sábado, 24 de setembro de 2011

eco ou "para ler repetidas vezes"

E se viesse a poesia que eu tanto espero
nem sei se saberia escrevê-la
sequer talvez nem pudesse percebê-la
eu me ocupo demais com besteira.
bobagens

Pode ser que esta poesia nem chegue
feito a carta que se escreve e se deixa perder no caminho
feito a água que corre sobre o limo das pedras no riacho
e se acomoda quando chega na represa.
triste destino

Talvez sejam apenas pequenos versos tímidos
mínimos detalhes, até mesmo despercebidos,
destes que a gente olha mas não vê
porque se escondem
por quê?

Mas quem sabe sejam versos quentes,
como os dos amantes que se deixam levar por um sopro na nuca
e se rendem ao contato da carne, esfregando a pele na pele,
chupando as entranhas na dança dos corpos.
rima profana

E se forem versos sagrados, imaculados,
destes que falam de Deus, que contêm a verdade da vida,
com mensagens de esperança e a certeza de um novo dia
eu acho que não seriam versos.
homilia.

Às vezes é só uma frase que não sai da cabeça,
uma oração sem sujeito, um verbo sem sentido
palavra por palavra martelando soltas no ar
corrente de vento que repete sempre os mesmos versos.
feito eco.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Um silêncio ensurdecedor

A última coisa que ele ouviu foi um grito agudo, histérico, estridente, inquietante. Daqueles de pavor. E então veio a náusea, o vômito, o desespero e aquela dor que estourava-lhe os tímpanos. Era cedo ainda. Não passava das sete da manhã de um dia quente de verão no subúrbio esquecido e maltratado do Rio de Janeiro. Chegou na janela. Não havia uma única nuvem no céu. Lá embaixo, a fila no ponto final do ônibus da linha Abolição-Copacabana era de dobrar o quarteirão com as barracas de praia e os chinelos de dedo e as pranchas de isopor e os sanduíches de pasta de sardinha com pão dormido esperando por um lugar ao sol.


No botequim da esquina, o cheiro de café fresquinho e os ovos coloridos no balcão atraíam a fiel clientela. Um coroa de cabelos grisalhos e olhos fundos de desesperança tirou do bolso da camisa azul displicentemente abotoada umas poucas moedas. Parecia pedir um trago, um gole de cachaça àquela hora, mal começava o dia. Sem esboçar qualquer reação, o cearense que trabalhava no boteco sabe-se lá há quantos anos, esticou o braço, pegou um copo, desses de geleia, entornou uma dose generosa da mais pura aguardente, recolheu uma xícara no tempo exato em que o coroa bebia de um só gole a pinga, serviu outra dose e deixou a garrafa ali por perto. Até que o tal coroa pegasse o ônibus, mais duas ou três doses seriam servidas. E outras tantas xícaras de café e não sei quantos pães na chapa. E cigarros, muitos cigarros. O cearense não entendia como aquelas pessoas conseguiam fumar tanto logo pela manhã.


Do alto daquela janela, ele, que já não conseguia escutar mais nada, sequer entendia o que estava acontecendo. O mundo externo havia se calado. Não havia as buzinhas, as freadas, os apitos, os latidos do cachorro da vizinha ao lado ou a música do radinho de pilha do faxineiro que recolhia o lixo no corredor. Nada. O único barulho que ele ouvia era o que sua mente cismava em fazer. Fruto da confusão mental que lhe tirava o sono e transformava suas noites um suplício interminável. Era quando teimava em dizer para si mesmo as verdades que ele considerava absolutas, incontestáveis, imutáveis. Então vinha a verborragia, a discussão, muitas vezes agressiva. Chegava mesmo ao ponto de partir para a briga sem argumentar o que estava certo ou errado. Pouco importava quem tivesse razão. Porque não havia ninguém. Muito menos razão. Era só ele ali naquele apartamento.


Quando se deu conta de que poderia ter ficado surdo veio junto o desespero. Tentou gritar, pedir socorro, mas teve a nítida impressão de que ninguém poderia ouvi-lo. Nem os que estavam na fila do ônibus, nem o cearense do bar, nem a vizinha ao lado e muito menos o faxineiro que recolhia o lixo. Ouviu um riso sórdido vir de dentro dele, como uma gargalhada debochada, destas que nos pegam de surpresa e nos deixam sem reação. A garganta parecia apertar, chegava mesmo a doer, e a voz não saía, não reverberava. Apenas um leve murmúrio, feito um lamento, não sei. Ele também não sabia.


Foi quando debruçou no parapeito e chorou copiosamente. Soluçava forte, feito criança desamparada que acabou de levar uma surra. Ele erguia os braços pesados, gesticulava, balançava a cabeça para cima e para baixo num ritmo eletrizante e procurava olhar para o alto, tentando fixar o olhar no infinito, como se implorasse por ajuda divina. Uma tortura. Dava pena de ver. As lágrimas escorriam molhando toda a face, a barba por fazer, o peito desnudo, o cheiro de suor da noite que passou acordado e todo aquele silêncio ao redor. Como se o mundo já não tivesse mais nada a lhe dizer. Ficou então parado, imóvel, até conseguir se acalmar, até que seus batimentos cardíacos voltassem ao normal. Um sopro de vento levantou as cortinas e o fez sair da janela. Voltou para a sala, acendeu um cigarro, leu uma ou duas notícias no jornal. Só desgraça, pensou. Esticou o corpo cansado no sofá, fechou os olhos, mas não conseguiu dormir. Apesar de todo o silêncio que fazia lá fora.


É que dentro dele algo continuava gritando.

sábado, 10 de setembro de 2011

Mosaico

Se eu pudesse pedir que você ficasse
Eu lhe mostraria outros lugares ainda mais bonitos.
Se eu pudesse impedir que você se fosse
Eu criaria as rimas mais preciosas,
Eu deixaria tudo em verso e prosa,
Eu juro.
Só para você,
Se eu pudesse.

Se eu pudesse estancar a minha dor,
Fazer parar agora,
Jogar os restos todos fora.
Cicatrizar.
Esquecer o que passou,
Tirar dos ombros o peso do mundo,
Limpar em mim o que ainda está sujo
E beber da água que me purifica.

Eu ficaria então mais leve.
Eu viveria mais alegre.
Eu teria enfim um porquê.

A vida parece não me dar sentido,
Parece até mesmo brincar comigo,
Feito que fosse me enlouquecer.

Se eu pudesse ia agora me banhar na fonte,
Dos pés à cabeça me lavar por inteiro,
Deixar-me levar numa outra poesia.

Mas a vida não me deixa escolher.

Ela finge permitir o fluxo
E me confunde com tantos caminhos,
Me coloca num redemoinho,
Um labirinto de decisões.

Se eu pudesse me fazer correnteza
Eu ia encher meu peito de ar,
Descer as curvas do rio sem medo,
Deixar meus restos de encontro ao mar.

Só então ia juntar meus pedaços,
Ia colar caco por caco,
Feito um mosaico de mim mesmo.

Como se eu pudesse me completar por inteiro.

(Mas sem você eu não posso)

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Quando a paz é uma farsa

Não é de hoje que eu estou com a sensação de que o Rio de Janeiro vive uma farsa. A chegada das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) nas comunidades cariocas aconteceu com o apoio maciço da mídia. A tal pacificação nos foi vendida como algo triunfal, uma grande vitória do Governo do Estado contra o crime organizado. A emblemática invasão dos policiais na Vila Cruzeiro, que culminou com imagem de uma bandeira com a palavra paz hasteada no alto do morro, em pleno caldeirão que é o Complexo do Alemão, em novembro do ano passado, ilustrou inúmeras reportagens e vídeos publicitários do nosso governo. Um verdadeiro marco. Não se falava em outra coisa na cidade e a repercussão alcançava esferas internacionais. Sede dos Jogos Olímpicos de 2016 e palco de jogos da Copa do Mundo de 2014, o Rio de Janeiro, mais do que nunca, se transformou na meca para qualquer marqueteiro de plantão. E como política infelizmente não vive sem um marqueteiro, a imagem positiva que o governo tanto queria estava, enfim, criada.



Muito embora eu tenha me decepcionado com o episódio envolvendo a corporação do Corpo de Bombeiros, ainda acredito na seriedade da grande maioria dos que servem e arriscam suas vidas no Batalhão de Operações Especiais, o temido Bope. Só nunca entendi muito bem como é que ao invadirem os morros quase nenhum bandido era preso. Um ou outro pé de chinelo e olhe lá. Eu sempre nutri a impressão de que o Bope só invadia as favelas depois de tudo acertado com a bandidagem local ou com o dono do morro, vai saber. O certo é que as UPPs foram se espalhando pelas mais diversas comunidades do Rio de Janeiro, as autoridades se vangloriavam, a sociedade parecia estar mais segura, e a mídia cumprindo seu papel de vender a história da pacificação. Mas e os bandidos, onde estavam? Evaporaram? Esta era pergunta que nunca me saía da cabeça. Até porque, ainda não esqueci a cena dos traficantes fugindo no alto da Vila Cruzeiro sem que nenhum deles fosse capturado. A sensação que eu tive ao ver aquela cena foi parecida com a de um coito interrompido. A gente estava quase lá.



Escrevo isso porque nos últimos dias os jornais têm noticiado a volta do tráfico ao Complexo do Alemão após denúncias de um conflito entre moradores da comunidade e militares da chamada Força de Pacificação. A madrugada da última terça-feira, dia 6 de setembro, foi violenta, com um intenso tiroteio na área, que levou de volta à região o clima de terror e insegurança que aparentemente era coisa do passado. Depois de mais uma noite de conflitos, o secretário de segurança reforçou o policiamento e nesta quarta-feira, feirado nacional, foi obrigado a admitir que os traficantes haviam voltado à comunidade. O governador até agora não se pronunciou. Vergonha? Mas isso é até compreensível, já que para os vaidosos não é nada fácil assumir que algo não deu certo. Ainda mais em se tratando de um tema tão delicado quanto esse. Daí o silêncio, pode apostar.



Foi em silêncio que eu voltei para a casa depois de ter dado plantão no jornal neste Sete de Setembro. Não quis ligar o rádio, não tirei o ipod na mochila, acendi um cigarro e voltei pensando que, além das marchas contra a corrupção, que vêm tentando reacender uma certa chama de esperança num Brasil, há a injustiça maior que é viver numa cidade entregue ao crime organizado. Tudo fruto da corrupção, da ambição desmedida, do descaso, da falta de seriedade dos nossos políticos. Morro de raiva em ver uma cidade linda feito o Rio de Janeiro, cantada em prosa e verso como maravilhosa, porta de entrada de um país tão rico e promissor feito o nosso, viver a mentira de uma pacificação. Isso para mim é inadmissível.



Já não é de hoje que chegam denúncias de confrontos entre policiais das UPPs e as comunidades. Há cerca de duas semanas um amigo meu, morador do Leme, relatou um ataque a uma viatura da PM numa das principais ruas do bairro. Não é de hoje, também, que no caminho do jornal até minha casa as cabines policiais ficam fechadas e vazias durante a madrugada e, não raro, vejo uma patrulhinha parada e também vazia em frente às tais cabines. Será que a PM está com medo? A sensação de abandono e insegurança é enorme. Daqui da minha janela volta e meia ouço tiros na direção de Vila Isabel, onde fica o Morro dos Macacos, outra comunidade que foi pacificada recentemente. Os bailes funks no Lins são precedidos por rajadas de metralhadoras, a venda de drogas continua no morro e no asfalto da zona sul à zona norte da cidade. Os assaltos também. Só quem é cego não vê.


Mas ouve, até porque, as balas traçantes nos céus do Alemão anunciam que o pesadelo ainda não terminou.

domingo, 4 de setembro de 2011

A parte invisível que me cabe

Chegou ao ponto de sufocar. O peito doía feito tivesse apanhado bastante. O nó na garganta, o choro contido, as mãos geladas e o outro sempre ali defronte a lhe perguntar o que há. Ele já sabia de praticamente tudo, mas o outro vivia lhe fazendo muitas perguntas. Uma curiosidade infinita. Um questionamento atrás do outro. Um verdadeiro inquérito. Chato. Tenso. Frio. No lugar das respostas, silêncio.

Ficou quase dois dias inteiros sem falar. Não saiu de casa, não atendeu interfone, desligou celular, tirou telefone do gancho. Ficou mudo. Nem um murmúrio, nem um ai, nada. Nem ele ouviu o som de sua voz. Esvaziou a mente, limpou a sujeira, sacodiu a poeira, deitou, tentou dormir, levantou, caiu. Levou junto o outro, que estava sempre ali a postos e parecia enlouquecer com tamanha indiferença. Ele havia conseguido erguer uma barreira entre os dois, como se não quisesse mais ver o outro na sua frente.

Não sou e nem quero ser invisível, dizia o outro. Dizia também que não precisava viver escondido, trancado a sete chaves, segredo de estado. Não era nenhum criminoso, fugitivo ou um ser esqueroso, portador de doença contagiosa. Nada disso. Ele existia, sim, e amava, sim, e sorria, sim, e cantava os versos da alegria, dia e noite e noite e dia. O outro também sofria, sentia na pele as feridas, tentava driblar as tantas dores da vida. Aquilo tudo o incomodava demais. E mais o silêncio. E mais a distância. Foi então que o outro, já quase louco, começou a se dar conta de que com ele estaria cada vez mais sozinho. Por mais que o outro precisasse dele.

E ele - que na verdade era o outro - para o outro - que na verdade era ele - para todos os efeitos não existia.







sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Vertigem




Definitivamente agosto é um mês estranho. Desde sempre eu ouço falar que é o mês do desgosto, mas nunca havia sentido o peso de um agosto feito este que passou. Confuso, com escândalos na política, com quedas de ministros, com tragédia num bonde de Santa Teresa, com gente partindo, outras morrendo, outras tantas para nunca mais. O mês parecia mesmo se arrastar. A morte de dois jornalistas muito queridos por todos na redação onde eu trabalho fez de agosto não só o mês do desgoto, mas um mês de tristeza e saudade.

Eu sou destes que morre de saudades.

Agosto foi tão estranho que uma tia minha, irmã mais velha da minha mãe, faleceu, aos 72 anos de idade, depois de ter sido desenganada pelos médicos aos cinco anos. Eu, que achava que ela nunca ia morrer, fui pego de surpresa em plena sexta-feira, 19 de agosto, com a noticia de que ela havia morrido. Morreu dormindo, não sentiu nada, não sofreu. Já tinha sofrido demais antes. Uma história tão triste que não me cabe aqui contar. Até porque, esta minha tia tinha como uma de suas principais características - a principal era a gulodice - o jeito alegre de encarar a vida. Como se debochasse das porradas que a vida lhe dera. E garanto que não foram poucas. Se eu parar para pensar, a vida desta minha tia foi uma sucessão de agostos.

Pensei nisso e em tantas outras histórias desta minha tia na noite daquela sexta-feira, enquanto voltava de carro para a redação, depois de ter providenciado seu atestado de óbito.

Era agosto, fazia frio e aquele atestado de óbito ao meu lado me dizendo que eu nunca mais ia ver minha tia.

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Hoje vi umas fotos de Paris feitas do alto da torre Eiffel. Já tinha visto centenas de fotos feitas do alto da torre Eiffel, claro. Mas nunca fotos feito aquelas. O talento que o fotógrafo se permitiu revelar naquelas imagens me chamou a atenção. Não que eu seja um expert em fotografia, crítico, ou algo do gênero. Longe de mim tamanha erudição. Vai ver as fotos nem são isso tudo. Embora desconfie que sejam muito mais, até. Mas é que ainda guardo uma certa sensibilidade que me permite perceber que o que teria tudo para ser lugar comum se sobressai, se destaca, provoca os sentidos. É quando a vida se eterniza em forma de arte. É quando somos capturados e nos deixamos levar.



Eu, que me deixei levar vendo aquelas fotos, tive a nítida sensação de sobrevoar Paris. Talvez influenciado por uma vontade incontrolável de conhecer aquela cidade ou talvez pelo efeito do cigarro que eu havia fumado, não sei. Só sei que cheguei a ficar tonto ao sobrevoar Paris. Uma espécie de vertigem. Uma vertigem boa. Feito um sonho que eu tive quando criança, onde eu voava pela casa.

Era setembro e os sonhos em setembro são sempre mais bonitos.