quarta-feira, 23 de maio de 2012

No céu até se perder




Há hoje uma enorme distância entre mim e o resto do mundo.
Feito linha que arrebenta e deixa a pipa solta no céu até se perder de vista e nunca mais.
Nunca mais.
Nunca mais.

sábado, 5 de maio de 2012

Tarja-preta

Era tarde já quando a encontrei perto da lanchonete. Sexta-feira na repartição é sempre uma corrreria, mais que o normal do dia a dia. É um entra e sai danado de gente, um falatório sem fim, um sobe e desce de escadas e pilhas e mais pilhas de processos que têm data para expirar. É o dia em que o chefe parece estar sempre mais nervoso, com os olhos revirados, poucas palavras e ordens, muitas ordens. Volta e meia, quando sobra um tempo para parar e pensar, tenho para mim que trabalho numa fábrica de loucos. Se eu resolvesse traçar um raio-x ou fazer uma espécie de anamnese de cada um daqueles que trabalha comigo, sei não, mas acho que eu teria um tratado sobre psicanálise que faria Freud regozijar de tesão com tamanho material humano.

Foi quando resolvi dar uma pausa para um café que encontrei a tal colega. Quarenta e poucos anos, mas com tudo em cima ainda, aparentando bem menos até. Coxas grossas, canela bem torneada, peitos fartos, sorriso generoso, cabelos bem tratados e sempre cheirosa. Além de bonita é simpática, atenciosa e sabe lidar desde o chefe até a moça da faxina. Não faz nem nunca fez distinção alguma. Deixa grande parte dos homens daquela repartição completamente envolvidos por ela. Eu, inclusive.

Peguei meu café e já ia voltando para a minha sala quando ela me chamou. Perguntou se eu estava muito ocupado e se eu podia bater um papo rápido. Respondi que sim, claro, e que estava mais era a fim de um pouco de conversa fiada àquela altura do dia, precisava relaxar. Deixou escapar logo de cara o tanto que vinha se sentindo incomodada ultimamente e precisava desabafar com alguém. Disse que não sabia o porquê, mas confiava em  mim. Contou que fazia terapia já há alguns anos e que usava remédio controlado, tarja-preta  mesmo. Fiquei espantado, mas procurei disfarçar. Nunca que eu poderia imaginar que uma mulher daquelas tivesse algo de maluca e precisasse se tratar, muito embora trabalhássemos todos naquela fábrica de fazer doido. Logo ela, que sempre me pareceu equilibrada.

Mas que nada. Vivia à base de remédios desde muito cedo, isso sim, era frágil, sentia-se desprotegida, sem um pingo de autoestima, vai entender, ela confessou. Tinha se apaixonado recentemente, coisa que não acontecia desde que ela se casara pela primeira vez, já que a segunda vez casou foi por necessidade mesmo, não por amor. Não tinha estrutura para viver sozinha, tinha dois filhos para criar, uma casa para manter e a juventude para ser usufruída. Esta parte eu tive de discordar, pois já que ela desejava usufruir da sua juventude, que se mantivesse livre, sem as amarras que uma relação a dois impõe. Discordei mas não falei nada, na verdade. Continuei apenas ouvindo.

Ele nunca mais me procurou, ela disse. Convivemos cinco meses antes dele viajar. Foi intenso demais, pelo menos para mim, confessava, enquanto em seus olhos ela deixava escapar uma tristeza profunda, daquelas que a gente vê em filmes de amor, quando a mocinha sofre ao perceber que foi enganada, que aquele por quem ela se apaixonara perdidamente não valia nada e era o verdadeiro vilão da história.

Pude ver ali, naquela muher, uma ingenuidade quase infantil e senti uma enorme vontade de abraçá-la e de dizer que aquele filho da puta não valia nada, que ela poderia ser feliz com quem bem quisessese e que se ela topasse eu poderia fazê-la a mulher mais feliz deste planeta. Eu sim, claro. Livre, desimpedido, solteiro, alguns anos mais jovem, carro novo, apartamento próprio, carreira estabelecida e coisa e tal, mas não falei nada. Continuei ouvindo.

Soube que o tal cara tinha viagem marcada. Ia morar fora por pelo menos dois anos, havia ganhado uma bolsa de estudos no Canadá, um frio do caralho, ia aprimorar o francês, o inglês, os estudos de botânica, as teses, as dissertações. Nunca escondeu isso dela, é verdade, mas chegou a dizer que a amava algumas vezes e quando estavam juntos a entrega era total, só ele e ela ali, onde quer que fosse, e a crença num amor verdadeiro fez de novo surgir nela uma alegria intensa de viver, coisa que ela já não sentia desde que conhecera seu primeiro marido. Chegada a hora ele foi embora. Passaram a se falar via internet, mas não com tanta frequência.

Pouco a pouco ele passou a evitá-la. Houve um dia em que ela estava mais fragilizada que nunca, com problemas no trabalho, a mãe doente, o mundo ruindo ao seu redor e ele estava online. Ela implorou que ele lhe telefonasse, precisava ouvir sua voz, uma palavra amiga daquele que por cinco longos meses fora o responsável por seu coração acelerar e por deixar suas mãos geladas feito a dos adolescentes que marcam um primeiro encontro. Ele não ligou. Disse que ela estava exagerando, que ela confundia tudo, que se ela continuasse daquele jeito ele seria obrigado a deletá-la de seus contatos. Frio. Estúpido. Covarde. Ela só conseguia chorar e se martirizar por ter sido tão sincera todo o tempo, por não ter conseguido mascarar seus sentimentos, por ter chegado a pensar em largar tudo para viver ao lado daquele homem que não se deixava mostrar de verdade quem ele era. Ele sim a confundia, parecia não aceitar o que sentia, escondendo-se sob uma capa, vestindo as armaduras sujas daqueles que não conseguem se entregar ao lado apaixonado da vida.

Ela me contou da vez que foram à praia porque ele queria se despedir do mar. A viagem estava se aproximando, seria dali a poucas semanas e eles poderiam aproveitar os dias de sol que ainda restavam antes de o inverno chegar para valer. Percorreu com ele praticamente toda a orla da cidade, pisaram descalços na areia, deram alguns mergulhos, foram almoçar num restaurante com vista para a restinga, conversaram a tarde toda, riram até, viram o por do sol do alto de uma pedra bonita e terminaram a noite num quarto de motel feito fazem os casais enamorados. Ele lhe disse que nunca mais esqueceria aquele dia. Ela disse que jamais esqueceria dele. Ele já a esqueceu, ela tinha certeza. Ela estava enlouquecendo.

Por mais que tentasse não pensar nele, dia e noite lembrava de seus pelos, de sua barba, de sua perna fina, seus cabelos negros, sua voz suave, seu hálito, tudo. Ele nunca mais apareceu online. Nunca mais deu sinal de vida, muito embora ela soubesse que ele estava bem, vivendo a história que escolheu viver. Dela ele não queria mais nada, era parte de um passado que talvez preferisse esquecer, apagar, sabe-se lá por que cargas d´água. Nem amizade, nem um sentimento, nada. Uma pá de cal, um ponto final sem nexo, feito uma história feia, proibida, sem explicação. Ela agora sabia como era morrer de amor.

E eu ali, só ouvindo.