domingo, 20 de agosto de 2017

Material humano - ou Como lidar com a solidão

Das coisas que mais sinto falta aqui em Brasília é material humano. Fora o pessoal do meu trabalho, os amigos dos finais de semana, os primos vez ou outra, aqui é difícil esbarrar com alguém para trocar um simples oi, tudo bem, bom dia, boa tarde ou boa noite. Que dirá trocar uma ideia. Não ando de ônibus (transporte público aqui é piada), não cruzo esquinas (elas não existem), não atravesso uma rua sequer. Até porque, aqui não tem rua, aqui tem quadra. É tudo muito organizado, planejado, vazio, grande, monumental. Tudo meio igual. Confunde quem chega assim, de repente, que nem eu. Dá dez da noite e já não tem mais ninguém andando entre as quadras. Dez da manhã também não tem, não se iluda. Sigo sozinho. Sinto falta de gente. Meus amigos daqui também sentem que eu sei. 

Nessa época, Brasília fica ainda mais bonita. Sim, nossa capital é muito bonita. Tem o traço do mestre Niemeyer, tem o céu mais incrível do mundo, uma luz indescritível e um pôr-do-sol e uma lua minguante, nova, crescente ou cheia, que são espetáculos à parte. Isso sem falar nos ipês, que colorem tudo de roxo, amarelo e branco ao redor, e a vista, que parece alcançar o infinito e além. Um verdadeiro convite à contemplação, ao silêncio e à solidão. Coisas a que não estava acostumado. 

Eu, curioso que só, bom de papo, bom ouvido, sempre ligado no que poderia resultar uma boa história, transformar tudo em contos, poesias, de repente me vejo forçado a exercitar a solidão e esse silêncio absoluto. Estranhei e ainda estranho, confesso. Mas já estou começando a gostar de conviver comigo mesmo. Até outro dia, eu dizia que precisava sair de casa para ver gente porque eu não me aguentava. Eu falo demais comigo mesmo. Eu me irrito. 

Neste domingo, como de costume, fui acordado pelo coronel, meu pai. Brigamos, como de costume também, mas depois fizemos as pazes. O ritmo sempre foi esse. Oremos que um dia isso mude. O fato é que depois do toque da alvorada, eu não consegui mais dormir. Aquele dia lindo lá fora, tudo azul, sem uma nuvem no céu, barcos no Paranoá, foi a dica para eu colocar minha sunga, pegar toalha, óculos, boné, celular e exercer meu papel de filho de Deus na beira da piscina. Sozinho, como de costume. 

O sol estava de rachar, o lugar já estava meio cheio, duas loiras com as bundas - uma murcha e outra bem razoável - para cima, uma senhora meio gordinha, mas bem resolvida, de biquíni e a barriga de fora, um marombado, a namorada do marombado, uma lésbica com cara de poucos amigos, dois maconheiros chapados, um casal cansado na faixa dos seus quarenta e tantos anos com uma filha pequena, magrinha, loirinha, tristinha, e um outro casal, hétero, em princípio, jovens e bem bonitos os dois, que ocupava uma das únicas mesas com ombrelone. Perto deles tinha uma cadeira e uma mesinha sobrando. 

- Posso usar?, perguntei.

- Pode. 

- Obrigado, respondi.

E não mais nos falamos. 

Desde que vim morar aqui nesse deserto, carrego comigo meus fieis companheiros: celulares, cigarros, isqueiro, uma garrafa d'água e mais recentemente introduzi uma caixinha de som que eu comprei aqui na Feira do Paraguai, uma espécie de camelódromo que eles preferem chamar de Feira dos Importados. Tudo muamba. Só sei que o som é bom à beça e sempre que eu vou para a piscina, evita que eu ouça o danado do sertanejo que cismam em botar para tocar aqui por essas bandas. Ouço as músicas que eu quero, pego meu sol, dou umas braçadas na piscina e agradeço ao cara lá de cima por estar me deixando saber como é a vida desse povo privilegiado, bem nascido, bem alimentado, supremacia total. Brincadeiras à parte, não me iludo, nem me contamino. Também carrego comigo desde que vim morar nesse deserto a certeza de que tudo é passageiro. Até o silêncio. 

Eu já tinha dado alguns mergulhos quando vi chegar um pai com sua filha. Ele careca, peludo, com a toalha estendida nas costas, e ela moreninha, espevitada, com uma boia cor de rosa na cintura. Vi também quando os olhinhos da menina que chegava cruzaram com os olhinhos da outra menina, loirinha, magrinha, tristinha, filha do casal cansado. Rapidamente, a menina que até então estava meio sorumbática, entediada, muito provavelmente porque estava se sentindo sozinha, nadou até a outra borda para dar as boas vindas para aquela que chegava. Já são amigas, pensei.

Que nada. Nunca haviam se encontrado antes na vida, mas emendaram num papo tão gostoso, como se fossem amigas de longa data. Uma delícia de cena bem ali na minha frente que eu esqueci até da música que estava tocando. Elas se apresentaram. Uma morava no 305 do bloco nove e a outra no 204 do bloco três. Uma tem seis anos e a outra sete. Uma é filha única e a outra tem dois irmãos, mas eles são implicantes e só gostam de jogar bola. Uma já tinha almoçado e a outra estava com fome. Uma cochicha. Outra ri. As duas mergulham, as duas pulam, as duas conversam. Os pais só de longe. 

E eu ali, dentro d'água, sozinho, achando a maior graça naquelas duas, que pareciam nem se dar conta de que estavam em Brasília e que em Brasília as pessoas não agem assim. Olhei ao redor. Todo mundo calado. Cada um na sua bolha. Como se o do lado não existisse.

A gente tem muito o que aprender com essas crianças.     




quarta-feira, 16 de agosto de 2017

Litoral

Feito árvore, que dança com o vento ante a muralha de pedra, ali em frente, tronco firme, raiz forte, o sopro que vem do Norte, galhos a abraçar o céu vermelho, pincelado do barro de quem pisa a terra, bato no ritmo acelerado os meus pés descalços nesse chão.

É dia.

Nos arredores ainda há silêncio e, por sorte, eu acabo de chegar, vindo sabe-se lá de onde, tanto tempo andando que eu até já me esqueci.
O ar é seco, a linha é reta, não existe palavra certa e determinadas coisas não quero mesmo mais lembrar. Outras tantas gosto de saber que vieram comigo até aqui, acompanhando a correnteza desse rio que é a vida.

A minha.

Ontem, antes deles aparecerem, me fiz pedra de limo verde mais uma vez, que era para ficar parado e deixar o rio passar. Eles se foram, enfim.
Hoje, de novo sozinho, pouco antes da hora de voltar, saltei dessa pedra e desaguei no mar, visitei meus oceanos sempre tão profundos, nadei o quanto pude, até me espalhar nas ondas de espumas brancas que brincavam nas areias grossas do seu corpo, terra à vista, litoral.

Logo ali em frente, a árvore dançava com o vento ante a muralha de pedra.





quarta-feira, 9 de agosto de 2017

Pedra de rio

É como se algo tivesse se rompido em mim.
Um leve estampido, um tiro certeiro,
carcarás em céu azul sobrevoando o barro vermelho
e a bala atravessando meu peito ali exposto.
Nu.

Entre tantos outros, eu era só mais um corpo.
Uma mera estatística, um número a menos,
um leve rascunho em grafite barato,
uma página em branco,
e todo aquele silêncio que jamais entendi.

Porque só eu ouvia os gritos que vinham de dentro.
Ecos me sussurrando seus lamentos,
uma espécie de suplício, um gosto amargo doce em minha boca,
e o gesto brusco a me vendar os olhos.
Tirei, então, o véu.

Naquele instante, o que era novo se descortinou.
Feito água limpa que acabara de brotar da fonte,
molhando meus pés, lavando minha alma.
E eu ali, pedra de rio, parado,
deixando a correnteza levar tudo embora outra vez.