quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Sinais do apocalipse

Domingo passado fui do céu ao inferno. Pela quinta vez desde que vim morar em Brasília, peguei a estrada e fugi pra Chapada dos Veadeiros. A primeira vez que estive lá foi em junho, já na época da seca. Desde então, volto sempre que posso. A estrada até lá é um tapete, os contornos dos morros são deslumbrantes, o verde sobrevivendo na aridez vermelha do barro é emocionante, a enorme rocha de quartzo rosa ali embaixo, o berço dos nossos rios, as veredas de buritis, o silencio nas trilhas, a água limpa das cachoeiras. A Chapada dos Veadeiros é a experiencia viva de Espinoza, um filósofo português/holandês do século XVII que anda fazendo a minha cabeça. Impactante. Mas pegou fogo em quase tudo. E eu vi a tragédia de perto.

Os focos de incêndio já haviam começado uns dez dias antes, quando eu também estava lá com um grupo de vinte amigos, numa viagem inesquecível. O Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, motivo da discórdia e do ódio dos fazendeiros da região, já estava fechado por conta do fogo ainda sob controle. Durante a semana eu ia acompanhando as notícias, meio apreensivo, pois os focos de incêndio estavam aumentando, o parque continuava fechado, a mata ardia em chamas, a preocupação aumentava, até que no sábado, ainda de madrugada, peguei a estrada e lá fui eu mais uma vez rumo ao paraíso, sem saber ao certo o que eu ia encontrar. Fomos eu e uma amiga, Rosa, que tinha chegado do Rio de Janeiro para se desligar do mundo aqui pelas bandas do Cerrado. 

Fomos direto para Cavalcante. Quatro horas de viagem. Mais uma hora numa estrada de terra batida até chegar na comunidade quilombola dos Kalungas, onde ainda encaramos mais uma hora de trilha sob um sol escaldante entre pedras e árvores retorcidas. A recompensa? As cachoeiras da Capivara e Santa Bárbara, esta última mais parece um altar banhado por uma água azul como eu nunca tinha visto antes. Agradeci por poder estar ali, por poder sentir aquilo tudo que eu estava sentindo, por poder me reconhecer enquanto menino, mato, pedra, água, ar. Era eu e o todo ali. O todo era eu. A Chapada me fez perceber ser assim desde a primeira vez. 

Domingo, depois da preguiça e do café da manhã, era hora de voltar pra Brasília. Não sem antes dar um mergulho numa outra cachoeira e passar por São Jorge, que minha amiga queria conhecer e eu queria apresentar. De Cavalcante a Alto Paraíso, um rastro crescente de destruição foi nos acompanhando de um lado e de outro da estrada. Quando pegamos a reta para São Jorge, não demorou muito e o cenário foi ficando ainda mais assustador. Não havia mais o azul do céu, só uma densa camada de fumaça negra, o Morro da Baleia completamente tomado pelo fogo, o Jardim de Maytrea com seus buritis de mais de trezentos anos agonizava, aves voavam sem rumo e eu também fiquei sem saber para onde ir. 

Parei o carro no meio da pista sem acreditar no que eu estava vendo, sem saber se eu chorava, sem saber para onde eu olhava, sem saber o que eu fazia. Abri os vidros, foi quase impossível respirar. Atônito, fiz algumas fotos e dei meia volta. Era arriscado seguir em frente. Coração na boca, cabeça a mil, carro a 150 por hora, voltei para Brasília com uma tristeza muito grande no peito. Ver aquele paraíso transformado em inferno pela ganancia humana foi das piores sensações que eu tive desde que cheguei aqui. Eu vi o apocalipse. Nunca vou esquecer. 

E um silencio ensurdecedor fez-se em mim.

Semana que vem faz dez meses que cheguei em Brasília. Dez meses sem andar de ônibus, sem meus meninos todos os dias por perto, sem ouvir as histórias nas ruas que alimentavam meus textos, sem passar na casa do Raul para bater um papo despretensioso num fim de tarde qualquer, sem subir as ladeiras de Santa Teresa e encontrar os amigos no Largo das Neves, sem a linha do trem da Central do Brasil que divide o meu subúrbio, sem uma ducha lá no alto das Paineiras, sem o gosto salgado do mar. Dez meses que estou aqui, no centro de um planalto já não tão vazio. Na capital do país que arde. 

Fui bem recebido. Brasília me acolheu de uma maneira que me surpreendeu. Quem me conhece sabe que eu nunca, jamais, em tempo algum pensei em morar aqui. A ideia de morar no Cerrado não passava pela minha cabeça. Longe de tudo e de todos, eu, que fui acostumado com casa cheia? Nem em sonho! A verdade é que aqui estou e não me arrependo de ter vindo. Mesmo isso aqui sendo um deserto, mesmo com tantas tesourinhas e superquadras que me deixam perdido, mesmo aqui sendo palco desse circo político que acaba com a dignidade do nosso povo, mesmo com essa proximidade com o falso poder, mesmo com tudo isso que está aí, é aqui em Brasília que eu estou aprendendo a viver sozinho, a lidar de verdade comigo mesmo, a enfrentar meus medos e silêncios. Eu sempre tive medo do silêncio. 

E de fogo também, confesso.

#soschapadadosveadeiros