domingo, 23 de maio de 2021

Sem dor nem fúria

Ouvir The Köln Concert, do avassalador Keith Jarret, ao final de mais um domingo, em que mais uma vez tivemos provas de que estamos vivendo num mundo assustadoramente doente, me soa como uma espécie de alento, me faz sentir menos culpado enquanto pertencente a essa raça que se autodenomina humana. Não sei como vocês lidam com a realidade ou qual o nível de entorpecimento de cada um, mas eu, por exemplo, me vejo inserido numa sociedade despedaçada. Seja ela despedaçada porque de fato ruiu - o que foi projetado como sociedade ou a coisa em si -, ou despedaçada por estar aos pedaços, perdida, isolada, feito peças de um quebra-cabeças que precisa ser montado. 

E não é essa sociedade despedaçada o que me destrói por dentro, muito embora me apavore. Desde muito cedo que eu gosto de ter a consciência do caos, do som ao meu redor. Eu procuro prestar atenção, ficar atento. É como se naquele momento algo de muita importância e que eu nem sei exatamente o que é se organizasse dentro de mim. O que me destrói por dentro é a inércia nossa de cada dia. Reparem que eu me incluo nessa. Talvez muitos de vocês também se sintam assim, não sei. 

Aqui em Brasília é um pouco mais complicado estruturar qualquer tipo de análise mais ampla da sociedade. Pelo menos para mim, como mero observador que sou e autor de análises rasas, é bastante complicado. Aprendi a amar essa cidade. De verdade. Mas Brasília é uma cidade de distâncias. Se você é daqueles que não gosta de muita aproximação com ninguém, aqui é o lugar ideal. Não é o meu caso. Eu gosto de gente. E gosto de Brasília. Parece contraditório e de fato é. 

Mas é que aqui, depois de um breve estranhamento, passei a fazer outro tipo de análise, posicionei meu observador num outro lugar e foi como se meu ângulo de visão se estreitasse e eu passasse a enxergar apenas poucas pessoas. Para algumas dessas poucas pessoas, inclusive, foi como se eu tivesse olhado com lupa. E então, o que de cara se mostrava distante, logo se aproximava e se revelava com muito mais riqueza de detalhes. E o curioso é que, na mesma proporção que havia essa aproximação com os de fora, havia uma enorme aproximação com aqueles que eu carrego dentro de mim, que agora também deixavam que eu os observasse e com a mesma riqueza de detalhes. 

Talvez essa aproximação com todos esses que habitam ao redor e dentro de mim tenha ajudado para que eu não me despedaçasse nesses últimos tempos tão estranhos, pandemia, isolamento social, perdas e saudades. Mesmo eu tendo a consciência de que eu pertenço a essa sociedade despedaçada, que eu sou peça desse quebra-cabeças, que carrego minhas culpas e que sou o único responsável por minhas tragédias mais íntimas. 

Confesso que não sei o porquê de eu escrever essas poucas linhas tortas nesse final de domingo se o que eu queria mesmo era ter o poder de livrar todo mundo desse Mal que eu infelizmente vejo tão próximo de todos nós, sem exceção, e não tenho. Escrevendo, infelizmente, ainda não consigo nos livrar dos que estão cegos e inseridos numa espiral negativa que pode arrastar todos nós para uma tragédia coletiva. Tragédia essa que já está batendo em nossas portas e andando de moto bem debaixo do nosso nariz.

(escrever sempre foi meu desabafo comigo mesmo quando tudo parece fora do lugar)