sexta-feira, 14 de setembro de 2018

Paris foi uma festa

Dia desses pedi licença ao Hemingway e também fiz de Paris uma festa. Nunca tinha ido à França, nunca tinha ido à Europa, nunca tinha cruzado o Atlântico. Eu tinha apenas quinze dias de férias, tinha uma grana guardada, tinha muita vontade de viajar e tenho também uma amiga, a Regina, que me deu o toque de que estava rolando promoção de passagem pra Cidade Luz e que era para eu entrar no site da companhia aérea naquele minuto, não pensar duas vezes e garantir logo meu lugar no voo. Adoro gente decidida, que manda as coordenadas, que resolve tudo. Obedeci.

Aí foi que veio o frio na barriga. Fui ver meu passaporte: vencido. Euro? Só tinha ouvido falar. Inglês? Em construção. Francês? Jamé parlei. Mas a ideia de viajar sozinho para o exterior pela primeira vez na vida já me acompanhava desde algum tempo, mais ou menos o mesmo tempo em que vivo eu e eu em Brasília, o silêncio, esse céu, o barro que pinta de vermelho meus pés. Prato cheio para o meu analista. Ele adora. Ainda não o encontrei desde que cheguei de viagem. Não sabe de nada.

Não sabe da felicidade com a qual cheguei e que me acompanhou por todos os dias naquela cidade. Não sabe do meu primeiro piquenique na grama rala em frente à Torre Eiffell tão logo pisei por lá, sob um céu azul pintado especialmente para mim, presente do Grande Produtor, com quem tenho uma boa relação, graças a Deus e a Adriane, que nos apresentou. Não sabe da minha amiga Ana Paula, que numa única frase num bate-papo online, eu ainda no Brasil, ela na França, me arrumou um lugarzinho bacana pra caramba pra eu ficar, bem pertinho do metrô, ao lado do Champ de Mars, o Rio Sena logo ali, vizinho de uma lojinha de queijos pela qual eu me apaixonei à primeira vista e dos quais comi alguns fartamente acompanhado de muito vinho de todas as cores desde a hora em que eu acordava até a hora em que eu ia dormir.

Meu analista sabe que eu costumo acordar bem humorado todos os dias. O que ele não sabe até agora é que eu acordava ainda mais bem humorado em Paris. Devia ser por causa das baguetes que eu comprava numa boulangerie - frescura e biquinho à parte, não dá para traduzir boulangerie como uma simples padaria porque, na boa, não pode e pronto - perto de casa para comer com aquela manteiga que só tem por lá, com homus de todos os tipos, com um suco de pêra que eu sabia que ia sentir saudades desde o primeiro gole, com aqueles telhados todos à minha frente. Era mais ou menos desse jeito que eu forrava meu estômago todas as manhãs antes de ir para a rua, abrir a primeira garrafa de rosé, refresco num verão inesquecível, e sair flanando, verbo intransitivo e ocioso, sem rumo e destino certo naquela cidade linda de viver.

Ainda não decidi se conto para o meu analista que os franceses foram simpáticos comigo quase que o tempo todo. Só resmungavam quando eu esquecia de iniciar qualquer frase naquela língua pra lá de romântica sem um bonjour antes. Foi assim no metrô, quando cheguei meio tímido meio decidido e mandei ân tíquete sivuplé, assim mesmo, com sotaque carioca, pro bilheteiro. Foi o bastante para ele franzir o cenho olhando no meu olho, rosnar alguma coisa que eu não entendi _ e que me gelou a espinha na hora de tamanho nervoso, confesso _, apontar o dedo estressado para uma maquininha onde estava escrito BONJOUR, assim mesmo, em letras garrafais, e me dizer com todas as sílabas "tu es à Paris". Tradução: você está em Paris. Ali eu entendi que minha mãe tinha razão e que eu precisava ser mais bem educado, dizer bonjour sempre que fosse pedir qualquer informação, que não bastava aquela troca de olhares, um cumprimento sutil de sobrancelhas, um sorrisinho de canto de boca como muitas vezes estamos acostumados por aqui. Óbvio que eu esqueci desse detalhe mais umas duas vezes até o final da viagem, mas em se tratando de mim, desligado e desmemoriado, já era de se esperar. Era pardón pra cá, pardón pra lá e au revoir

Uma coisa é certa: vou contar para o meu analista que o Louvre fecha toda terça-feira e que eu, desavisado e desinformado, dei com a cara na porta minutos depois de ter dado com a cara na porta do Museu L'Orangerie, ali perto, onde estão as Ninfeias de Monet e que também não abre às terças. Ainda bem que entre um museu e outro fica aquela lindeza que é o Jardim de Touleires e que eu vim a saber, via Google, é o primeiro jardim público de Paris. Aliás, vou confessar para vocês em primeira mão que nem me importei muito em não ter conseguido entrar no Louvre. Na noite anterior eu fiz um passeio de barco pelo Rio Sena e uma das curiosidades que o guia falou e que mais me chamou a atenção foi que se ficássemos apenas três segundos em frente a cada obra do museu, levaríamos três meses para ver todo seu acervo. Me deu preguiça e resolvi deixar o Louvre para uma próxima vez, no inverno, talvez. Preferi aproveitar Paris à céu aberto, sentir na pele toda aquela luz que mais me soava como poesia.

Quando eu disser para o meu analista que eu troquei o Louvre por uma caminhada até o Arco do Triunfo e que de lá fui comer um tal de beef bourguignon e dar uma calibrada no nível alcoólico pelas ladeiras de Montmartre depois de ter me emocionado na Sacré Couer, ele vai entender. Vai entender também o porquê de eu ter me apaixonado pelo alaranjado do pôr do sol na beira do Sena e ter perdido a conta de quantas garrafas de vinho compradas por quatro, cinco euros num supermercado Carrefour eu bebi naquelas margens em meio a tantas risadas cúmplices, Marília, Letícia, novas amizades, e os beijos na boca que eu provoquei. Paris te seduz assim, de cara. Irresistível.

Meu analista vai gostar de saber que eu andava uma média de 16 quilômetros por dia, de acordo com um aplicativo que eu nem sabia que eu já tinha e descobri quando cheguei lá. Ele vai gostar de saber que eu não perdi a mania de estar sempre atrasado e que de tão atrasado só fiquei meia hora no Jardim de Luxemburgo, outra lindeza daquela cidade, e que fecha às oito da noite. Tudo bem que nem era noite, era verão em Paris e ainda era dia, mas fechava mesmo assim. Eu lá, sentado depois de andar por horas, com os pés cansados, crente que ia relaxar um pouco e o guardinha começa a apitar, avisando que os portões iam fechar e que era para todo mundo sair. Eu saí, claro.

 Não vou conseguir lembrar se foi naquela noite que resolvi ir até o Marrais, o tal bairro moderninho de Paris, e acabei numa espécie de inferninho de duas alemãs ali pelas bandas da République, uma versão mais cosmopolita da Rua Augusta. Foi lá que encontrei uma brasileira, baiana, Maria, bêbada, acompanhada por dois alemães enormes, também bêbados, e que se fizeram de mal encarados quando me apresentei, talvez pelo fato de eu também ser brasileiro e Maria ter puxado assunto comigo, samba, capoeira, essas coisas que eu nem entendo muito bem, na verdade. Não demorei, paguei minha birita, voltei andando pro Marrais e cheguei numa praça linda, isso é redundância, eu sei, cheia de galerias de arte e bares ao redor, a Place des Vosges, onde morou Victor Hugo, o escritor. Foi naquela noite que eu, alcoolizado e sem internet para chamar um Uber ou sequer consultar um aplicativo que me indicasse como fazer para voltar para casa, quase surtei. Imagina eu ali, sozinho, tarde da noite, com vinhos de um dia inteiro nas ideias, longe pra caramba de onde eu estava hospedado, com meu francês inexistente e meu inglês cansado. A sorte foi que uma alma bondosa percebeu meu desespero e me disse que o último trem do metrô para a estação de Bir-Hakeim ia passar dali a quinze minutos na estação Saint Paul e que era para eu correr. Voei.

Preciso contar pra ele como foi bonito esbarrar com uma estátua gigante do Arcanjo São Miguel em plena Praça Saint Michel, claro, e silenciosamente agradecer pela proteção e por todos aqueles dias bacanas daquela viagem que eu nunca mais vou esquecer. Agradeci por tudo, também, assim que pisei na Catedral de Notre-Dame, ali pertinho, depois de me engordurar com um croissant de chocolate, de pé, sob o sol, ao lado de noivas japonesas e suas fotos de casamento. Agradeci até mesmo quando estava no bar que fica no terraço do Centro George Pompidou, que maravilha, boa conversa, novas amizades, encontros que a vida te proporciona, admirando, hipnotizado, lá do alto, a cidade. Coisa mais linda.

E foi para fechar com chave de ouro que, na última noite, uma amiga francesa, Heloise, que morou anos no Rio de Janeiro, mas que eu só conhecia via Facebook, me chamou para um jantar de despedida na casa dela. Pode trazer quem você quiser, ela disse. Levo uns vinhos também, respondi, comendo uma galette e aproveitando o wi-fi de graça em frente ao Museu d'Orsay, depois de passar a manhã e a tarde andando pra lá e pra cá me despedindo de Paris. Voltei pra casa, tomei um banho, deixei a mala praticamente pronta, vesti uma calça jeans, escolhi uma camisa invocada, peguei o metrô e fui encontrar Heloise com a estranha sensação de que eu estava indo conhecer uma amiga do peito, irmã, camarada e que é a boa energia e os afetos instantâneos que unem as pessoas. Naquela minha última noite em Paris, Heloise, que só me conhecia de Facebook, Letícia, que eu conheci dias antes e que era amiga de Marília, que mora em Paris, que já tinha virado minha amiga e que por coincidência conhece vários amigos meus, nos conhecemos ainda mais e brindamos à nossa capacidade de compartilhar afetos e transformar a vida, onde quer que a gente esteja, numa verdadeira festa.

Voltei para o Brasil horas depois, ainda bêbado, ainda mais feliz. Trouxe muito de Paris comigo. Deixei muito de mim por lá. Qualquer hora eu volto, eu sei.