sábado, 30 de julho de 2016

Plantio

Agora eu quero ficar sozinho.
Deitar no chão da sala e me encolher.
relembrar o útero,
fazer do meu abraço em mim um ninho, 
passarinho que sou, 
bem-te-vi. 

Voar para perto de mim. 
Meus braços-galhos, pés-raízes, 
frutos espalhados pelo chão
e o nó na minha garganta, tronco-árvore, 
corpo estendido, despido, germinando, 
plantação.

Encher de terra as minhas mãos. 
Cavar até as entranhas, 
procurar o lado mais profundo, 
descartar o raso, semear o riso fácil, 
sou sujeito simples, 
fecundo.

Semente de mim.


terça-feira, 26 de julho de 2016

Ou dá ou desce

- Alô?

- Fala aí! Te acordei?

- Não, mas já estava indo deitar. Tá tudo bem?

- Tá.

- Duvido. Pra você me ligar a essa hora é porque deu alguma merda. Fala logo.

- Lembra daquela mulher que eu saí lá em São Paulo?

- Aquela dos quinze segundos?

- A própria.

- Puta que pariu! Tá grávida?

- Claro que não!

- Menos mal, convenhamos. Imagina você trepar sem camisinha, o que é uma irresponsabilidade, gozar em quinze segundos, o que é uma vergonha, e ainda por cima engravidar a mulher que você acabou de conhecer e não sabe quando e nem se vai encontrar novamente? Só você, numa boa...

- Só eu.

- Mas diga lá. Qual é a dela?

- É louca.

- Isso você também é.

- Sou. Mas já basta a minha loucura, né?

- Isso é verdade. Como você dá conta eu não sei. Mas e ela? Conta aí.

- A mulher me liga todo dia. Gamou. Se quinze segundos fizeram isso com ela, imagina mais uns minutinhos? Diz que me ama, que vai casar comigo, quer me levar para a Itália, que eu sou o homem da vida dela, que vai me fazer feliz. Tem um papo meio de bruxa, sabe?

- Sei. Tá cheio dessas doidas por aí. Desde que me divorciei já conheci algumas. Esses aplicativos ajudam bastante. Mas só encontro gente rasa, carente, maluca. Outro dia conheci uma que cismou que ia cuidar de mim que nem minha mãe cuidava. Achei fofo, mas perdi o tesão. Imagina comer minha mãe?

- Porra, Édipo nível hard. Graças a Deus ela não quer ser minha mãe. Era só o que me faltava.

- Mas qual o problema, então?

- Quer me comer.

- Oi?

- Cismou que vai me comer, é mole?

- Ela quis dizer que vocês vão transar, que vocês vão gozar muito e que vai ser bom pra caralho, foi só isso, não foi?

- Não. Não foi isso. Ela quer comer meu cu. Disse com todas as letras. Está ameaçando sair de São Paulo e vir pra cá nesse final de semana. Diz que tem uma cinta com um pau preto pendurado. Que nem de filme, já viu?

- Já.

- E agora?

- KY, ora bolas.

- Sem sacanagem, vai. O que eu faço?

- Corre dessa demônia, né, porra? A não ser que...

- A não ser o quê?

- Ih... está em dúvida, já vi tudo.

- Dúvida o escambau!

- Então por que me ligou nervoso, aflito, angustiado? Ou dá ou desce!

- Ela é gente boa.

- Então, dá.

- Nem.

- Então, desce.

- Vou pensar.

- Humm... vai dar!

- Sifudê, cara!

- Ela não é gente boa?

- Muito. Gostosinha, pele macia, cheirosa, style, cheia de tatoo, bem estilo daquelas paulistanas da Rua Augusta.

- Tua cara.

- Pois é.

- Então, dá.

- Tô falando sério.

- Então, desce.

- Porra, me ouve. Eu gosto dela. Quero encontrar com ela de novo e tentar apagar aquela má impressão, pelo menos para mim, dos quinze segundos. Meu pavor é a gente lá na maior pegação e a danada começar com esse papo de inverter os papéis. Brochada na certa.

- Tô imaginando aqui.

- A brochada?

- Não. Ela te pegando de jeito!

- Pode parar!

- Parei. Vou ter pesadelo.

- Pesadelo é o que eu tô vivendo.

- Sem drama. Bebe que passa.

- Só bebendo mesmo, vou te contar. É cada uma...

- Bebe, mas não bebe muito. Cu de bêbado não tem dono!

- Ah, vai...

- Vou... vou tentar dormir depois dessa, isso sim. E você, cuidado com a maluca.

- Mas e eu? O que eu faço?

- Já disse: ou dá ou desce!

- Teu cu!

segunda-feira, 18 de julho de 2016

Quando seus olhos vieram morar nos meus

Ele me disse que queria me escrever uma carta para me dizer que fazia meses que andava engasgado, com um nó na garganta, olhos sempre marejados e o peito prestes a explodir. Uma bomba. Me disse que metade dele respira fundo e finge que está tudo bem, mas que a outra metade anda sufocada pelas ruas em busca do ser inteiro. Eu lhe disse que também sentia muita falta dele, mas que tenho sentido uma saudade enorme de mim, que atualmente meu mundo se fez deserto, mesmo eu frequentando todos os dias os mesmos lugares, andando pelas mesmas ruas, encontrando sempre as mesmas pessoas. Todas desconhecidas. Eu, inclusive.

Confessou que havia voltado para a terapia, mas acho que ele chegou a comentar isso comigo numa das últimas vezes em que eu o procurei. Depois de tantas perdas recentes, voltar para a terapia foi a decisão mais acertada da sua vida, eu lhe disse. Que precisava fazer alguma coisa por ele depois do tanto que fez por quem ele amava, depois de tudo o que ele passou, depois de tudo aquilo que se foi. Com a voz meio travada, ele me disse que uma parte muito bonita dele havia ido embora e eu tive medo de que ela fosse a sua melhor parte e que só tivesse restado, então, a sombra. 

Ele falava tanto que eu me esqueci de dizer-lhe que eu me senti muito só esse tempo todo. Por mais que eu tivesse companhia, por mais que eu saísse para me divertir, por mais que eu tivesse com quem conversar, eu me sabia só. Ele também estava só e aquilo o perturbava, mexia com ele, tirava seu sono. Em mim vieram as gripes incuráveis, as dores físicas, a tosse encatarrada e a porra de uma tristeza tentando arrombar a minha porta dia após dia. Foi quando já não aguentava mais que ligou para o terapeuta. Agora, ou vai ou Reich, ele brincou. 

Com tantos anos de terapia reichiana, não era muito difícil perceber onde suas frustrações se manifestavam em seu corpo. Ele me revelou que desta vez havia voltado às sessões consciente de que essa bronquite eterna, essa falta de ar constante, esse pulmão fragilizado, isso tudo é tristeza, é medo de se encher de ar, oxigênio, combustível da vida, e andar para frente. Enquanto ele falava, eu lembrei que também devo seguir o meu caminho, seja lá que caminho for. Ele também me fez perceber que eu preciso esquecer a dor do mundo que eu cismo de carregar. E é verdade. Por que eu busco esse peso? Por que, meu Deus, eu teimo em carregar essa tonelada nas minhas costas? 

Mas eu não disse nada na hora.

Ele, ao contrário de mim, não se furtou em repetir várias vezes que estava louco para me encontrar e me contar todas aquelas coisas, colocar tudo para fora, tudo o que sentiu nesses últimos meses. Sem o menor constrangimento, disse que eu o conhecia mais do que qualquer terapeuta e que ainda guardava uma confiança enorme em mim. Não sei por que, pensei. Logo eu, que me iludo tanto. Eu, que projeto muito do que eu desejo no outro. Eu, que idealizo, que sonho, que crio diálogos, frases que eu talvez nunca venha a usar, faço da minha vida uma verdadeira novela. E eu me engano muito, é lógico. 

Foi quando eu consegui lhe dizer que havia me enganado e que aquela seria a última vez que nos víamos. Fiquei com a nítida sensação de que ele não queria ir embora, que seria só um hiato, não um para sempre. Era final de tarde de verão. Estava muito quente. Um vaivém de gente. Calçadas disputadas, bares lotados, amigos, casais de namorados, mãos dadas, beijos, abraços, cervejas, encontros e eu ali, naquele pesadelo do adeus, olhando ele subir a rua até desaparecer, sem acreditar que seria até nunca mais. 

Mas foi.

 (E eu ainda guardo a lembrança daquela primeira vez, quando seus olhos vieram morar nos meus.)

domingo, 17 de julho de 2016

Feito ilha

Eis que estou aqui. Só.
De novo o barco sem rumo, 
à deriva. 
No peito eu carrego um nó. 

E a correnteza do rio que molha meus pés 
me leva até a foz do meu corpo,
que é filho d'água,
deságua em outro corpo que também é meu. 

Porque o leito que acolhe o rio é berço,
acalenta o meu caminho, 
nascente de mim, enchente de mim, 
estiagem de mim. 

Destino. 

E eu ali, parado, 
feito ilha. 

Um horizonte ao meu redor.


sábado, 2 de julho de 2016

Madrugada

A madrugada chega.

E com ela, o silêncio que faz a gente se desligar de todas as coisas e baixar as armas, retirar as máscaras, esquecer de tudo.

Luzes que se apagam, casais que se deitam, amores rarefeitos, beijos mais que perfeitos, desejos expostos e um certo cansaço no ar.

Janelas se fecham, alguns olhos bem abertos, insônias, sonhos, outros céus que se revelam em estrelas, Marte, Vênus e o balé da lua seduzindo as horas à espera do sol.

A madrugada gosta de me bolinar. Passar as mãos sobre o meu corpo, roçar a língua na minha língua, a pele na minha pele. Não faz cerimônia, fica comigo, escreve, rabisca, me enche de versos, estrofes sem fim. É meu prazer e minha interseção, dia após dia, é minha palavra em linha reta, minha inspiração.

A madrugada é breve e a vida passa mesmo num instante.