Há que se tentar o novo.
Nem que seja um verso,
um som mais grave,
um gesto mais suave,
ou parar no ar feito um beija-flor.
Experimente.
Faça algo que possa parecer sem nexo.
Pratique sempre um pouco mais de sexo.
Seja explícito, curioso, carinhoso,
diga que está a fim, vai por mim.
Há que se encantar mais uma vez.
Encontrar um outro amor,
deixar o passado nas esquinas,
caminhar por ruas desconhecidas,
sentir a pele queimar ao sol.
Siga em frente.
Mesmo em dias tão estranhos,
siga em frente.
Mesmo quando tudo ao redor é não,
siga em frente.
Encontre-se...
o quanto antes.
sexta-feira, 8 de maio de 2015
Síndrome do pânico
Vieram me contar que lá pelas bandas das montanhas infinitas das minas gerais, há muito pouco tempo atrás, havia uma menina moça que sofria de pânico, essa síndrome que mete um medo danado. Disseram também que essa menina moça era muito bonita, apesar de franzina. Dona de cabelos longos, rosto pálido, braços finos, cotovelos ressecados, mãos maltratadas, unhas roídas e os olhos, estes sempre perplexos, virados para os cantos da casa simples de piso frio, umas lajotas desbotadas, manchadas de cera barata. Os pés, sempre descalços e úmidos, grudados naquele chão. O mundo lá fora gritando que já era mais do que passada a hora e o coração, sempre agitado, a sufocar-lhe o peito e a dizer-lhe não.
Ela tinha medo de tudo. De fantasma, de escuro, de barata, de cachorro, até de gente. Mas não era nenhum desses medos que a apavoravam agora. Quando criança, brincava na rua, espalhava alegria, corria, dançava, pulava e se divertia. Sabia subir em árvores, ficava de ponta cabeça, virava cambalhotas, gostava de ouvir histórias e de uma boa cantoria. Tagarelava, contava causos, piadas, imitava vozes, ralava os joelhos e ao invés de chorar, sorria. Era a dona da gargalhada mais desconcertante e debochada daquela cidade com pouco mais de mil habitantes. Todos a conheciam. Todos a adoravam. Todos sempre queriam estar com ela.
Naquela época o céu pintava a vida de azul e aos olhos dela tudo era ainda mais bonito. O sol não castigava, a chuva não faltava, a fome não doía. Tempo bom aquele em que todo mundo se respeitava, ninguém se machucava, todo mundo se ajudava, um cuidava do outro e as manhãs chegavam mansas, anunciando mais um lindo dia que então passava até que vinha a tarde e soprava a brisa. Revoavam os pássaros. Anoitecia. Lua clara bem lá no alto e ao voltar para a casa, o colo quente da mãe, a comida farta no fogão e o beijo carinhoso do pai. Era assim naquela época.
Ninguém sabe bem ao certo, nem ela, quando foi que tudo mudou. Ela apenas lembra de ter acordado sobressaltada numa madrugada em que chovia, janela aberta, quarto molhado, portas batendo, ventania, falta de ar. O coração disparou, veio na boca, voltou, uma vontade de chorar, de sair dali, de berrar para que o temporal passasse e ela pudesse voltar a respirar e a dormir sossegada até amanhã de manhã. Quando levantasse, ela queria encontrar tudo como antes, no mesmo lugar. O mesmo céu, o mesmo azul, o mesmo jeito de enxergar.
Pouco tempo depois dessa madrugada ela já não saía mais de casa. Seus ombros se curvaram, suas sobrancelhas arriaram, seu sorriso murchou, a vida não tinha mais graça, era tudo cinza, barro, agonia, nó. Ninguém da cidade entendeu nada. Todos sentiam sua falta. Onde estava toda aquela graça? O que havia acontecido com ela? Ninguém sabia. Nem ela. E o tempo foi passando, cada um foi vivendo a sua história, procurando um final feliz. Só ela havia ficado ali. Paralisada. Entorpecida. Trancafiada em seu mundo. Sofrendo sozinha. Seus nervos estremeciam só em pensar em sair de casa. Foram meses assim. Quiçá alguns anos. Pânico.
Até que um dia apareceu na cidade um circo, desses que rodam o interior do país, com malabaristas, engolidores de fogo, mágicos, palhaços coloridos e todo aquele ar decadente. Montaram a lona na praça bem ao lado da igreja e anunciaram num carro de som estridente o espetáculo daquela noite. "Respeitável público, o Grande Circo Lúdico chegou. Venham rir. Venham se emocionar. Venham se divertir", gritava o locutor. Ela deu um pulo e levantou da cama, calçou as sandálias e foi até ao portão. Um arco-íris nos céus, sabiás cantarolaram, a mãe não acreditou, o pai quase chorou, um vento leve desarrumou seus cabelos e ela então viu a equilibrista na corda bamba, os contorcionistas, a mulher barbada, os anões e o atirador de facas, que era um rapaz bem apessoado, cabelos dourados, braços fortes, lhe sorriu um sorriso farto que fez até sentir arder o rosto. Palpitação. Coração na boca. Rubor. Calor. Amor.
Disseram que naquela mesma noite, depois do espetáculo, ela foi embora com o pessoal do circo. Deu adeus à mãe, pediu a benção ao pai, arrumou as trouxas, tomou coragem e partiu debaixo de um céu estrelado, estrada de terra iluminada pela lua cheia, olhares incrédulos e em seu peito só havia esperança e vontade. Corre à boca miúda que hoje ela voltou a ser feliz e a contagiar a todos que estão ao seu redor. De vez em quando ainda aparece na cidade para se apresentar com a trupe e visitar os pais. Casou com o atirador de facas, aquele rapaz bem apessoado, de cabelos dourados, braços fortes, sorriso farto e vive a mais linda história de amor. É uma das principais atrações do circo. Nem parece aquela menina moça que sofria de pânico e definhava meses e anos dentro de casa com palpitações e tremores. Destemida que só, virou mulher de fibra, deixa-se amarrar numa placa giratória de madeira e, enquanto tudo roda, ela sente as lâminas afiadas passarem rente ao seu corpo seminu. Uma a uma a tirar-lhe fino da pele lisa.
Na arquibancada improvisada, a plateia em silêncio sequer respira, atenta, tensa, em pânico, até romper nos mais intensos aplausos. No picadeiro iluminado, lá está ela sorrindo, tranquila. Sem medo algum.
Foi o que me contaram.
Na arquibancada improvisada, a plateia em silêncio sequer respira, atenta, tensa, em pânico, até romper nos mais intensos aplausos. No picadeiro iluminado, lá está ela sorrindo, tranquila. Sem medo algum.
Foi o que me contaram.
sexta-feira, 27 de março de 2015
Onda
desfaz de mim a sombra e me deixa ver o sol.
me traz a luz do amanhecer,
aurora!
faz de mim o vento, o céu, o sal,
ressaca que arrebenta nas pedras do cais.
segura a minha mão quando eu quiser andar,
guia meus passos pelo chão,
abre meus olhos, revela suas cores,
livra minhas dores,
amores.
me deixa correr para o mar
molha meus pés na foz do rio que deságua .
me transforma em correnteza,
me solta,
me beija.
a mesma onda que me leva,
é aquela que depois me traz.
me leva...
... me traz...
me leva...
... me traz...
me leva...
... me traz...
me leva...
... me traz...
me leva...
... me traz...
me leva...
... me traz...
me traz a luz do amanhecer,
aurora!
faz de mim o vento, o céu, o sal,
ressaca que arrebenta nas pedras do cais.
segura a minha mão quando eu quiser andar,
guia meus passos pelo chão,
abre meus olhos, revela suas cores,
livra minhas dores,
amores.
me deixa correr para o mar
molha meus pés na foz do rio que deságua .
me transforma em correnteza,
me solta,
me beija.
a mesma onda que me leva,
é aquela que depois me traz.
me leva...
... me traz...
me leva...
... me traz...
me leva...
... me traz...
me leva...
... me traz...
me leva...
... me traz...
me leva...
... me traz...
terça-feira, 24 de março de 2015
Tempos de chuva
Finalmente havia começado a chover. Depois de meses de estiagem e ameaça de racionamento, chuva. Muita chuva. A pele já estava áspera, os lábios rachavam, as mãos como se estivessem cobertas por um fino pó, os pés feito cascos e aquele cheiro de podre no ar. A impressão que dava era a de que o mundo tinha passado dos limites. A classe dominante jamais deixaria de ser dominante e ele ali no meio daquele jogo sujo. Enquanto uns gritavam de cá, outros urravam de lá. Uma confusão generalizada, ninguém se entendia, toda hora uma discussão, um comentário mais agressivo, cada um com a sua opinião. Uma nova Torre de Babel, só que desta vez globalizada e com rede wi-fi.
Os telejornais e praticamente toda a mídia tradicional mais parecem os mensageiros do apocalipse. Tudo é tenso. As notícias são anunciadas numa rigidez cadavérica, causando um terror psicológico sem precedentes, insônia, pesadelo, crise nervosa, psoríase e até mesmo morte súbita. Lá no poder, os ratos, os gatunos, os larápios, os espertos, os filhos dos espertos, os netos, a família toda. Um lixo. Era difícil respirar. Para ele, então, que sofria de asma e aquela pressão toda em seu peito só causando peso, suor e dor. Era quando ele abria a janela e o vento soprava para dentro outros ares.
Ele dormia pouco, se mexia muito. O lençol nunca parava na cama, as pernas descobertas, os pés para fora do colchão de molas, a cabeça girando, a mente tentando acalmar e aquela voz aguda interna dizendo todas aquelas coisas que ele já sabia. Quase todas as noites era assim. Ele apagava as luzes, fechava e abria os olhos, se distraindo com o reflexo dos faróis acesos nos carros que aceleravam na rua. O sono não vinha. Deitava e rolava. De um lado para o outro. Até cansar e adormecer. Mas era um sono leve. Logo amanhecia e ao invés de pássaros cantando, buzinas apressadas anunciando que ele já estava atrasado mais uma vez.
Ele levantava, corria para o chuveiro, um banho frio, filete de água escorrendo no rosto para espantar o cansaço e se misturar ao pranto daquele que precisava esquecer o que tinha para ser esquecido. O que doía mesmo era a saudade do que havia ficado para trás. Especialmente naquelas manhãs cinzentas, quando ele se olhava no espelho embaçado e via que restavam apenas algumas peças precisando de encaixes. O trabalho estava uma merda. A arte não lhe dava dinheiro. Todos os que ele amava estavam longe. Ele não estava assim tão só, mas dentro era como se tudo estivesse oco, roído, evaporado. Ele estava seco.
Por sorte, a chuva havia chegado.
quarta-feira, 18 de março de 2015
Para detonar a cidade
Eu não vim aqui falar do kaos, nem dos deuses da chuva e da morte.
Vim aqui dizer que eu tive a sorte de encontrar no meu caminho um pensador.
E que por onde quer que eu ande ele vai estar ao meu lado,
mesmo que eu já não esteja mais aqui.
Assim como ele, eu vim trazer o doce mel da poesia.
O verbo que me rasga a noite.
A harmonia que me invade dia a dia.
O ritmo, a dissonância, a melodia.
Eu vim fazer soar os timbres das canções que eu nem sabia que havia em mim.
Porque o que temos aqui hoje é arte.
É som,
é música,
é o verso da palavra escrita, sílaba por sílaba,
até escorrer pelo canto da minha boca e da sua.
A rima que sussurra em meu ouvido
vem do acorde que te sobe e te arrepia.
Arte que ecoa e transforma e transmuta e atravessa o tempo.
Eternamente provisório é o tempo em minhas mãos.
E nas suas.
Mas do que é feito o tempo?
É a linha tênue entre um instante e outro,
aquilo que entrelaça, que une, que liga
e que de repente despedaça,
desfaz o nó.
O tempo faz a gente virar pó.
E do pó, a gente vira luz
E da luz a gente faz um som.
Para cantar e iluminar essa cidade.
Uma ode à vida, que é essa dança ininterrupta,
constante cultura.
Negra, branca, ameríndia,
Essa mistura amalgamada,
que volta e se junta aqui de novo mais uma vez.
Incessantemente.
Porque já dizia outro poeta: o tempo não pára.
E encontra as canções perdidas de um disco antigo
que nunca deixou de tocar, aqui, ali, em todo lugar.
Para detonar a cidade.
Que feliz cidade é essa?
Vim aqui dizer que eu tive a sorte de encontrar no meu caminho um pensador.
E que por onde quer que eu ande ele vai estar ao meu lado,
mesmo que eu já não esteja mais aqui.
Assim como ele, eu vim trazer o doce mel da poesia.
O verbo que me rasga a noite.
A harmonia que me invade dia a dia.
O ritmo, a dissonância, a melodia.
Eu vim fazer soar os timbres das canções que eu nem sabia que havia em mim.
Porque o que temos aqui hoje é arte.
É som,
é música,
é o verso da palavra escrita, sílaba por sílaba,
até escorrer pelo canto da minha boca e da sua.
A rima que sussurra em meu ouvido
vem do acorde que te sobe e te arrepia.
Arte que ecoa e transforma e transmuta e atravessa o tempo.
Eternamente provisório é o tempo em minhas mãos.
E nas suas.
Mas do que é feito o tempo?
É a linha tênue entre um instante e outro,
aquilo que entrelaça, que une, que liga
e que de repente despedaça,
desfaz o nó.
O tempo faz a gente virar pó.
E do pó, a gente vira luz
E da luz a gente faz um som.
Para cantar e iluminar essa cidade.
Uma ode à vida, que é essa dança ininterrupta,
constante cultura.
Negra, branca, ameríndia,
Essa mistura amalgamada,
que volta e se junta aqui de novo mais uma vez.
Incessantemente.
Porque já dizia outro poeta: o tempo não pára.
E encontra as canções perdidas de um disco antigo
que nunca deixou de tocar, aqui, ali, em todo lugar.
Para detonar a cidade.
Que feliz cidade é essa?
quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015
Impressões sobre o caos I
Eu quero a paz que vem depois de tudo isso,
a luz que me alumia,
a tempestade que cessa,
a porta que abre,
o vento que me refresca.
Eu tenho pressa,
quero tudo no mesmo dia:
a mão que afrouxa o nó,
o abraço que alivia o peito,
o alimento que me sacia.
Então, corre e me oferece uma prece,
uma prenda bonita que seja,
aqueles versos no meu ouvido,
a claridade dos seus olhos mansos
que me deixam ver quem você é.
Rasga a minha roupa suja,
revela a minha face oculta,
veste a minha carapuça,
mas olha para mim e fala comigo.
Encontra aquele que aqui dentro habita.
O mundo lá fora segue em chamas,
uma tremenda loucura,
eu ando meio perdido.
E você?
Fica comigo.
Não vira pro lado.
desliga a TV.
Eles só sabem do caos.
a luz que me alumia,
a tempestade que cessa,
a porta que abre,
o vento que me refresca.
Eu tenho pressa,
quero tudo no mesmo dia:
a mão que afrouxa o nó,
o abraço que alivia o peito,
o alimento que me sacia.
Então, corre e me oferece uma prece,
uma prenda bonita que seja,
aqueles versos no meu ouvido,
a claridade dos seus olhos mansos
que me deixam ver quem você é.
Rasga a minha roupa suja,
revela a minha face oculta,
veste a minha carapuça,
mas olha para mim e fala comigo.
Encontra aquele que aqui dentro habita.
O mundo lá fora segue em chamas,
uma tremenda loucura,
eu ando meio perdido.
E você?
Fica comigo.
Não vira pro lado.
desliga a TV.
Eles só sabem do caos.
quarta-feira, 14 de janeiro de 2015
Pensando em quê?
Eu vivo num lugar hostil. Por mais que o cenário ao meu redor seja dos mais bonitos do mundo, eu vivo num lugar hostil. É violência, falta de assistência, falsidade, cada vez menos oportunidades, pobreza, abandono, corrupção, pouca vergonha, nenhuma educação, rasteira, pernada, todo mundo querendo te derrubar no chão. As coisas andam quentes demais por aqui. Minha mãe tem reclamado sempre que eu chego em casa que o calor está fora do normal, que ela nunca viu um verão assim, que deve ter muita gente morrendo por aí. Eu respondo que sim, digo que as coisas estão realmente estranhas, que na minha opinião o mundo já acabou, que nós estamos apenas sobrevivendo com o que restou e que quando todas as fontes secarem, babau, já era pra nós, humanos, raça desgraçada. Ela arregala o olho bom, faz um muxoxo com a boca, acha que eu não estou falando sério e pede um copo d'água bem gelado.
Eu obedeço.
Tenho visto muita maldade por aí, e confesso, estou meio que anestesiado. É como se eu mergulhasse num mar de xilocaína antes de levantar da cama e sob o efeito anestésico e quase letárgico eu me mantivesse durante todo o dia, até voltar para casa, para dentro da minha fortaleza, no meu aconchego, na minha pseudo segurança, para aquilo que eu reconheço como sendo eu. O mundo é muito mais bonito dentro de mim. É um laço infinito de cor azul turquesa, são flores brancas que eu semeio num jardim e as cartas de amor que eu ainda rabisco sobre a mesa. Minha mãe sabe que existe esse outro mundo em mim, pois as mães sabem de tudo sempre. Ela faz questão de não me deixar esquecer um só instante daquilo que eu devo acreditar, diz que em breve essas coisas todas vão melhorar, que a crise vai passar e que os meninos que há poucos meses resolveram morar na esquina da minha rua vão voltar para suas casas. Eu respondo mal criado que sou que eles não têm casa, pois se tivessem, era lá que estariam agora e não na rua, à mercê da sorte. Eles não querem a morte, ela diz baixinho, enquanto pega o terço e vai rezar.
Eu me calo.
Penso em como ela consegue ser tão simples, encontrar as soluções mais fáceis, acreditar num mundo cor de rosa, criar uma outra realidade. Será efeito dos remédios?, eu me pergunto. Não, ela sempre foi assim, dessas que nunca reclamaram de nada e suportaram bem a dor. Tão diferente de mim, que não aceito, que me revolto, que esbravejo, falo alto, corro atrás daquilo que eu acho que é meu de direito, não engulo sapos, bato de frente, dedo em riste, olho no olho, dente por dente. A vida me transformou nesse sujeito da porta para fora. Criei cascas, usei armaduras, envelheci. Caíram meus cabelos, outros pêlos me nasceram brancos, deixei para lá tantas certezas, quero outra profissão, um recomeço, enquanto vejo no espelho à minha frente o mesmo riso franco que sempre me serviu de âncora todas as vezes que eu quis voltar para dentro de mim.
Pensando em quê?, minha mãe pergunta.
Nesse calor, minha mãe, nesse calor.
Eu obedeço.
Tenho visto muita maldade por aí, e confesso, estou meio que anestesiado. É como se eu mergulhasse num mar de xilocaína antes de levantar da cama e sob o efeito anestésico e quase letárgico eu me mantivesse durante todo o dia, até voltar para casa, para dentro da minha fortaleza, no meu aconchego, na minha pseudo segurança, para aquilo que eu reconheço como sendo eu. O mundo é muito mais bonito dentro de mim. É um laço infinito de cor azul turquesa, são flores brancas que eu semeio num jardim e as cartas de amor que eu ainda rabisco sobre a mesa. Minha mãe sabe que existe esse outro mundo em mim, pois as mães sabem de tudo sempre. Ela faz questão de não me deixar esquecer um só instante daquilo que eu devo acreditar, diz que em breve essas coisas todas vão melhorar, que a crise vai passar e que os meninos que há poucos meses resolveram morar na esquina da minha rua vão voltar para suas casas. Eu respondo mal criado que sou que eles não têm casa, pois se tivessem, era lá que estariam agora e não na rua, à mercê da sorte. Eles não querem a morte, ela diz baixinho, enquanto pega o terço e vai rezar.
Eu me calo.
Penso em como ela consegue ser tão simples, encontrar as soluções mais fáceis, acreditar num mundo cor de rosa, criar uma outra realidade. Será efeito dos remédios?, eu me pergunto. Não, ela sempre foi assim, dessas que nunca reclamaram de nada e suportaram bem a dor. Tão diferente de mim, que não aceito, que me revolto, que esbravejo, falo alto, corro atrás daquilo que eu acho que é meu de direito, não engulo sapos, bato de frente, dedo em riste, olho no olho, dente por dente. A vida me transformou nesse sujeito da porta para fora. Criei cascas, usei armaduras, envelheci. Caíram meus cabelos, outros pêlos me nasceram brancos, deixei para lá tantas certezas, quero outra profissão, um recomeço, enquanto vejo no espelho à minha frente o mesmo riso franco que sempre me serviu de âncora todas as vezes que eu quis voltar para dentro de mim.
Pensando em quê?, minha mãe pergunta.
Nesse calor, minha mãe, nesse calor.
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