"Nunca fui santo" foi o que ouvi dia desses de um senhor dentro do ônibus. Eu estava compenetrado, lendo "O Estado e seu papel histórico", do Kropotkin, e custei a perceber que ele falava comigo. Já passava das oito da noite, eu não tinha ido de carro para a produtora, o ônibus estava lotado e aquele senhor insistia em me dizer que nunca tinha sido santo. A Lagoa Rodrigo de Freitas estava engarrafada, o motorista lá na frente parecia mal humorado e a sirene insistente de uma ambulância lá atrás anunciava uma viagem neurótica. Ao meu lado, um senhor de cabelos branquinhos, bem apessoado, merecia todo o respeito que se deve ter com os mais velhos e eu não pude ignorá-lo. Por mais que quisesse.
Bastou eu deixar o livro de lado para ele começar a me contar parte de sua vida. Teve três filhos. Duas meninas e um menino. A falecida era costureira. Ele, contador, hoje aposentado, mas que trabalhou a vida toda para que os filhos tivessem estudo e condições de conseguir uma vida melhor. Moravam em Bonsucesso. Na época ainda não existia o tráfico da maneira como existe hoje, mas seu menino, o mais novo, se envolveu com o que não devia e foi morto no morro do Adeus numa troca de tiros com a polícia antes mesmo de completar a maioridade. Saiu no jornal e tudo. Uma tristeza. A saúde da mãe nunca mais foi a mesma depois daquela tragédia. Começou a ter desmaios, tonteiras, nunca mais quis sair de casa e morreu dois anos mais tarde. "De vergonha", ele confessou.
Foi depois de viúvo que começou a beber. Antes não tomava nem cerveja. Mas não era crente não. Era porque não gostava mesmo. Mas bastou enviuvar pra começar a gostar. Foi num bar no Lido que ele conheceu Marlene, uma morena que logo convidou pra morar com ele lá em Bonsucesso. Foi um escândalo. 30 anos mais nova. Um avião. A filha do meio não aceitou de jeito nenhum e resolveu juntar os trapos e ir morar com o namorado. Menina ciumenta aquela. A mais velha ficou e virou amiga de infância da Marlene. Viviam juntas pra cima e pra baixo, sempre com muito assunto pra conversar e em pouco tempo viraram confidentes uma da outra. "Estavam sempre trancadas no quarto", ele disse. Disse ainda que a filha começou a ficar mais bonita, a querer se arrumar. Marlene começou a fazer conta em lojas de roupas. Ela também estava ficando mais vaidosa. Um belo dia, ao chegar em casa depois do serviço, não encontrou nenhuma das duas. A comida estava na panela, a cama estava desarrumada, a luz do banheiro acesa e ainda restava um cheiro forte de perfume no corredor. Em cima da televisão, uma carta escrita sem o menor capricho revelava que Marlene e a mais velha iam morar juntas, que todas as contas daquele mês estavam pagas, que ele não precisava se preocupar e que elas estavam bem.
Confesso que eu estava sem graça, meio incomodado até, mas ao mesmo tempo curioso e intrigado por ouvir tantas revelações de uma pessoa que eu nunca havia visto antes na minha vida. Àquela altura o engarrafamento já não incomodava mais e a viagem do Leblon ao Maracanã parecia muito mais curta do que é normalmente. Aquele senhor não parou de falar um só minuto e uma certa hora eu devo ter feito uma cara de "desculpe, mas eu entendi direito?", e ele não titubeou e disse com todas as letras: "é isso mesmo, meu filho... duas sapatonas". Ele, que havia levado Marlene pra sua casa crente que assim seria mais feliz, na verdade acabou fazendo a felicidade da filha. Logo a mais velha, a mais companheira, a que sempre gostou de ajudar a mãe, a que nunca foi de sair. Era do trabalho pra casa e da casa para o trabalho. Aos domingos ia ao culto. Gostava de se fazer de santa. "Eu não, meu filho... eu nunca fui santo... eu fui corno... e da minha própria filha!".
Tive a impressão que todos ali no ônibus prestavam atenção na conversa e procuravam fazer silêncio para ouvir também. Num relance o senhor se despediu de mim, fez sinal e saltou do ônibus na Praça da Bandeira, bem debaixo da passarela e desconfiei de que ele ia para a Vila Mimosa, logo ali ao lado. Eu esqueci do livro que estava lendo, achei melhor deixar Kropotkin e suas teorias sobre o Estado para depois e fiquei com a história daquele senhor martelando na minha cabeça. Tive vontade de perguntar se ele continuava morando sozinho, se Marlene e sua filha ainda são felizes, se ele arrumou outra mulher ou se parou de beber. Mas acho que nunca mais vou encontrar aquele senhor e que eu vou ter que usar a minha imaginação se eu quiser continuar esta história. Até porque, eu não sou santo. E você?
Bastou eu deixar o livro de lado para ele começar a me contar parte de sua vida. Teve três filhos. Duas meninas e um menino. A falecida era costureira. Ele, contador, hoje aposentado, mas que trabalhou a vida toda para que os filhos tivessem estudo e condições de conseguir uma vida melhor. Moravam em Bonsucesso. Na época ainda não existia o tráfico da maneira como existe hoje, mas seu menino, o mais novo, se envolveu com o que não devia e foi morto no morro do Adeus numa troca de tiros com a polícia antes mesmo de completar a maioridade. Saiu no jornal e tudo. Uma tristeza. A saúde da mãe nunca mais foi a mesma depois daquela tragédia. Começou a ter desmaios, tonteiras, nunca mais quis sair de casa e morreu dois anos mais tarde. "De vergonha", ele confessou.
Foi depois de viúvo que começou a beber. Antes não tomava nem cerveja. Mas não era crente não. Era porque não gostava mesmo. Mas bastou enviuvar pra começar a gostar. Foi num bar no Lido que ele conheceu Marlene, uma morena que logo convidou pra morar com ele lá em Bonsucesso. Foi um escândalo. 30 anos mais nova. Um avião. A filha do meio não aceitou de jeito nenhum e resolveu juntar os trapos e ir morar com o namorado. Menina ciumenta aquela. A mais velha ficou e virou amiga de infância da Marlene. Viviam juntas pra cima e pra baixo, sempre com muito assunto pra conversar e em pouco tempo viraram confidentes uma da outra. "Estavam sempre trancadas no quarto", ele disse. Disse ainda que a filha começou a ficar mais bonita, a querer se arrumar. Marlene começou a fazer conta em lojas de roupas. Ela também estava ficando mais vaidosa. Um belo dia, ao chegar em casa depois do serviço, não encontrou nenhuma das duas. A comida estava na panela, a cama estava desarrumada, a luz do banheiro acesa e ainda restava um cheiro forte de perfume no corredor. Em cima da televisão, uma carta escrita sem o menor capricho revelava que Marlene e a mais velha iam morar juntas, que todas as contas daquele mês estavam pagas, que ele não precisava se preocupar e que elas estavam bem.
Confesso que eu estava sem graça, meio incomodado até, mas ao mesmo tempo curioso e intrigado por ouvir tantas revelações de uma pessoa que eu nunca havia visto antes na minha vida. Àquela altura o engarrafamento já não incomodava mais e a viagem do Leblon ao Maracanã parecia muito mais curta do que é normalmente. Aquele senhor não parou de falar um só minuto e uma certa hora eu devo ter feito uma cara de "desculpe, mas eu entendi direito?", e ele não titubeou e disse com todas as letras: "é isso mesmo, meu filho... duas sapatonas". Ele, que havia levado Marlene pra sua casa crente que assim seria mais feliz, na verdade acabou fazendo a felicidade da filha. Logo a mais velha, a mais companheira, a que sempre gostou de ajudar a mãe, a que nunca foi de sair. Era do trabalho pra casa e da casa para o trabalho. Aos domingos ia ao culto. Gostava de se fazer de santa. "Eu não, meu filho... eu nunca fui santo... eu fui corno... e da minha própria filha!".
Tive a impressão que todos ali no ônibus prestavam atenção na conversa e procuravam fazer silêncio para ouvir também. Num relance o senhor se despediu de mim, fez sinal e saltou do ônibus na Praça da Bandeira, bem debaixo da passarela e desconfiei de que ele ia para a Vila Mimosa, logo ali ao lado. Eu esqueci do livro que estava lendo, achei melhor deixar Kropotkin e suas teorias sobre o Estado para depois e fiquei com a história daquele senhor martelando na minha cabeça. Tive vontade de perguntar se ele continuava morando sozinho, se Marlene e sua filha ainda são felizes, se ele arrumou outra mulher ou se parou de beber. Mas acho que nunca mais vou encontrar aquele senhor e que eu vou ter que usar a minha imaginação se eu quiser continuar esta história. Até porque, eu não sou santo. E você?
A foto que ilustra este post não é de nenhum santo. É do Kropotkin, autor do livro que eu estava lendo antes de ser interrompido pelo tal senhor no ônibus.