sexta-feira, 4 de outubro de 2019

Vaidosa

Desde que vim morar aqui em Brasília que as árvores começaram a chamar minha atenção. Acho que pelo fato de que aqui a gente não esbarra com quase ninguém nas ruas, justamente porque não tem rua do jeito que a gente está acostumado a ver nas outras cidades, foi que eu passei a prestar mais atenção nas árvores do que nas pessoas. Se antes, quando eu ainda morava no Rio de Janeiro, eu andava de ônibus e cruzava com todo o tipo de gente a todo momento, me alimentando daqueles personagens para os meus textos, aqui a coisa mudou de figura. Agora eu só ando de carro e na maioria das vezes sou eu e eu e olhe lá. 

Procuro sempre mudar meus caminhos, seguir novas rotas, atalhos, vias, mas há certos lugares que não tem como a gente não passar todos os dias. Nesses lugares eu já me reconheço e conheço as árvores que ali estão. Me encantam os desenhos de seus galhos, feito mãos retorcidas, estendidas para o céu azul desta cidade que eu já acho linda. Outro dia vi um cartaz aqui onde estava escrito que Brasília aumenta a distância entre as pessoas. E é verdade. Por isso mesmo passei a reparar nas árvores. 

Aqui bem pertinho de casa, na L4 Norte, que é uma via expressa que cruza todo o plano piloto pelo lado Leste, beirando o lago Paranoá, tem uma árvore que olha pra mim toda vez que eu passo por lá. E eu sou obrigado a passar por lá várias vezes durante o dia, daí que eu já tenho uma relação de afeto com essa árvore.É sério. Ela só me chamou a atenção esse ano, assim que começou a época da seca, lá pelo final do mês de maio. Ela fica debruçada numa curva, reinando sozinha e ocupando toda visão do canteiro. Como toda árvore do Cerrado, ela não é muito alta e seu tronco parece se contorcer num exercício de balé, como se girasse em torno de si mesmo, que é exatamente como ela se move em busca da água, me disseram. 

Curiosamente, ela passou boa parte desses últimos meses praticamente sem uma folha sequer. Só nos galhos das pontas do lado direito de quem a vê quando entra na curva é que tinha folhas, que mais pareciam formar uma franja, ornando a silhueta da árvore nua ali naquela curva a chamar minha atenção. Essa semana, após caírem as primeiras chuvas anunciando que a seca está indo embora, a árvore se vestiu de verde e a franja ficou ainda mais robusta, balançando ao ritmo do vento que faz naquela curva. Eu, que passo ali em frente com meu carro todos os dias e cumprimento silenciosamente aquela árvore, hoje sorri para ela como se eu dissesse que ela estava ainda mais bonita. 

Ela percebeu, eu sei. Vaidosa que só. 






quarta-feira, 25 de setembro de 2019

Delírios (ou um breve texto sobre mim)

Leio poesias delirantes em cartas postas sobre a mesa. Minha vida, feito rima, metricamente em versos exposta, me deixando nu entre tantos eus, num constante desalinho. Hoje voltou a chover em boa parte de mim e toda aquela água caindo do céu da minha boca anunciava as boas novas que nunca me esqueci. Ainda sai de meus poros um cheiro bom de terra molhada. Sob meus pés, o barro vermelho, úmido, quente, útero, e daqui a pouco tudo verdinho outra vez. Esperança. Lembro dos tempos em que eu era só uma criança, os olhos de minha avó me servindo de guia, estradas abertas, tantos caminhos e um outro eu ali, sozinho. O menino que um dia fui, o homem que eu não sei se sou. Quantos de mim revelados nessas estrofes? Ninguém sabe e nem nunca vai saber.

O todo é um pronome indefinido.

terça-feira, 9 de julho de 2019

O mundo precisa de afeto, porra.

Sabe-se lá por quanto tempo nosso encontro havia sido adiado. Uma vida inteira, bem capaz. Ultimamente, em meio a tantas polêmicas, tantos desentendimentos, tantos homens sórdidos, talvez o melhor fosse mesmo o afastamento por completo de tudo e de todos, o silêncio absoluto, uma outra encarnação, se é que isso existe. Há meses já que não chovia e toda aquela secura entre as gentes, o sol castigando a pele, a terra vermelha tapando os poros, feridas expostas na palma da mão estendida bem ali sobre nossos corpos outrora nus, o meu e o seu, vulneráveis, indefesos, jogados no chão. Ao redor tudo era um deserto, papel em branco, um vazio assustador. A lucidez, que nunca foi muito firme, deu lugar a devaneios, fantasias, ilusões e outras tempestades provisórias dentro de mim. De nós. Loucura. 

Não me lembro quando nem onde, mas você chegou a me confessar que sonhava sonhos coloridos e que nesses sonhos você nadava em rios de águas cristalinas, subia correndo de um fôlego só as montanhas mais verdes e mais íngremes e lá de cima soprava meu nome entre nuvens branquinhas de algodão. Você chegou a dizer que me amava. Mais de uma vez. Eu nunca acreditei. Nunca quis acreditar. Não me interessava. Na verdade, eu achava aquilo tudo muito piegas, me incomodava. Esse papo de sentimento logo pra cima de mim, que desde cedo fui obrigado a aprender a me virar pra sobreviver, pra ser quem eu sou, pra sair daquele lodo de onde eu vim, não colava. Eu nunca soube o que é carinho de verdade e nem nunca quis saber. Você insistia. Eu desisti. Tudo se acabou.

Algum tempo depois eu li uma frase rabiscada num muro que dizia que o mundo precisa de afeto, porra. Assim mesmo, com todas as letras e vírgulas. Eu estava sozinho zanzando pelo centro abandonado e sujo da cidade, era noite, fazia frio, eu não queria voltar para casa, não tinha nada para fazer, pouca coisa, quase nada, me interessava e aquela frase de repente me fez lembrar você. Não sei precisar por quanto tempo fiquei parado, hipnotizado em frente ao tal muro onde aquela frase estava escrita. Só sei que por alguns instantes tudo parou e era como se eu ouvisse a sua voz sussurrando no meu ouvido que o mundo precisa de afeto, porra, uma, duas, mil vezes aquela frase ecoando na minha cabeça. Uma ambulância com uma sirene estridente passou apressada e me despertou daquele transe. Mais uma vez era só eu e eu ali. Um espécie de náusea e, do nada, um vento estranho varreu tudo pra longe de mim. Eu gelei de saudades por te saber nunca mais. 

 Vida é encontro, hoje eu sei. 

terça-feira, 21 de maio de 2019

Ecos

Há muitos versos guardados em mim, escondidos nesse emaranhado eu que eu mesmo desconheço, disfarçados entre tantos gritos presos em nós nessa minha garganta que se afoga em rimas complexas. Amplificadores de amores desfeitos, espelhos meus, meus reflexos. 

Já não consigo mais me ver por inteiro, não lembro mais como eu era antes, fragmentos. 

Deixo para depois os conselhos que meus eus cismam em me dar e paro para ver de perto toda essa minha loucura. Olhos bem abertos e ao redor tudo é barbárie. Pesadelo coletivo. É nele que estou preso agora. 

É só meu corpo, eu penso. 

É só mais um contorno mal rabiscado, pele, poros, órgãos, fronteiras entre mim e aqueles que me habitam. Sou um, eu sei. Mas junto a mim, outros tantos diante dos abismos. 

Ouço vozes. As de sempre, muito embora eu nunca saiba de onde elas vêm. Elas falam comigo incessantemente. Sussurram meu nome. Ecos. Eu sigo em frente. 

Tenho andado mesmo muito calado ultimamente.  

domingo, 27 de janeiro de 2019

Cena linda de se ver

Dia desses me dei ouvidos e te convidei para crescer comigo. Um outro eu entre tantos outros que me habitam, um laço eterno, visitas inesperadas dentro de mim, que sou feito de gestos simples, olhares úmidos, mãos dadas de repente, amigos e amores lado a lado na estrada. Era tarde quando você apareceu. Me pegou de surpresa, revelou meu lado oculto, luz na minha sombra, teu corpo que é meu corpo sobre meu corpo que é teu corpo. Nu. Fazia tempo que não nos víamos. Desde o dia em que você me disse para eu seguir meu caminho, firmar meus passos em frente, não olhar para trás e aprender com as cicatrizes, já que algumas descobertas causam mesmo muita dor. Eu já sofria terrivelmente sem falar nada para ninguém. Desde sempre tive essa mania. Só eu sabia da impossibilidade da natureza de determinadas coisas, mas mesmo assim eu continuava. Alguma coisa mandava eu não desistir. 

Teimosia. 

Dia desses me tirei para dançar. Fez-se um baile em minha vida. Meus pés rodopiavam incessantemente no salão ao som de músicas que aquele que era eu costumava cantar, lembra? Era doce a melodia cuja letra era de fato um poema deslizando nas estrofes entre as rimas que ele, que ao mesmo tempo era você e eu, escrevia enquanto animava a festa ao meu redor. Havia tantos em volta, e eles pulavam, gritavam, pareciam não querer sair de perto, não me deixavam mais sozinho, e eu ali no centro de tudo, cada vez mais calado, quieto, assustado, quase sem ar. Claustrofóbico de mim. 

Era como se eu construísse barreiras para que você e todos esses que são eu não se aproximassem. Poucas vezes me deixei chegar tão perto assim de mim. Isso é ruim, eu sei. Sempre me senti meio sozinho, fui pedra bruta abandonada na beira do rio, arco-íris decomposto em prisma, geometria das cores, aquarela, luz e sol. Eu sequer percebia quantos eus havia. Não imaginava. Não queria saber. Fiz pouco caso. Fui egoísta. Era eu e eu e eu somente o que me importava. Mas dia desses encontrei de novo com eu você. Tudo já meio diferente em mim. Em nós. Era como olhar num espelho, era como entrar naquele outro eu você ali na frente, era como dar um abraço forte, peito encostando no peito, a pele quente, coração fervendo, cena linda de se ver.  

Dia desses. 

quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

Vida é sopro

Há quem goste mais das estrelas que da lua.
Há os que nem olham para o céu.
Momentos raros e a vida continua
Feito um beijo roubado.
Suas mãos sobre minha carne nua. 

Há os que gritam para todo mundo ouvir.
Há os que ferem mesmo sem sentir
Todo coração um dia foi pisado,
usado, humilhado, fica a cicatriz.
Manchas de sangue sobre meu colchão.

Há os loucos e os poetas que acreditam no amor.
Há os que nunca se permitiram amar de verdade.
Amar nada mais é que conjugar um verbo simples,
é se despir de toda e qualquer vaidade.
Vida é sopro. Amor é sorte.


terça-feira, 15 de janeiro de 2019