quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

De novo

Há que se tentar o novo.
Nem que seja um verso,
um som mais grave,
um gesto mais suave,
ou parar no ar feito um beija-flor.

Experimente.
Faça algo que possa parecer sem nexo.
Pratique sempre um pouco mais de sexo.
Seja explícito, curioso, carinhoso,
diga que está a fim, vai por mim.

Há que se encantar mais uma vez.
Encontrar um outro amor,
deixar o passado nas esquinas,
caminhar por ruas desconhecidas,
sentir a pele queimar ao sol.

Siga em frente.
Mesmo em dias tão estranhos,
siga em frente.
Mesmo quando tudo ao redor é não,
siga em frente.

Encontre-se...
o quanto antes.






quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Não vou reclamar

Há poucos dias prometi a mim mesmo que eu ia parar de reclamar. Nem eu nem ninguém estava me aguentando mais. Não tem sido um exercício fácil. Ainda mais nos dias de hoje, onde o mundo parece desmoronar, os valores estão todos distorcidos - se é que eles, os valores, existem -, o amor não acompanhou a velocidade da globalização, descobriu-se líquido e escorreu pelo ralo. Está todo mundo se matando, homens e mulheres bombas explodindo, genocídio, intolerância, um fuzuê danado.

Nas redes sociais, uma guerra. Um fala X, outro diz que é Y e todo mundo fica discorrendo teses sobre o abecedário inteiro ao mesmo tempo. Maior sanatório aquilo lá. Tem maluco que defende índio, que defende gay, que defende negro, que defende aborto, que defende a maconha. Tem também o bando que defende a liberação do porte de arma, que defende os valores da família tradicional, que defende quem bate em mulher, que defende o Bolsonaro, que é uma figura indefensável. Inacreditável.

Tem uma turma de doido que quando acontece uma atrocidade, manda logo um comentário pedindo para que um tal meteoro venha e acabe com tudo por aqui de uma vez por todas. Acho engraçada a piada, mas não sei se sou a favor de tamanha catástrofe. Penso em mim, nos meus filhos, neto e todos os que eu amo sendo esmagados por um bloco gigantesco de pedra em brasa e não curto. Não deve ser uma sensação nada agradável. Prefiro acreditar que vai ter um jeito. Só não sei qual ainda.

Mas sem querer reclamar e já reclamando, ando, sim, decepcionado. Acho que todo brasileiro está se sentindo desse jeito não é de hoje. Só que minha decepção não se resume ao PT, esse partido que ajudei a eleger mais de uma vez. De início votei convicto. O Brasil precisava mudar. Era muita roubalheira, havia anões do orçamento, compra de votos, estatais vendidas a preço de banana. Uma farra. O Brasil necessitava urgentemente de ética, de um partido com políticos de moral ilibada, honrados e comprometidos com o povo. E o Partido dos Trabalhadores, queira você ou não, representava tudo isso.

Quando inventaram o Lulinha paz e Amor, falando manso, com a barba aparada, ternos bem cortados e um Nizan Guanaes por trás, eu pensei: pronto, os caras vão comer na mão dele agora e vamos consertar esse país. Você certamente vai lembrar que quando o Lula falava, todo mundo baixava o tom de voz para ouvir o que aquele reles metalúrgico tinha para dizer. Mais uma vez, queria você ou não, era impressionante o carisma daquele barbudo semi-analfabeto, nordestino, filho da seca e da fome.

Então, finalmente, ele foi eleito. Eu fui para as ruas, usei botom com a estrela vermelha, camiseta, me emocionei, vibrei e acreditei. Como você, provavelmente.

Pouco tempo depois do operário chegar ao poder, estoura o escândalo do Mensalão, o famoso esquema de compra de votos de parlamentares que fez ruir com os ideais de ética e moral do povo tupiniquim, ingênuo, manso, massa de manobra, e trouxe à tona uma crise sem precedentes. Desestabilizou tudo. Desandou o bolo. Solou.

Lembro de petistas célebres me confessarem que tudo não se passava de um plano de poder, que era condição necessária para se governar e todo esse blá blá blá que a gente sabe que é verdade, mas que o PT, justo o PT, jamais deveria se sujar daquela maneira. Tanto se sujou que atualmente não temos mais o mensalão, mas temos uma Lava-Jato nas manchetes para ajudar na receita dos jornais.

Hoje, a gente vê um senador da República ser preso e um presidente da Câmara com tamanho cinismo ainda solto e pensa em até que ponto esses homens conseguem chegar. Eu sinceramente não sei.

Minha decepção é com isso tudo que eu tenho visto por aí. Não só no Brasil, que fique claro, mas no resto do planeta. Que raça mais desumana é essa? Na minha infância eu lembro de ter pesadelos com Hitler, a quem até hoje eu considero uma verdadeira aberração, a personificação da besta, e os vagões de trens que serviam de câmaras de gás para acabar com os judeus. Filme de terror. Mal sabia eu que ainda haveria coisa pior nesse mundo de meu Deus.

Dia desses deram fim a um rio por aqui. Senti como se fosse uma artéria minha carregada de veneno a me intoxicar lentamente. Assustador esse percurso da morte, eu tenho pensado. Centenas morreram em Paris numa sexta-feira 13 que jamais será esquecida. Imigrantes tentando cruzar fronteiras na tentativa desesperada de fugir dos horrores da barbárie. Irmão matando irmão. O mundo cada vez mais quente, cada vez mais sujo, cada vez mais pobre, tudo secando ao nosso redor e os homens disputando a tapas o troféu da ganância. É muito absurdo.

Que sinais são esses?

terça-feira, 10 de novembro de 2015

Onofre

Era domingo. Aniversário de sete anos da Isabella. O combinado era comemorar na praia, almoçar e, no final da tarde, encontrar os amiguinhos para cantar parabéns no boliche. A menina acordou cedo, antes mesmo que os pais levantassem da cama, e estava que era só animação. Pulava, cantava, rodopiava, dançava pela sala do pequeno apartamento e repetia que aquele era o dia mais feliz da sua vida. 

- Vamos, gente! Vamos porque eu estou muito feliz hoje!

Ela era a alegria da casa. Falante, educada, engraçada, vaidosa. Além de ser uma bonequinha. Morena, miudinha, cabelos encaracolados, olhos curiosos e dona do sorriso banguela mais lindo do planeta. Não havia quem não fosse apaixonado por Isabella. O pai babava. A mãe era só orgulho. Os avós? Corujas, claro. Isso sem falar na vizinhança. 

- Essa menina é uma simpatia, dizia dona Janete, a síndica, toda vez que a encontrava.  

- Ela é a coisa marfofa, exclamava Tereza, a vizinha do duzentos e dois, quando a via passar pelo corredor. 

- Bom dia, minha princesa, cumprimentava seu Jorge, o porteiro do prédio, sempre que Isabella ia para a escola, ainda com os olhinhos fechados de sono, antes das sete da manhã. 

E naquele domingo ela estava ainda mais radiante. Não cabia de tanta felicidade dentro do biquíni novo que ganhou da vó Cleide. Ganhou ainda um chapéu, um óculos de sol e uma saída de praia cor de rosa, que era a cor que ela mais gostava. Assim como seus pais, Isabella também adorava praia. Foi ela quem decidiu que queria ir à praia no dia do seu aniversário, almoçar fora e depois ir ao boliche com os amigos que ela mais gostava: Bianca, Isadora, Catarina, Arthur, Vinícius e Marina. Estava tudo combinado. Seria perfeito. A não ser por um simples detalhe: quando já estavam no carro, os pais de Isabella resolveram dar uma passada rápida no terreno que eles haviam comprado há poucos meses só para ver se o pessoal da obra tinha mesmo levantado o muro. 

- É caminho, filha. A gente nem vai parar, papai promete. 

Mentira. 

Chegando no terreno, todos saíram do carro para ver o muro que finalmente estava de pé. Jana, a rotveiller, veio correndo, toda estabanada, e por pouco não derrubou Isabella no chão de terra batida. A menina nem se abalou e foi atrás da mãe, que catava algumas mangas caídas de tão maduras. O pai foi conferir as sobras de material enquanto sonhava com o dia em que ia ver sua casa erguida ali, bem do jeito que ele sempre quis. Já sabia até onde ia ficar a piscina, a churrasqueira e a mesa de pingue-pongue. Era uma área boa, com pouco mais de 600 metros quadrados, mas que, até então, só tinha mato, duas mangueiras, uma jabuticabeira e a casinha da Jana, a rotveiller que tomava conta do terreno. 

- Tem um ovo, gritou Isabella. Tem um ovo aqui!

Antes mesmo que os pais falassem qualquer coisa, a menina veio correndo com o ovo na mão. Parecia um ovo de galinha, mas um pouco menor. 

- É de galo garnizé, afirmou a mãe, cheia de autoridade. 

- Como você sabe?, perguntou o pai. 

- Desse tamanho, só pode. 

- Posso ficar com ele?, apertou os olhinhos a menina.  

- Claro que não, respondeu o pai. 

- Isabella, a gente vai à praia, esqueceu?, disse a mãe. 

- Deixa o ovo onde você o encontrou. 

- Mas, papai, acho que está nascendo. Olha aqui, ergueu as duas mãos e mostrou o ovo que começava a rachar. 

Num impulso, Isabella levou as mãos fechadas à altura do peito e ficou acalentando aquele ovinho, como se estivesse mesmo chocando. Jana, a rotveiller, não parava de latir, correndo de um lado para o outro no terreno. A menina não pensou duas vezes. Agarrou-se com o ovo e entrou no carro. Ficou encolhida lá no canto e dizia para os pais que tinha desistido de ir à praia. Também não queria mais almoçar fora. Não queria mais nada, só queria chocar o ovinho. 

- Minha filha, você não é galinha. Esse pinto, se nascer, não vai sobreviver longe da mãe dele, sentenciou o pai. 

- Seu pai tem razão, Bella. Deixa o ovinho aqui e vamos à praia. É seu aniversário, lembra? 

- Mas mamãe, a mãe dele não está aqui. Ele não vai gostar de nascer e não encontrar a mãe dele. Deixa eu ser a mãe dele? 

Não demorou mais que dois minutos e o danado do pintinho começou a quebrar a casca do ovo. 

- Ai, meu Deus, tá nascendo, mãe! Vamos para casa, pai!

Não teve jeito. Naquele dia não teve mais praia, nem almoço em restaurante e muito menos boliche. Isabella quis comemorar o aniversário com o filhinho, digo, com o pintinho que nasceu nas suas mãos. 

- Onofre.O nome dele é Onofre, repetia a menina, encantada com o pinto que acabara de chocar. 

O fato é que Onofre sobreviveu. Com duas semanas, já era um frangote. E o mais incrível: por onde Isabella ia, Onofre ia atrás. Bastava ela chegar do colégio e, pronto. Eram inseparáveis. Dava gosto de ver. Dona Janete, a síndica, de início não gostou muito. Ficou preocupada com o que os outros moradores iam falar, já que Onofre piava dia e noite. 

- E quando esse bicho começar a cantar ainda de madrugada, como vai ser?

- Liga, não, dona Janete. Bom que a gente acorda cedo. Nesse prédio aqui todo mundo adora a Isabella. Duvido que alguém reclame, acalmou Tereza, a vizinha do duzentos e dois. 

E não deu tempo mesmo de ninguém reclamar. Onofre ainda não havia completado um mês e os pais de Isabella resolveram passar no terreno mais uma vez para acompanhar a obra. Foram todos. Isabella e Onofre no banco de trás. O galinho ia todo garboso ao lado da menina, que sorria, toda contente. Ela realmente nutria por ele um sentimento de mãe. Ela piava e ele piava em seguida, como se estivessem conversando. Todos riam. Onofre já era da família. Comia da melhor ração e bebia água sempre fresquinha. Era um galinho garnizé muito do bem tratado, com as penas avermelhadas, o bico brilhoso, peito estufado e a crista já dando sinas que ia tombar para a esquerda, feito um topete. 

Chegando no terreno, todos saíram do carro para ver o andamento da construção. Jana, a rotveiller, mais uma vez veio estabanada. Isabella pegou Onofre no colo, a mãe foi catar mangas, o pai foi ver as sobras de material. O muro já estava pintado, o mato havia sido capinado, o terreno ao lado já tinha sido comprado. Estava um dia quente, de sol, céu azul, quase nenhuma nuvem. Bom para um passeio. Tão bom que Isabella resolveu soltar o Onofre no chão para que ele pudesse conhecer o lugar de onde ele veio. 

- Foi bem aqui que eu te achei, Onofre, começou a contar Isabella. 

Onofre, tadinho, não deu meia dúzia de ciscadas no terreno. Jana, a rotveiller, quando viu aquele galo solto, correu feito uma louca e engoliu Onofre numa só mordida. 

Os pais se entreolharam incrédulos. Isabella, aterrorizada com a cena, deu um grito que ecoa até hoje e desmaiou. Jana, a assassina, digo, a rotveiller, percebendo que era culpada pela gravidade da situação, se escondeu no fundo da sua casinha e de lá só saiu quando começou a engasgar com o bico do Onofre, que era de difícil digestão. 

Tadinho do Onofre. Só sobrou o bico.

Tadinha da Isabella. Recuperou-se do trauma a duras penas. 

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Quem é esse outro que está sempre ao meu lado?

Há mais de três meses que não caía uma gota de chuva sequer naquelas terras. Nuvens carregadas até pincelavam o céu de negro vez ou outra, mas logo se dissipavam e o azul infinito dominava a paisagem sem a menor cerimônia. O ar estava seco. A pele, os poros e as relações também. Os dias pareciam correr cansados e as noites, quentes e insones. Já não sabia mais há quanto tempo estava ali. Confessou-me mais tarde que lembra de ter ligado para ele no dia de sua morte e me disse, também, que nunca esperava que aquilo tudo um dia tivesse um fim. Mas era o corte que faltava, a ruptura abrupta, a ferida aberta e a saudade que se espalhava por todo o seu corpo feito vírus sem cura que lhe trouxera até ali.

- O que se afasta de mim me pertence, era a frase que repetia inúmeras vezes em meus ouvidos como se eu não estivesse prestando atenção em tudo o que me contava.

Eu custei a entender o que estava por trás daquela conversa toda. Por vezes pensei se tratar de sonho ou de alguma alucinação. Volta e meia eu costumava me deixar levar por devaneios e quando, mais cedo ou mais tarde, eu dava por mim, tudo não passava de fruto da minha imaginação. Eu até usava uma coisa ou outra para poder me iludir um pouco, mas daquela vez, não. Tudo era muito real. Aquela pessoa realmente existia e estava ali na minha frente, feito espelho que se quebra, a se permitir mosaico de si mesma. Engraçado é que há anos não nos víamos. Sabíamos um do outro, era como se caminhássemos lado a lado, mas não nos olhávamos, não nos procurávamos mais. Era como se algo tivesse se perdido entre nós. Como se tudo tivesse secado.

Mas naquela noite choveu. E conversamos. E choramos juntos. Inundamos nossas faces. Regamos nossas histórias. Transbordamos nossas memórias há muito esquecidas em terreno áspero e longínquo. Lembro que demos as mãos e foi então que, por muito tempo, não sei quanto, ficamos em silêncio. O barulho da chuva forte escorrendo no telhado da velha casa de paredes amarelas era o único som que havia ali. Tenho pra mim até que por alguns minutos paramos de respirar. Nossos corpos feito estátuas, inertes, tudo ao redor, mas tudo ao mesmo tempo ausente. Até que veio o vento e com ele as folhas das árvores que se sacudiam lá fora se espalharam por toda a sala, levantaram a poeira, bateram as portas, escancararam as janelas e aquele movimento todo fez com que despertássemos. Nossas mãos se soltaram. Olhos nos olhos. Corações a mil e os pensamentos feito as folhas espalhadas pela sala, bagunçando tudo, só que dentro de nós.

- O pacto era com a felicidade, eu consegui dizer num sopro de lucidez. Mas talvez você não tenha entendido o real significado e tenha te restado só esse vazio, esse oco, esse deserto onde você resolveu se instalar.

Não esperei resposta. Disse isso como se fosse uma verdade absoluta - tenho essa mania desagradável - e levantei para trancar as janelas e abrir algumas portas. Só ali onde estávamos havia luz. Os outros cômodos estavam todos apagados. O chão de tábua corrida rangia a cada passo que eu dava e eu podia perceber o quanto havia de solidão em mim também. O quanto meu pacto havia se quebrado, partido, estilhaçado e eu vi que eu era da mesma matéria que o pó que sujava meus pés descalços ali naquela noite de chuva forte depois de meses de estiagem.

- Eu também sou esse pó, respondeu, então, em voz baixa, quase um lamento. Eu sou o pó, mas há muito mais em mim. Eu sou o vento, sou o sol que castiga e sou essa chuva que alivia e traz alento. Eu sou o rio que se perde no mar, a fonte inesgotável da vontade, o brilho que te guia, os braços que te carregam. Eu sou o seu caminho. A sua estrada está em mim.

- Mesmo que eu me afaste?, perguntei.

- Não adianta se enganar e levantar com a desculpa de que vai trancar janelas e abrir algumas portas porque tudo acontece exatamente como deve acontecer, você sabe. É correnteza, é fluxo, é movimento, fluidez. Nada vai conseguir barrar. Chega a ser insensatez não perceber. Somos espelhos, lembra? Eu conheço tanto de você quanto você conhece de mim.

- Mas o que tem a ver se somos reflexo um do outro ou não? Onde foi que isso entrou em jogo? Foi você quem chegou aqui junto com a chuva e desandou a falar. Não te perguntei nunca nada. Há anos não lembrava da sua existência. [Mentira] Você hoje apareceu do nada, junto com toda essa chuva, e veio me contar do dia da sua morte, das suas feridas abertas e da saudade que machucava seu peito. Parecia alucinação.

- Anunciação, não alucinação. Não esqueça que eu trouxe, além da minha morte, a chuva que lava, que rega, que regenera e mata a sua sede e a minha.

Ouvi trovões lá fora.

(Quem é esse outro que está sempre ao meu lado?)


quarta-feira, 30 de setembro de 2015


Pra quem ainda não viu, aí vai minha participação no show do mestre Mautner, no Sesc Vila Mariana (SP), em março deste ano. Que honra, meu Deus, que honra!

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Assimétrico

Minhas palavras são tortas.
Já não sigo a linha reta.
Não encontro o jeito certo.
Não acesso.
Só há verso em meu avesso,
confesso.

quinta-feira, 30 de julho de 2015

Âncora

Há um imenso oceano lá fora
e a saudade ancorando dentro de mim.

Ondas que batem nas margens,
as minhas,
meus pés sujos de areia
se desfazendo em grãos
por onde pisei.

Nas estradas de onde eu vim,
meu céu de estrelas,
minhas flores,
de todas as cores.
O mais bonito jardim.

Marco encontro com minhas esquinas
meus desvios, curtos-circuitos,
passagens subterrâneas,
e me perco nas imagens presas na retina.
Cortina da fumaça que enche meus pulmões.

Ora sou o copo d'água que me afoga
antes de matar minha sede.

Ora sou a correnteza que me abraça
sem licença e me carrega.

Ora sou o vento que sopra minhas velas ao mar.

Oceano, saudade e âncora.

Tudo isso dentro de mim.











 
 












quarta-feira, 22 de julho de 2015

Zíper


21h30, ainda estou no jornal, quando toca o celular. No identificador de chamadas aparece escrito MÃE em letras garrafais. Eu atendo, lógico.
- Alô...
- Marcio, sou eu, você já está vindo pra casa?
- Já, mãe, estou desligando tudo aqui. O que houve? 
- É que eu fui no Imperator com a Soninha...
- E?
- Cheguei agora...
- Mas está tudo bem, mãe?
- Está... só estou entalada.
- O que foi que você comeu dessa vez, mãe? - pergunto já no nível do desespero.
- Nada demais.
- E está entalada com o quê?
- Com o vestido...
- Oi?
- O zíper, não estou conseguindo abrir o zíper.
- ...
- Não demora a chegar não, tá?
- Tô indo, mãe... tô indo!

Linha 247

20h30, vc já está podre de cansaço, condução cheia, engarrafamento master, ônibus incendiado na via de acesso ao seu bairro, sirenes atordoando lá fora, carros da PM tentando ultrapassar, inflação, Petrobras dissolvendo, máfia dos ônibus com dinheiro na Suíça, votação do Estatuto da Família, grana curta, fome, dor de cabeça, tiroteio no São João, até que começa um bate-boca na linha 247 entre uma loira de meia idade com shortinho e barriga vergonhosa pulando para fora e um senhor careca, camisa puída, tudo gente simples:

- Quer conforto? Vai de táxi, grita a loira.
- Abre essa janela! Está calor! , responde o senhor.
- Não está vendo que a janela está emperrada, p*rr@? , exclamou a princesinha.
- Mal educada!, gritaram lá atrás.
- Tua mãe!, bateu de pronto a desbocada.
- Cadê o ar condicionado desse ônibus?, disse um gaiato.
- Pergunta pro prefeito, respondeu outro.
Enquanto isso, passa um comboio do Bope armado até os dentes ao lado do ônibus. Todo mundo se cala. Tremendo silêncio até que o senhor careca se levanta, mete a mão no vidro e abre a janela de uma tacada só.
- Deixa essa merda aberta!
(E seguimos viagem)

Oi?

JN no ar, Lava-Jato encabeçando o noticiário, dona Lígia deitada no sofá, ar condicionado ligado, olhar intrigado, até que vira pra mim e diz:

- Como é que pode, né?
- Pois é, mãe, falta de vergonha na cara.
- Não é possível. Eles já eram ricos.
- Mas eles sempre querem mais. É muita ambição.
- Eu gostava deles. Cantavam desde criança.
- Quem, mãe? De quem você está falando?
- Sandy e Júnior. Não ouviu o repórter falar o nome deles? Que sujeira...
- Pelamordedeus, mãe! É Sandes Junior, deputado...
- Nem sabia que eles tinham entrado pra política, uai. Precisava disso?
- ...
(Não, mãe, não precisava!)

sexta-feira, 8 de maio de 2015

Síndrome do pânico

Vieram me contar que lá pelas bandas das montanhas infinitas das minas gerais, há muito pouco tempo atrás, havia uma menina moça que sofria de pânico, essa síndrome que mete um medo danado. Disseram também que essa menina moça era muito bonita, apesar de franzina. Dona de cabelos longos, rosto pálido, braços finos, cotovelos ressecados, mãos maltratadas, unhas roídas e os olhos, estes sempre perplexos, virados para os cantos da casa simples de piso frio, umas lajotas desbotadas, manchadas de cera barata. Os pés, sempre descalços e úmidos, grudados naquele chão. O mundo lá fora gritando que já era mais do que passada a hora e o coração, sempre agitado, a sufocar-lhe o peito e a dizer-lhe não.

Ela tinha medo de tudo. De fantasma, de escuro, de barata, de cachorro, até de gente. Mas não era nenhum desses medos que a apavoravam agora. Quando criança, brincava na rua, espalhava alegria, corria, dançava, pulava e se divertia. Sabia subir em árvores, ficava de ponta cabeça, virava cambalhotas, gostava de ouvir histórias e de uma boa cantoria. Tagarelava, contava causos, piadas, imitava vozes, ralava os joelhos e ao invés de chorar, sorria. Era a dona da gargalhada mais desconcertante e debochada daquela cidade com pouco mais de mil habitantes. Todos a conheciam. Todos a adoravam. Todos sempre queriam estar com ela.

Naquela época o céu pintava a vida de azul e aos olhos dela tudo era ainda mais bonito. O sol não castigava, a chuva não faltava, a fome não doía. Tempo bom aquele em que todo mundo se respeitava, ninguém se machucava, todo mundo se ajudava, um cuidava do outro e as manhãs chegavam mansas, anunciando mais um lindo dia que então passava até que vinha a tarde e soprava a brisa. Revoavam os pássaros. Anoitecia. Lua clara bem lá no alto e ao voltar para a casa, o colo quente da mãe, a comida farta no fogão e o beijo carinhoso do pai. Era assim naquela época.

Ninguém sabe bem ao certo, nem ela, quando foi que tudo mudou. Ela apenas lembra de ter acordado sobressaltada numa madrugada em que chovia, janela aberta, quarto molhado, portas batendo, ventania, falta de ar. O coração disparou, veio na boca, voltou, uma vontade de chorar, de sair dali, de berrar para que o temporal passasse e ela pudesse voltar a respirar e a dormir sossegada até amanhã de manhã. Quando levantasse, ela queria encontrar tudo como antes, no mesmo lugar. O mesmo céu, o mesmo azul, o mesmo jeito de enxergar.

Pouco tempo depois dessa madrugada ela já não saía mais de casa. Seus ombros se curvaram, suas sobrancelhas arriaram, seu sorriso murchou, a vida não tinha mais graça, era tudo cinza, barro, agonia, nó. Ninguém da cidade entendeu nada. Todos sentiam sua falta. Onde estava toda aquela graça? O que havia acontecido com ela? Ninguém sabia. Nem ela. E o tempo foi passando, cada um foi vivendo a sua história, procurando um final feliz. Só ela havia ficado ali. Paralisada. Entorpecida. Trancafiada em seu mundo. Sofrendo sozinha. Seus nervos estremeciam só em pensar em sair de casa. Foram meses assim. Quiçá alguns anos. Pânico.

Até que um dia apareceu na cidade um circo, desses que rodam o interior do país, com malabaristas, engolidores de fogo, mágicos, palhaços coloridos e todo aquele ar decadente. Montaram a lona na praça bem ao lado da igreja e anunciaram  num carro de som estridente o espetáculo daquela noite. "Respeitável público, o Grande Circo Lúdico chegou. Venham rir. Venham se emocionar. Venham se divertir", gritava o locutor. Ela deu um pulo e levantou da cama, calçou as sandálias e foi até ao portão. Um arco-íris nos céus, sabiás cantarolaram, a mãe não acreditou, o pai quase chorou, um vento leve desarrumou seus cabelos e ela então viu a equilibrista na corda bamba, os contorcionistas, a mulher barbada, os anões e o atirador de facas, que era um rapaz bem apessoado, cabelos dourados, braços fortes, lhe sorriu um sorriso farto que fez até sentir arder o rosto. Palpitação. Coração na boca. Rubor. Calor. Amor. 

Disseram que naquela mesma noite, depois do espetáculo, ela foi embora com o pessoal do circo. Deu adeus à mãe, pediu a benção ao pai, arrumou as trouxas, tomou coragem e partiu debaixo de um céu estrelado, estrada de terra iluminada pela lua cheia, olhares incrédulos e em seu peito só havia esperança e vontade. Corre à boca miúda que hoje ela voltou a ser feliz e a contagiar a todos que estão ao seu redor. De vez em quando ainda aparece na cidade para se apresentar com a trupe e visitar os pais. Casou com o atirador de facas, aquele rapaz bem apessoado, de cabelos dourados, braços fortes, sorriso farto e vive a mais linda história de amor. É uma das principais atrações do circo. Nem parece aquela menina moça que sofria de pânico e definhava meses e anos dentro de casa com palpitações e tremores. Destemida que só, virou mulher de fibra, deixa-se amarrar numa placa giratória de madeira e, enquanto tudo roda, ela sente as lâminas afiadas passarem rente ao seu corpo seminu. Uma a uma a tirar-lhe fino da pele lisa.

Na arquibancada improvisada, a plateia em silêncio sequer respira, atenta, tensa, em pânico, até romper nos mais intensos aplausos. No picadeiro iluminado, lá está ela sorrindo, tranquila. Sem medo algum.

Foi o que me contaram.            








sexta-feira, 27 de março de 2015

Onda

desfaz de mim a sombra e me deixa ver o sol.
me traz a luz do amanhecer,
aurora!
faz de mim o vento, o céu, o sal,
ressaca que arrebenta nas pedras do cais.

segura a minha mão quando eu quiser andar,
guia meus passos pelo chão,
abre meus olhos, revela suas cores,
livra minhas dores,
amores.

me deixa correr para o mar
molha meus pés na foz do rio que deságua .
me transforma em correnteza,
me solta,
me beija.

a mesma onda que me leva,
é aquela que depois me traz.

me leva...
... me traz...
me leva...
... me traz...

me leva...
... me traz...
me leva...
... me traz...

 me leva...
... me traz...
me leva...
... me traz...

terça-feira, 24 de março de 2015

Tempos de chuva

Finalmente havia começado a chover. Depois de meses de estiagem e ameaça de racionamento, chuva. Muita chuva. A pele já estava áspera, os lábios rachavam, as mãos como se estivessem cobertas por um fino pó, os pés feito cascos e aquele cheiro de podre no ar. A impressão que dava era a de que o mundo tinha passado dos limites. A classe dominante jamais deixaria de ser dominante e ele ali no meio daquele jogo sujo. Enquanto uns gritavam de cá, outros urravam de lá. Uma confusão generalizada, ninguém se entendia, toda hora uma discussão, um comentário mais agressivo, cada um com a sua opinião. Uma nova Torre de Babel, só que desta vez globalizada e com rede wi-fi. 

Os telejornais e praticamente toda a mídia tradicional mais parecem os mensageiros do apocalipse. Tudo é tenso. As notícias são anunciadas numa rigidez cadavérica, causando um terror psicológico sem precedentes, insônia, pesadelo, crise nervosa, psoríase e até mesmo morte súbita. Lá no poder, os ratos, os gatunos, os larápios, os espertos, os filhos dos espertos, os netos, a família toda. Um lixo. Era difícil respirar. Para ele, então, que sofria de asma e aquela pressão toda em seu peito só causando peso, suor e dor. Era quando ele abria a janela e o vento soprava para dentro outros ares. 

Ele dormia pouco, se mexia muito. O lençol nunca parava na cama, as pernas descobertas, os pés para fora do colchão de molas, a cabeça girando, a mente tentando acalmar e aquela voz aguda interna dizendo todas aquelas coisas que ele já sabia. Quase todas as noites era assim. Ele apagava as luzes, fechava e abria os olhos, se distraindo com o reflexo dos faróis acesos nos carros que aceleravam na rua. O sono não vinha. Deitava e rolava. De um lado para o outro. Até cansar e adormecer. Mas era um sono leve. Logo amanhecia e ao invés de pássaros cantando, buzinas apressadas anunciando que ele já estava atrasado mais uma vez. 

Ele levantava, corria para o chuveiro, um banho frio, filete de água escorrendo no rosto para espantar o cansaço e se misturar ao pranto daquele que precisava esquecer o que tinha para ser esquecido. O que doía mesmo era a saudade do que havia ficado para trás. Especialmente naquelas manhãs cinzentas, quando ele se olhava no espelho embaçado e via que restavam apenas algumas peças precisando de encaixes. O trabalho estava uma merda. A arte não lhe dava dinheiro. Todos os que ele amava estavam longe. Ele não estava assim tão só, mas dentro era como se tudo estivesse oco, roído, evaporado. Ele estava seco. 

Por sorte, a chuva havia chegado. 


quarta-feira, 18 de março de 2015

Para detonar a cidade

Eu não vim aqui falar do kaos, nem dos deuses da chuva e da morte.
Vim aqui dizer que eu tive a sorte de encontrar no meu caminho um pensador.
E que por onde quer que eu ande ele vai estar ao meu lado,
mesmo que eu já não esteja mais aqui.

Assim como ele, eu vim trazer o doce mel da poesia.
O verbo que me rasga a noite.
A harmonia que me invade dia a dia.
O ritmo, a dissonância, a melodia.

Eu vim fazer soar os timbres das canções que eu nem sabia que havia em mim.

Porque o que temos aqui hoje é arte.

É som,
é música,
é o verso da palavra escrita, sílaba por sílaba,
até escorrer pelo canto da minha boca e da sua.

A rima que sussurra em meu ouvido
vem do acorde que te sobe e te arrepia.

Arte que ecoa e transforma e transmuta e atravessa o tempo.
Eternamente provisório é o tempo em minhas mãos.
E nas suas.

Mas do que é feito o tempo?

É a linha tênue entre um instante e outro,
aquilo que entrelaça, que une, que liga
e que de repente despedaça,
desfaz o nó.

O tempo faz a gente virar pó.
E do pó, a gente vira luz
E da luz a gente faz um som.
Para cantar e iluminar essa cidade.

Uma ode à vida, que é essa dança ininterrupta,
constante cultura.
Negra, branca, ameríndia,
Essa mistura amalgamada,
que volta e se junta aqui de novo mais uma vez.

Incessantemente.

Porque já dizia outro poeta: o tempo não pára.
E encontra as canções perdidas de um disco antigo
que nunca deixou de tocar, aqui, ali, em todo lugar.

Para detonar a cidade.

Que feliz cidade é essa?







quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Impressões sobre o caos I

Eu quero a paz que vem depois de tudo isso,
a luz que me alumia,
a tempestade que cessa,
a porta que abre,
o vento que me refresca.

Eu tenho pressa,
quero tudo no mesmo dia:
a mão que afrouxa o nó,
o abraço que alivia o peito,
o alimento que me sacia.

Então, corre e me oferece uma prece,
uma prenda bonita que seja,
aqueles versos no meu ouvido,
a claridade dos seus olhos mansos
que me deixam ver quem você é.

Rasga a minha roupa suja,
revela a minha face oculta,
veste a minha carapuça,
mas olha para mim e fala comigo.
Encontra aquele que aqui dentro habita.

O mundo lá fora segue em chamas,
uma tremenda loucura,
eu ando meio perdido.
E você?

Fica comigo.
Não vira pro lado.
desliga a TV.

Eles só sabem do caos.









quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Pensando em quê?

Eu vivo num lugar hostil. Por mais que o cenário ao meu redor seja dos mais bonitos do mundo, eu vivo num lugar hostil. É violência, falta de assistência, falsidade, cada vez menos oportunidades, pobreza, abandono, corrupção, pouca vergonha, nenhuma educação, rasteira, pernada, todo mundo querendo te derrubar no chão. As coisas andam quentes demais por aqui. Minha mãe tem reclamado sempre que eu chego em casa que o calor está fora do normal, que ela nunca viu um verão assim, que deve ter muita gente morrendo por aí. Eu respondo que sim, digo que as coisas estão realmente estranhas, que na minha opinião o mundo já acabou, que nós estamos apenas sobrevivendo com o que restou e que quando todas as fontes secarem, babau, já era pra nós, humanos, raça desgraçada. Ela arregala o olho bom, faz um muxoxo com a boca, acha que eu não estou falando sério e pede um copo d'água bem gelado.

Eu obedeço.

Tenho visto muita maldade por aí, e confesso, estou meio que anestesiado. É como se eu mergulhasse num mar de xilocaína antes de levantar da cama e sob o efeito anestésico e quase letárgico eu me mantivesse durante todo o dia, até voltar para casa, para dentro da minha fortaleza, no meu aconchego, na minha pseudo segurança, para aquilo que eu reconheço como sendo eu. O mundo é muito mais bonito dentro de mim. É um laço infinito de cor azul turquesa, são flores brancas que eu semeio num jardim e as cartas de amor que eu ainda rabisco sobre a mesa. Minha mãe sabe que existe esse outro mundo em mim, pois as mães sabem de tudo sempre. Ela faz questão de não me deixar esquecer um só instante daquilo que eu devo acreditar, diz que em breve essas coisas todas vão melhorar, que a crise vai passar e que os meninos que há poucos meses resolveram morar na esquina da minha rua vão voltar para suas casas. Eu respondo mal criado que sou que eles não têm casa, pois se tivessem, era lá que estariam agora e não na rua, à mercê da sorte. Eles não querem a morte, ela diz baixinho, enquanto pega o terço e vai rezar.

Eu me calo.

Penso em como ela consegue ser tão simples, encontrar as soluções mais fáceis, acreditar num mundo cor de rosa, criar uma outra realidade. Será efeito dos remédios?, eu me pergunto. Não, ela sempre foi assim, dessas que nunca reclamaram de nada e suportaram bem a dor. Tão diferente de mim, que não aceito, que me revolto, que esbravejo, falo alto, corro atrás daquilo que eu acho que é meu de direito, não engulo sapos, bato de frente, dedo em riste, olho no olho, dente por dente. A vida me transformou nesse sujeito da porta para fora. Criei cascas, usei armaduras, envelheci. Caíram meus cabelos, outros pêlos me nasceram brancos, deixei para lá tantas certezas, quero outra profissão, um recomeço, enquanto vejo no espelho à minha frente o mesmo riso franco que sempre me serviu de âncora todas as vezes que eu quis voltar para dentro de mim.

Pensando em quê?, minha mãe pergunta.

Nesse calor, minha mãe, nesse calor.