente, brigava silenciosamente com meus bloqueios, na tentativa de enfrentar o que preciso fosse. Eu me enfrentava a todo instante. Várias vezes eu esmorecia. 

Ele também.

Foi quando as luzes do poste se apagaram que ele se despediu de mim. Apertou minha mão com força, me deu um abraço demorado, tirou do bolso um pedaço de papel dobrado - era um bilhete - e me entregou. Sussurrou alguma coisa em meu ouvido que eu não consegui entender. Uma ambulância cruzou a rua, uma sirene ensurdecedora, e ele desapareceu na sombra avermelhada daquelas esquinas. Quando dei por mim, eu estava sozinho outra vez. 

Eu e meu silêncio.

Fui caminhando para casa devagar, enchendo meus pulmões com o ar gelado de um inverno que já se aproximava. Na minha mente, uma vastidão de pensamentos. Deu uma vontade de chorar, apertei os olhos, respirei fundo e segui em frente. Na minha mão direita, as chaves. Na esquerda, o bilhete ainda dobrado que ele havia me dado antes de sumir. Abri para ler. Havia uma frase apenas.

LIBERTE-SE.

Assim mesmo, em letras garrafais.

     


terça-feira, 24 de maio de 2016

Sem saber

Ainda ouço o grito dos aflitos
e o eco que se forma no vazio que há em mim.
Às vezes sou como a sombra mal projetada na parede úmida,
a linha mal escrita no papel barato,
a ferida na carne escura que teima em sangrar meu peito.

É quando tudo dói.

Eu vejo todos os meus abismos e cerro os olhos.
Aqui dentro é só escuridão e eu sinto medo,
Fico mudo, quieto, estou nu pelo avesso
E já não entendo nada muito bem.
Nem eu nem você.

Nem ninguém.

Os verbos que já não conjugo,
O versos que me abandonaram,
As frases feitas que eu esqueci,
O rumo que se perdeu.
E eu continuava ali.

Sem saber por quê.

quinta-feira, 3 de março de 2016

Tempestade


Estou ilhado. Ao meu redor, um dilúvio de saudades.

Onde está você nesta tempestade, se não em mim?









segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Amor que não se apaga

A última coisa que eu ouvi antes que tudo se apagasse naquela noite absurdamente quente foi um grito. Eu estava voltando para a minha casa, no subúrbio, completamente suado, cabelo oleoso, amarrotado, fedido, depois de um longo dia de trabalho árduo, dois ônibus sem ar condicionado, um trem lotado e muita aporrinhação. Eu estava cansado, só pensava em tirar os sapatos que me apertavam os joanetes, tomar um banho frio, comer alguma coisa e deitar no meu sofá só de cuecas, barriga apontando para o alto, meu maço de cigarros ao lado e duas latinhas de cerveja até pegar no sono ali mesmo na sala.

Ao descer na estação de trem perto de casa, notei algo estranho. O ar estava pesado, uma espécie de fumaça tomava conta do lugar. Fui logo botando a culpa no calor, que deixa a gente meio zonzo, causa um certo delírio e pode até mesmo matar. Tive um tio que morreu de calor, juro. Eu tentava encarar as pessoas que passavam por mim, mas eu não conseguia foco, a visão tinha ficado embaçada.

Lembro que por alguns segundos eu me encostei numa pilastra, completamente atordoado, um suor gelado que molhou toda a minha roupa, como se tivesse saído do chuveiro. "Devia ser hipoglicemia. Minha mãe tinha dessas coisas. Horrível. Vai passar", eu pensava. Ao meu redor, uma gente muito pálida me olhava, não para me oferecer ajuda, mas como se eles precisassem muito de alguma coisa, muito mais do que eu.

Quando consegui recobrar meus sentidos, estendi a mão para uma uma senhora com lenço branco na cabeça, pele enrugada, olhos fundos, magra, muito magra, saia longa de um tecido já desbotado, uma camisa puída, chinelo de dedos e os pés que mais pareciam raízes de tanto que pisaram esse chão. Mas ela recuou e desapareceu na mesma hora em que alguém gritou desesperadamente, eu caí e, então, tudo se apagou de vez.

Jamais vou conseguir precisar quanto tempo fiquei no escuro. Quando consegui abrir os olhos, custei a entender onde eu estava. Um silêncio e um vazio assustador tomavam conta da estação. Eu via apenas algumas sombras. Tentei chamar por alguém, mas minha voz falhou. Parecia um pesadelo. Eu ainda estava tonto, coração acelerado, uma certa dor nas têmporas e muito medo.

Foi quando eu ouvi um outro grito estridente e percebi uma sombra se aproximando à minha esquerda. Fiquei paralisado. Sequer respirava. Conforme chegava mais perto, mais apavorado eu ficava, até que consegui ouvir os passos, que me pareceram cansados, mas não ameaçadores. Quando passou por mim, a sombra se transformou na silhueta de um homem. Ele parou, percebeu que tinha alguém ali e, silenciosamente, sentou ao meu lado, tirou do bolso da calça um maço de cigarros amassado e uns papeis de carta. Milagrosamente, eu relaxei.

- Quer um cigarro? - ele me perguntou

- Quero.

- É sem filtro, tudo bem?

- Tudo bem,  respondi.

Ele tirou dois cigarros do maço, procurou um isqueiro, acendeu o primeiro, tragou e me deu. Um fumo forte, intenso, que queimava a garganta e batia direto no pulmão. Eu engasguei.

- Segura firme, ele disse.

Eu não consegui falar mais nada.

Ele pareceu não se importar com meu silêncio e desandou a falar. Contou que fora ele quem apagara todas as luzes e que não sabia ao certo o que estava fazendo ali. Havia saído de casa há mais de uma semana. Talvez duas. Carregava apenas uma mochila com duas camisetas, uma calça e um pulôver velho, mas que ele adorava. Presente da sua avó. Tinha também um caderno onde ele fazia algumas anotações, um lápis, uma caneta esferográfica sem tampa e um relógio de pulso preto, sem bateria, que ficava jogado no fundo da mochila e o coração nas mãos.

Confessou ter deixado escapar um grande amor recentemente e que desde então ele, seu coração, só sangrava. Não economizou palavras na tentativa de traduzir a dor que o término daquele relacionamento lhe causou. Metade culpa dele. A outra metade também era culpada. Falou de amor para mim como ninguém jamais fizera antes. Logo para mim, que nunca quis muita intimidade com esse negócio de amor. Mas ele falava de um jeito tão bonito, que mesmo sofrido, dava um alento só de ouvir.

Eu continuei sem conseguir falar nada, mas prestava muita atenção no que aquele homem dizia. Sequer estranhei que estava tudo às escuras e que já devia ser tarde da noite. Pouco me importava. Eu queria mesmo era ouvir o que aquele homem tinha para me contar. Quando eu poderia imaginar ter uma noite daquelas? Eu pensava que ia chegar em casa, tomar meu banho, beber minha cerveja e dormir. Só isso. Mas eu estava ali, no breu, sentado no chão de uma estação de trem imunda e com um homem desconhecido ao meu lado a me falar coisas de amor.

Eu não tinha o que dizer.

Por um instante ele também ficou calado. Acendeu outro cigarro e abriu um dos papeis de carta que ele trazia. Não faço ideia de como ele conseguiu enxergar o que estava escrito no papel, ou se realmente tinha algo escrito ali, mas ele começou a ler e foram as coisas mais lindas que eu já ouvi na minha vida. Naquela carta, ele se desnudava e contava tudo o que havia acontecido, desde quando eles se conheceram até quando tudo desmoronou. Ele contou da pureza e da grandeza de um amor de verdade. Disse que sentia falta da cumplicidade, de caminhar lado a lado, de ouvir as mesmas músicas, do toque, do cheiro, do sexo, de tudo, enfim.

Eu vi aquele homem chorar ao falar de um tipo de amor que eu nunca havia sentido. Eu vi aquele homem se desesperar porque ele sabia que precisava apagar todo aquele amor que ainda existia nele. Um amor que o encantou e que fez com que ele acreditasse que tudo era possível, por pior que fosse o cenário real. Mas a corda que durante tanto tempo os uniu havia arrebentado e fora cada um para um lado. Ele jamais soube da outra metade. Ele também não sabia mais o que restava dele.

Seu coração batia tão forte que eu podia ouvir o som do sangue pulsando. Ele suava. Eu também estava morrendo de calor. Senti minhas pernas formigarem de tanto que eu estava sentado na mesma posição. Senti muita pena dele. Senti inveja também e muita comiseração de mim. Há anos eu vivia sozinho, levando aquela vida medíocre e de relacionamentos superficiais com quem quer que fosse. Nunca me entreguei a nada nem a ninguém. Tudo aquilo que eu acabara de ouvir sobre o amor para mim era novidade ou coisa de novela, de livro, sei lá. Soava estranho. Eu sou um cara estranho.

Na carta, ele também falava das cicatrizes que ele carregava e do tanto que tinha se rasgado de amor, dos sacrifícios que ele precisou fazer, das noites que ficou sem dormir, de como era difícil toda aquela distância entre eles, dos abraços apertados, do carinho desmedido e da saudade absurda que parecia querer lhe enlouquecer dia e noite, noite e dia. Dizia que tudo doía: peito, juntas, cabeça, olhos. Um horror. E que ver tudo aquilo se apagando tinha um efeito devastador na sua vida. Ele queria ter tido mais tempo. Ele achava que ainda podia dar certo. Ele estava procurando a luz. Ele pensou ter encontrado. Mas, de novo, era só ele e a escuridão.

- Ainda está tudo aceso aí, eu falei baixinho.

Ele olhou nos meus olhos e não falou mais nada. Dobrou o papel, enfiou no bolso da calça, fumou outro cigarro e saiu sem se despedir de mim.

E eu fiquei ali no escuro, torcendo para tudo acender outra vez.

domingo, 21 de fevereiro de 2016

Em São Paulo já tem carnaval que eu sei

A cidade de São Paulo se rende ao carnaval

Agora que o carnaval finalmente acabou e que já não esbarramos mais com piratas, Frida Kahlo e bêbados agarrados numa garrafa de skol beats no metrô é que eu me sinto um pouco mais à vontade para escrever sobre a folia de Momo. Só que, meu, eu vou falar do que eu vi lá na terra da garoa, lá na cidade que Vinícius de Moraes apelidou de túmulo do samba, São Paulo. De antemão, já aviso que o poetinha estava errado. Injustiça, crueldade ou pura sacanagem mesmo chamar a maior cidade do nosso país de túmulo do samba. Ao menos nos dias de hoje. Ouso arriscar a dizer que os paulistanos, que agora descobriram as ruas como palco da maior manifestação popular do planeta, podem vir a ser os responsáveis pela renovação do carnaval de rua nos próximos anos. Digo isso com uma certa propriedade, já que passei praticamente os últimos três anos na ponte Rio-São Paulo e ao menos uma vez por mês eu baixava lá pelas bandas do Tietê. Tudo por amor, óbvio.

Durante esses três anos, tive a oportunidade de conhecer um outro circuito, diferente daquele que eu já conhecia de Vila Madalena, Pinheiros e Morumbi. Desci a Augusta, peguei a Consolação, fiquei bêbado na Roosevelt, fui feliz na Benedito Calixto, cruzei a República e comi uma feijoada num samba quente em plena praça Dom José Gaspar, atrás da biblioteca Mario de Andrade, num sábado frio de agosto. De uma outra vez, fui numa roda de samba que acontece todas as sextas-feiras bem em frente à Paróquia Nossa Senhora da Achiropita, na Rua Treze de Maio, lá pelas bandas da Bela Vista. O samba era de raiz, tinha uma gente bamba, italiano da Mooca, uma mistura boa, todo mundo na rua, cerveja gelada e era bonito de ver. Soube também do sucesso que faziam os ensaios da Vai Vai, uma das escolas de samba mais tradicionais de São Paulo e que, mesmo sendo uma das mais tradicionais, os ensaios aconteciam na rua. O trânsito dava um nó. Isso em falar no samba da vela, mas lá eu não fui.

No carnaval de 2014, conheci o Jegue Elétrico, um bloco que saía da Praça Roosevelt, onde ficam alguns teatros, como Sátiros e Parlapatões. O bloco não tinha um carro de som e, aparentemente, nem estrutura suficiente para sacudir a massa. O que existia de equipamento ficava em cima de uma bicicleta colorida e iluminada e de onde uns gaiatos se revezavam no microfone. O bloco demorou umas duas horas percorrendo uns 800 metros apenas. Juntou pra lá de mil pessoas. Todo mundo contente. Era carnaval.

Vale do Anhangabaú tomado pelos foliões


Eu já tinha gostado do clima uma dia antes, quando estive com um grupo de amigos na Benedito Calixto, uma outra praça, só que menos underground, onde vende um tal de buraco quente, que nada mais é que um sanduíche de carne moída deliciosamente temperada e servida num pão francês com um buraco no meio. Daí o nome. Na Benedito Calixto rola uma feira de antiguidades todos os sábados, com direito à roda de choro, um povo descolado, descontraído, bacana mesmo. Foi lá que vi os primeiros paulistanos fantasiados. Meio tímidos ainda, é verdade, como se não soubessem ao certo o que estavam fazendo, mas fantasiados. Bem legal, eu achei.

Já em 2015, fui apresentado ao Tarado Ni Você, um bloco que desfilava pela segunda vez apenas e que sai da esquina da Ipiranga com a São João, trecho ali no centrão velho imortalizado por Caetano Veloso e que só toca músicas do... Caetano Veloso, ora bolas. Quando eu cheguei por ali eu nada entendi. Ou melhor: entendi tudo. Uma multidão de paulistanos seguindo o trio que percorreu as ruas e avenidas de uma cidade escondida entre os arranha-céus e que parecia esquecer seu cinza e se deixava colorir com toda aquele energia que só o carnaval de rua tem. Teve catuaba, uma mania entre os paulistanos, teve beijo na beijo na boca, teve êta, êta, êta, é a luz de Tieta. Teve bunda de fora, suor, chuva, azaração, um bagulhinho bom, uma energia contagiante e a filha da chiquita bacana, porque ela não haveria de faltar. Eu me diverti.

Esse último ano, lá estava eu de novo em São Paulo. Mais por circunstâncias da vida do que por outra coisa qualquer. Dei de cara com o Ilú Obá de Min, um bloco percussivo feminino afrobrasileiro. Estávamos eu e meu filho número dois. Na véspera, Elza Soares havia participado de um cortejo carnavalesco com o Ilú Obá de Min. Tudo organizado, infraestrutura, carro de som, mulherada arrepiando na percussão, brilho, sol, muito sol, um calor que ninguém acredita que faz em São Paulo e muito ponto de macumba. Samba ou marchinha não tinha. Lembrei do Vinícius e saí de lá com a sensação de que eu teria achado muito mais legal o Acadêmicos do Baixo Augusta, bloco que tem como rainha ninguém menos que Alessandra Negrini, despertando tudo quanto é fantasia. E tem samba no pé. Não preciso falar mais nada. Ou preciso?

Foliões paulistanos

Na terça-feira de carnaval resolvi me juntar à massa de adoradores de última hora - ou não - de David Bowie e baixei no Tô de Bowie, um bloco em homenagem ao cantor inglês que morreu recentemente. Não me arrependi. Foi impressionante ver uma multidão brincando, ocupando as ruas próximo à Praça da República, ao Theatro Municipal de São Paulo, elogiando o Haddad e lotando o Vale do Anhangabaú. Não vi uma briga, uma confusão, um sinal sequer de falta de respeito. Muito pelo contrário. Também não vi quase ninguém fazer xixi na rua e nem presenciei cantada barata. Tinha cerveja de marcas variadas, não tinha cercadinho, não vi truculência de guarda municipal, não teve bomba de efeito moral, nem ninguém com a bunda roxa por ter apanhado de cassetete. Juro que não vi. Também não vi samba, confesso, Vinícius. Nem uma marchinha sequer. Senti falta, apesar de ter adorado ouvir Let's Dance ecoar acima do corredor Norte-Sul da cidade que não para.

Não sei se ano que vem estarei mais uma vez em São Paulo durante o carnaval. Tomara. É um carnaval diferente, que mistura rock com axé, arrocha com Sidney Magal, brega e coisa e tal, mas que lembra um pouco o clima bom do carnaval do Rio de Janeiro há uns 15 anos, quando também redescobrimos as ruas. Ok, Vinícius, concordo que falta um pouquinho mais de samba e uns clássicos como Carinhoso, do mestre Pixinguinha, para emocionar a paulicéia que é para lá de desvairada. Só isso. Mas eles vão chegar lá. Pode anotar.



Infinito é o mar

Corre lento alguma coisa em mim feito um rio caudaloso à procura do mar.
Às minhas margens, versos, pontes, restos de amores,
poças d'água onde insisto em chafurdar meus pés.

Às vezes chove em meu leito uma chuva forte, uma saudade que machuca,
que aperta o peito e me desfaz em correnteza.
Neste rio mergulham as Ofélias que me afagam o corpo,
me arrastam e me afogam até desaguar.

Metade de mim é este rio.
Infinito em mim é o mar.