quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Não vou reclamar

Há poucos dias prometi a mim mesmo que eu ia parar de reclamar. Nem eu nem ninguém estava me aguentando mais. Não tem sido um exercício fácil. Ainda mais nos dias de hoje, onde o mundo parece desmoronar, os valores estão todos distorcidos - se é que eles, os valores, existem -, o amor não acompanhou a velocidade da globalização, descobriu-se líquido e escorreu pelo ralo. Está todo mundo se matando, homens e mulheres bombas explodindo, genocídio, intolerância, um fuzuê danado.

Nas redes sociais, uma guerra. Um fala X, outro diz que é Y e todo mundo fica discorrendo teses sobre o abecedário inteiro ao mesmo tempo. Maior sanatório aquilo lá. Tem maluco que defende índio, que defende gay, que defende negro, que defende aborto, que defende a maconha. Tem também o bando que defende a liberação do porte de arma, que defende os valores da família tradicional, que defende quem bate em mulher, que defende o Bolsonaro, que é uma figura indefensável. Inacreditável.

Tem uma turma de doido que quando acontece uma atrocidade, manda logo um comentário pedindo para que um tal meteoro venha e acabe com tudo por aqui de uma vez por todas. Acho engraçada a piada, mas não sei se sou a favor de tamanha catástrofe. Penso em mim, nos meus filhos, neto e todos os que eu amo sendo esmagados por um bloco gigantesco de pedra em brasa e não curto. Não deve ser uma sensação nada agradável. Prefiro acreditar que vai ter um jeito. Só não sei qual ainda.

Mas sem querer reclamar e já reclamando, ando, sim, decepcionado. Acho que todo brasileiro está se sentindo desse jeito não é de hoje. Só que minha decepção não se resume ao PT, esse partido que ajudei a eleger mais de uma vez. De início votei convicto. O Brasil precisava mudar. Era muita roubalheira, havia anões do orçamento, compra de votos, estatais vendidas a preço de banana. Uma farra. O Brasil necessitava urgentemente de ética, de um partido com políticos de moral ilibada, honrados e comprometidos com o povo. E o Partido dos Trabalhadores, queira você ou não, representava tudo isso.

Quando inventaram o Lulinha paz e Amor, falando manso, com a barba aparada, ternos bem cortados e um Nizan Guanaes por trás, eu pensei: pronto, os caras vão comer na mão dele agora e vamos consertar esse país. Você certamente vai lembrar que quando o Lula falava, todo mundo baixava o tom de voz para ouvir o que aquele reles metalúrgico tinha para dizer. Mais uma vez, queria você ou não, era impressionante o carisma daquele barbudo semi-analfabeto, nordestino, filho da seca e da fome.

Então, finalmente, ele foi eleito. Eu fui para as ruas, usei botom com a estrela vermelha, camiseta, me emocionei, vibrei e acreditei. Como você, provavelmente.

Pouco tempo depois do operário chegar ao poder, estoura o escândalo do Mensalão, o famoso esquema de compra de votos de parlamentares que fez ruir com os ideais de ética e moral do povo tupiniquim, ingênuo, manso, massa de manobra, e trouxe à tona uma crise sem precedentes. Desestabilizou tudo. Desandou o bolo. Solou.

Lembro de petistas célebres me confessarem que tudo não se passava de um plano de poder, que era condição necessária para se governar e todo esse blá blá blá que a gente sabe que é verdade, mas que o PT, justo o PT, jamais deveria se sujar daquela maneira. Tanto se sujou que atualmente não temos mais o mensalão, mas temos uma Lava-Jato nas manchetes para ajudar na receita dos jornais.

Hoje, a gente vê um senador da República ser preso e um presidente da Câmara com tamanho cinismo ainda solto e pensa em até que ponto esses homens conseguem chegar. Eu sinceramente não sei.

Minha decepção é com isso tudo que eu tenho visto por aí. Não só no Brasil, que fique claro, mas no resto do planeta. Que raça mais desumana é essa? Na minha infância eu lembro de ter pesadelos com Hitler, a quem até hoje eu considero uma verdadeira aberração, a personificação da besta, e os vagões de trens que serviam de câmaras de gás para acabar com os judeus. Filme de terror. Mal sabia eu que ainda haveria coisa pior nesse mundo de meu Deus.

Dia desses deram fim a um rio por aqui. Senti como se fosse uma artéria minha carregada de veneno a me intoxicar lentamente. Assustador esse percurso da morte, eu tenho pensado. Centenas morreram em Paris numa sexta-feira 13 que jamais será esquecida. Imigrantes tentando cruzar fronteiras na tentativa desesperada de fugir dos horrores da barbárie. Irmão matando irmão. O mundo cada vez mais quente, cada vez mais sujo, cada vez mais pobre, tudo secando ao nosso redor e os homens disputando a tapas o troféu da ganância. É muito absurdo.

Que sinais são esses?

terça-feira, 10 de novembro de 2015

Onofre

Era domingo. Aniversário de sete anos da Isabella. O combinado era comemorar na praia, almoçar e, no final da tarde, encontrar os amiguinhos para cantar parabéns no boliche. A menina acordou cedo, antes mesmo que os pais levantassem da cama, e estava que era só animação. Pulava, cantava, rodopiava, dançava pela sala do pequeno apartamento e repetia que aquele era o dia mais feliz da sua vida. 

- Vamos, gente! Vamos porque eu estou muito feliz hoje!

Ela era a alegria da casa. Falante, educada, engraçada, vaidosa. Além de ser uma bonequinha. Morena, miudinha, cabelos encaracolados, olhos curiosos e dona do sorriso banguela mais lindo do planeta. Não havia quem não fosse apaixonado por Isabella. O pai babava. A mãe era só orgulho. Os avós? Corujas, claro. Isso sem falar na vizinhança. 

- Essa menina é uma simpatia, dizia dona Janete, a síndica, toda vez que a encontrava.  

- Ela é a coisa marfofa, exclamava Tereza, a vizinha do duzentos e dois, quando a via passar pelo corredor. 

- Bom dia, minha princesa, cumprimentava seu Jorge, o porteiro do prédio, sempre que Isabella ia para a escola, ainda com os olhinhos fechados de sono, antes das sete da manhã. 

E naquele domingo ela estava ainda mais radiante. Não cabia de tanta felicidade dentro do biquíni novo que ganhou da vó Cleide. Ganhou ainda um chapéu, um óculos de sol e uma saída de praia cor de rosa, que era a cor que ela mais gostava. Assim como seus pais, Isabella também adorava praia. Foi ela quem decidiu que queria ir à praia no dia do seu aniversário, almoçar fora e depois ir ao boliche com os amigos que ela mais gostava: Bianca, Isadora, Catarina, Arthur, Vinícius e Marina. Estava tudo combinado. Seria perfeito. A não ser por um simples detalhe: quando já estavam no carro, os pais de Isabella resolveram dar uma passada rápida no terreno que eles haviam comprado há poucos meses só para ver se o pessoal da obra tinha mesmo levantado o muro. 

- É caminho, filha. A gente nem vai parar, papai promete. 

Mentira. 

Chegando no terreno, todos saíram do carro para ver o muro que finalmente estava de pé. Jana, a rotveiller, veio correndo, toda estabanada, e por pouco não derrubou Isabella no chão de terra batida. A menina nem se abalou e foi atrás da mãe, que catava algumas mangas caídas de tão maduras. O pai foi conferir as sobras de material enquanto sonhava com o dia em que ia ver sua casa erguida ali, bem do jeito que ele sempre quis. Já sabia até onde ia ficar a piscina, a churrasqueira e a mesa de pingue-pongue. Era uma área boa, com pouco mais de 600 metros quadrados, mas que, até então, só tinha mato, duas mangueiras, uma jabuticabeira e a casinha da Jana, a rotveiller que tomava conta do terreno. 

- Tem um ovo, gritou Isabella. Tem um ovo aqui!

Antes mesmo que os pais falassem qualquer coisa, a menina veio correndo com o ovo na mão. Parecia um ovo de galinha, mas um pouco menor. 

- É de galo garnizé, afirmou a mãe, cheia de autoridade. 

- Como você sabe?, perguntou o pai. 

- Desse tamanho, só pode. 

- Posso ficar com ele?, apertou os olhinhos a menina.  

- Claro que não, respondeu o pai. 

- Isabella, a gente vai à praia, esqueceu?, disse a mãe. 

- Deixa o ovo onde você o encontrou. 

- Mas, papai, acho que está nascendo. Olha aqui, ergueu as duas mãos e mostrou o ovo que começava a rachar. 

Num impulso, Isabella levou as mãos fechadas à altura do peito e ficou acalentando aquele ovinho, como se estivesse mesmo chocando. Jana, a rotveiller, não parava de latir, correndo de um lado para o outro no terreno. A menina não pensou duas vezes. Agarrou-se com o ovo e entrou no carro. Ficou encolhida lá no canto e dizia para os pais que tinha desistido de ir à praia. Também não queria mais almoçar fora. Não queria mais nada, só queria chocar o ovinho. 

- Minha filha, você não é galinha. Esse pinto, se nascer, não vai sobreviver longe da mãe dele, sentenciou o pai. 

- Seu pai tem razão, Bella. Deixa o ovinho aqui e vamos à praia. É seu aniversário, lembra? 

- Mas mamãe, a mãe dele não está aqui. Ele não vai gostar de nascer e não encontrar a mãe dele. Deixa eu ser a mãe dele? 

Não demorou mais que dois minutos e o danado do pintinho começou a quebrar a casca do ovo. 

- Ai, meu Deus, tá nascendo, mãe! Vamos para casa, pai!

Não teve jeito. Naquele dia não teve mais praia, nem almoço em restaurante e muito menos boliche. Isabella quis comemorar o aniversário com o filhinho, digo, com o pintinho que nasceu nas suas mãos. 

- Onofre.O nome dele é Onofre, repetia a menina, encantada com o pinto que acabara de chocar. 

O fato é que Onofre sobreviveu. Com duas semanas, já era um frangote. E o mais incrível: por onde Isabella ia, Onofre ia atrás. Bastava ela chegar do colégio e, pronto. Eram inseparáveis. Dava gosto de ver. Dona Janete, a síndica, de início não gostou muito. Ficou preocupada com o que os outros moradores iam falar, já que Onofre piava dia e noite. 

- E quando esse bicho começar a cantar ainda de madrugada, como vai ser?

- Liga, não, dona Janete. Bom que a gente acorda cedo. Nesse prédio aqui todo mundo adora a Isabella. Duvido que alguém reclame, acalmou Tereza, a vizinha do duzentos e dois. 

E não deu tempo mesmo de ninguém reclamar. Onofre ainda não havia completado um mês e os pais de Isabella resolveram passar no terreno mais uma vez para acompanhar a obra. Foram todos. Isabella e Onofre no banco de trás. O galinho ia todo garboso ao lado da menina, que sorria, toda contente. Ela realmente nutria por ele um sentimento de mãe. Ela piava e ele piava em seguida, como se estivessem conversando. Todos riam. Onofre já era da família. Comia da melhor ração e bebia água sempre fresquinha. Era um galinho garnizé muito do bem tratado, com as penas avermelhadas, o bico brilhoso, peito estufado e a crista já dando sinas que ia tombar para a esquerda, feito um topete. 

Chegando no terreno, todos saíram do carro para ver o andamento da construção. Jana, a rotveiller, mais uma vez veio estabanada. Isabella pegou Onofre no colo, a mãe foi catar mangas, o pai foi ver as sobras de material. O muro já estava pintado, o mato havia sido capinado, o terreno ao lado já tinha sido comprado. Estava um dia quente, de sol, céu azul, quase nenhuma nuvem. Bom para um passeio. Tão bom que Isabella resolveu soltar o Onofre no chão para que ele pudesse conhecer o lugar de onde ele veio. 

- Foi bem aqui que eu te achei, Onofre, começou a contar Isabella. 

Onofre, tadinho, não deu meia dúzia de ciscadas no terreno. Jana, a rotveiller, quando viu aquele galo solto, correu feito uma louca e engoliu Onofre numa só mordida. 

Os pais se entreolharam incrédulos. Isabella, aterrorizada com a cena, deu um grito que ecoa até hoje e desmaiou. Jana, a assassina, digo, a rotveiller, percebendo que era culpada pela gravidade da situação, se escondeu no fundo da sua casinha e de lá só saiu quando começou a engasgar com o bico do Onofre, que era de difícil digestão. 

Tadinho do Onofre. Só sobrou o bico.

Tadinha da Isabella. Recuperou-se do trauma a duras penas. 

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Quem é esse outro que está sempre ao meu lado?

Há mais de três meses que não caía uma gota de chuva sequer naquelas terras. Nuvens carregadas até pincelavam o céu de negro vez ou outra, mas logo se dissipavam e o azul infinito dominava a paisagem sem a menor cerimônia. O ar estava seco. A pele, os poros e as relações também. Os dias pareciam correr cansados e as noites, quentes e insones. Já não sabia mais há quanto tempo estava ali. Confessou-me mais tarde que lembra de ter ligado para ele no dia de sua morte e me disse, também, que nunca esperava que aquilo tudo um dia tivesse um fim. Mas era o corte que faltava, a ruptura abrupta, a ferida aberta e a saudade que se espalhava por todo o seu corpo feito vírus sem cura que lhe trouxera até ali.

- O que se afasta de mim me pertence, era a frase que repetia inúmeras vezes em meus ouvidos como se eu não estivesse prestando atenção em tudo o que me contava.

Eu custei a entender o que estava por trás daquela conversa toda. Por vezes pensei se tratar de sonho ou de alguma alucinação. Volta e meia eu costumava me deixar levar por devaneios e quando, mais cedo ou mais tarde, eu dava por mim, tudo não passava de fruto da minha imaginação. Eu até usava uma coisa ou outra para poder me iludir um pouco, mas daquela vez, não. Tudo era muito real. Aquela pessoa realmente existia e estava ali na minha frente, feito espelho que se quebra, a se permitir mosaico de si mesma. Engraçado é que há anos não nos víamos. Sabíamos um do outro, era como se caminhássemos lado a lado, mas não nos olhávamos, não nos procurávamos mais. Era como se algo tivesse se perdido entre nós. Como se tudo tivesse secado.

Mas naquela noite choveu. E conversamos. E choramos juntos. Inundamos nossas faces. Regamos nossas histórias. Transbordamos nossas memórias há muito esquecidas em terreno áspero e longínquo. Lembro que demos as mãos e foi então que, por muito tempo, não sei quanto, ficamos em silêncio. O barulho da chuva forte escorrendo no telhado da velha casa de paredes amarelas era o único som que havia ali. Tenho pra mim até que por alguns minutos paramos de respirar. Nossos corpos feito estátuas, inertes, tudo ao redor, mas tudo ao mesmo tempo ausente. Até que veio o vento e com ele as folhas das árvores que se sacudiam lá fora se espalharam por toda a sala, levantaram a poeira, bateram as portas, escancararam as janelas e aquele movimento todo fez com que despertássemos. Nossas mãos se soltaram. Olhos nos olhos. Corações a mil e os pensamentos feito as folhas espalhadas pela sala, bagunçando tudo, só que dentro de nós.

- O pacto era com a felicidade, eu consegui dizer num sopro de lucidez. Mas talvez você não tenha entendido o real significado e tenha te restado só esse vazio, esse oco, esse deserto onde você resolveu se instalar.

Não esperei resposta. Disse isso como se fosse uma verdade absoluta - tenho essa mania desagradável - e levantei para trancar as janelas e abrir algumas portas. Só ali onde estávamos havia luz. Os outros cômodos estavam todos apagados. O chão de tábua corrida rangia a cada passo que eu dava e eu podia perceber o quanto havia de solidão em mim também. O quanto meu pacto havia se quebrado, partido, estilhaçado e eu vi que eu era da mesma matéria que o pó que sujava meus pés descalços ali naquela noite de chuva forte depois de meses de estiagem.

- Eu também sou esse pó, respondeu, então, em voz baixa, quase um lamento. Eu sou o pó, mas há muito mais em mim. Eu sou o vento, sou o sol que castiga e sou essa chuva que alivia e traz alento. Eu sou o rio que se perde no mar, a fonte inesgotável da vontade, o brilho que te guia, os braços que te carregam. Eu sou o seu caminho. A sua estrada está em mim.

- Mesmo que eu me afaste?, perguntei.

- Não adianta se enganar e levantar com a desculpa de que vai trancar janelas e abrir algumas portas porque tudo acontece exatamente como deve acontecer, você sabe. É correnteza, é fluxo, é movimento, fluidez. Nada vai conseguir barrar. Chega a ser insensatez não perceber. Somos espelhos, lembra? Eu conheço tanto de você quanto você conhece de mim.

- Mas o que tem a ver se somos reflexo um do outro ou não? Onde foi que isso entrou em jogo? Foi você quem chegou aqui junto com a chuva e desandou a falar. Não te perguntei nunca nada. Há anos não lembrava da sua existência. [Mentira] Você hoje apareceu do nada, junto com toda essa chuva, e veio me contar do dia da sua morte, das suas feridas abertas e da saudade que machucava seu peito. Parecia alucinação.

- Anunciação, não alucinação. Não esqueça que eu trouxe, além da minha morte, a chuva que lava, que rega, que regenera e mata a sua sede e a minha.

Ouvi trovões lá fora.

(Quem é esse outro que está sempre ao meu lado?)