quarta-feira, 27 de maio de 2009

Nunca fui santo


"Nunca fui santo" foi o que ouvi dia desses de um senhor dentro do ônibus. Eu estava compenetrado, lendo "O Estado e seu papel histórico", do Kropotkin, e custei a perceber que ele falava comigo. Já passava das oito da noite, eu não tinha ido de carro para a produtora, o ônibus estava lotado e aquele senhor insistia em me dizer que nunca tinha sido santo. A Lagoa Rodrigo de Freitas estava engarrafada, o motorista lá na frente parecia mal humorado e a sirene insistente de uma ambulância lá atrás anunciava uma viagem neurótica. Ao meu lado, um senhor de cabelos branquinhos, bem apessoado, merecia todo o respeito que se deve ter com os mais velhos e eu não pude ignorá-lo. Por mais que quisesse.
Bastou eu deixar o livro de lado para ele começar a me contar parte de sua vida. Teve três filhos. Duas meninas e um menino. A falecida era costureira. Ele, contador, hoje aposentado, mas que trabalhou a vida toda para que os filhos tivessem estudo e condições de conseguir uma vida melhor. Moravam em Bonsucesso. Na época ainda não existia o tráfico da maneira como existe hoje, mas seu menino, o mais novo, se envolveu com o que não devia e foi morto no morro do Adeus numa troca de tiros com a polícia antes mesmo de completar a maioridade. Saiu no jornal e tudo. Uma tristeza. A saúde da mãe nunca mais foi a mesma depois daquela tragédia. Começou a ter desmaios, tonteiras, nunca mais quis sair de casa e morreu dois anos mais tarde. "De vergonha", ele confessou.
Foi depois de viúvo que começou a beber. Antes não tomava nem cerveja. Mas não era crente não. Era porque não gostava mesmo. Mas bastou enviuvar pra começar a gostar. Foi num bar no Lido que ele conheceu Marlene, uma morena que logo convidou pra morar com ele lá em Bonsucesso. Foi um escândalo. 30 anos mais nova. Um avião. A filha do meio não aceitou de jeito nenhum e resolveu juntar os trapos e ir morar com o namorado. Menina ciumenta aquela. A mais velha ficou e virou amiga de infância da Marlene. Viviam juntas pra cima e pra baixo, sempre com muito assunto pra conversar e em pouco tempo viraram confidentes uma da outra. "Estavam sempre trancadas no quarto", ele disse. Disse ainda que a filha começou a ficar mais bonita, a querer se arrumar. Marlene começou a fazer conta em lojas de roupas. Ela também estava ficando mais vaidosa. Um belo dia, ao chegar em casa depois do serviço, não encontrou nenhuma das duas. A comida estava na panela, a cama estava desarrumada, a luz do banheiro acesa e ainda restava um cheiro forte de perfume no corredor. Em cima da televisão, uma carta escrita sem o menor capricho revelava que Marlene e a mais velha iam morar juntas, que todas as contas daquele mês estavam pagas, que ele não precisava se preocupar e que elas estavam bem.
Confesso que eu estava sem graça, meio incomodado até, mas ao mesmo tempo curioso e intrigado por ouvir tantas revelações de uma pessoa que eu nunca havia visto antes na minha vida. Àquela altura o engarrafamento já não incomodava mais e a viagem do Leblon ao Maracanã parecia muito mais curta do que é normalmente. Aquele senhor não parou de falar um só minuto e uma certa hora eu devo ter feito uma cara de "desculpe, mas eu entendi direito?", e ele não titubeou e disse com todas as letras: "é isso mesmo, meu filho... duas sapatonas". Ele, que havia levado Marlene pra sua casa crente que assim seria mais feliz, na verdade acabou fazendo a felicidade da filha. Logo a mais velha, a mais companheira, a que sempre gostou de ajudar a mãe, a que nunca foi de sair. Era do trabalho pra casa e da casa para o trabalho. Aos domingos ia ao culto. Gostava de se fazer de santa. "Eu não, meu filho... eu nunca fui santo... eu fui corno... e da minha própria filha!".
Tive a impressão que todos ali no ônibus prestavam atenção na conversa e procuravam fazer silêncio para ouvir também. Num relance o senhor se despediu de mim, fez sinal e saltou do ônibus na Praça da Bandeira, bem debaixo da passarela e desconfiei de que ele ia para a Vila Mimosa, logo ali ao lado. Eu esqueci do livro que estava lendo, achei melhor deixar Kropotkin e suas teorias sobre o Estado para depois e fiquei com a história daquele senhor martelando na minha cabeça. Tive vontade de perguntar se ele continuava morando sozinho, se Marlene e sua filha ainda são felizes, se ele arrumou outra mulher ou se parou de beber. Mas acho que nunca mais vou encontrar aquele senhor e que eu vou ter que usar a minha imaginação se eu quiser continuar esta história. Até porque, eu não sou santo. E você?
A foto que ilustra este post não é de nenhum santo. É do Kropotkin, autor do livro que eu estava lendo antes de ser interrompido pelo tal senhor no ônibus.

sexta-feira, 22 de maio de 2009

Certos dias são estranhos


Sabe aqueles dias em que o despertador toca, você acorda, desliga ele, vira pro lado, pisca o olho e quando vê já se passaram minutos preciosos que vão te fazer a maior falta durante o dia? Pois é. Hoje foi assim. Quando vi já eram sete e tal. Cheguei atrasado pra aula de bike indoor e resolvi encarar a esteira. Meu pé doeu, minha lombar reclamou, meu fôlego secou e minha barriga estava lá acompanhando tudo. Tenho andado cansado ultimamente e enfrentar a academia dia sim e outro também às sete da manhã tem sido uma batalha árdua entre o bicho preguiça que existe em mim e eu mesmo. Esta manhã foi assim. Depois de me arrastar pela esteira por quase meia hora encarei uma série de abdominais pra ver se me livro de uma vez por todas da camada de toucinho que me envolve. Mas nada. No máximo descobri que abdômen tem ligação direta com joelho, pois terminei a série com meu joelho gritando que precisava de mais carinho e atenção. E daí? Na ânsia de ficar fortinho aos 40 anos, lá fui eu puxar meu ferro. Dezoito quilos em cada braço pra começar. Aumenta pra vinte quilos e é hora de alternar. Primeiro um braço depois o outro. Tem uma veia da minha testa que chega a saltar. Meus olhos ficam avermelhados. O som diminui porque o ouvido parece entupir. Puxo o ar, prendo a respiração e ainda faltam quatro exercícios da série. Olho no relógio e são oito e meia da manhã. Tenho que sair de casa no máximo às dez. Antes eu quero ler jornal com calma, comer alguma coisa, tomar banho, quem sabe até fazer a barba? Rafael, o professor gente boa que curte jogar basquete e igreja evangélica, chega perto e me faz sua clássica pergunta: "E aí, alemão, firme na rocha?". Eu, que ando sempre com um texto decorado na ponta da língua, devolvo que "tá tudo tranquilo", olho pro espelho, me certifico de que não há mais jeito de disfarçar a careca, pego minha ficha, dou um até amanhã para a turma que fica e vou pra casa.
Fora da academia o dia estava iluminado por um céu azul que só mesmo nas manhãs de outono do Rio de Janeiro. Nem calor nem frio. O barulho das crianças correndo no pátio do colégio se misturava aos dos carros apressados e lá estavam as mesmas figuras na banca de jornal da esquina. Não parei na padaria. Vou tentar diminuir o pão. Ando tomando café demais também. Nunca fui disso. Parei de fumar em dezembro e minha tosse melhorou bastante. A rinite alérgica não. Na entrada do meu prédio os porteiros batem um papo animado e um deles canta alto a música-tema da personagem de Dira Paes na novela das Índias. Entro no elevador, paro no quinto andar, que é o meu, pego o jornal, abro a porta de casa, tiro a camisa suada e vou direto pra varanda ler as notícias. Dilma continua doente. Lula teima em dizer que Dilma está curada. Vem aí o terceiro mandato, mas antes a CPI da Petrobras. Aécio vai para o PR. Serra é o candidato do PSDB e Susana Vieira é mais indelicada que nunca. Nada de novo.
Vou pro banho. Rápido que é pra economizar a água do planeta. Claudia já está pronta para ir trabalhar. Ela me apressa e eu me arrumo rápido também. Desisti de fazer a barba e resolvi que hoje vou trabalhar de bermuda. Foda-se. Está um sol lindo, é sexta-feira e a vontade é de ir para a praia. Vou pro Leblon, que é onde fica a produtora. Do lado da praia, da brisa do mar e com o Dois Irmãos ao fundo. Privilégio de poucos. O trânsito estava complicado e eu dei duas voltas até conseguir uma vaga para o carro. Uma obra no andar térreo onde funciona a produtora atrapalha ainda mais as coisas. Barulho de furadeira. Poeira. E muita gente falando ao mesmo tempo. Subo os três andares a pé, pois o prédio é antigo e não tem elevador, abro a porta, dou de cara com a Meire e o Buffara desolados. Uma tragédia: estávamos sem Internet. Lá vou eu tentar ver se resolvo, olho pra toda aquela fiação e nada. Nunca fui bom nisso. Mal e porcamente troco lâmpadas. "Chama um técnico", eu disse. Já tinham chamado mas ele só pode depois das 18h. Ou seja, todos perdidos e sem ter muito o que fazer. Totalmente reféns de tanta tecnologia. Que coisa! Para completar Buffara sai do banheiro com a notícia de qua havia acabado a água. O porteiro confirma que o Leblon todo está sem água hoje. Parece que Campo Grande, Barra da Tijuca e São Conrado também. Temos uma reunião marcada para as 15h30 e ainda não são nem meio-dia. Meire resolve que vai almoçar mais cedo. Buffara aproveita para passar em casa, já que mora ali perto. Claudio já tinha saído antes mesmo da água acabar. Fiquei sozinho na produtora e resolvi escrever, já que isto é o que sei fazer. Mesmo nestes dias em que tudo parece tão estranho.

segunda-feira, 18 de maio de 2009

As coisas boas da vida


Ontem, domingo, mais uma vez fui pra cozinha preparar o almoço para a família. Meu filho mais velho estava lá em casa. Levou junto a namorada. Minha mãe levou a filha da vizinha, amiga dos meus mais novos e meu pai levou a Coca-Cola. Comigo, com a Claudia e os dois pequenos, éramos um total de 9. No cardápio, um lombinho congelado desde o Natal, que temperei com vinho tinto, limão, alho, cebola roxa, pimenta do reino, sal e louro. Ficou marinando dois dias antes de ir para o forno. Fiz também umas cebolas carameladas, umas batatas assadas no molho do lombinho, além de arroz e uma farofa de alho. Fiquei praticamente a manhã toda na cozinha preparando o almoço. O cheiro bom que saía do forno deixava todo mundo com água na boca e minha mãe disse que o prédio estava perfumado. Exagero dela.
A verdade é que o lombinho estava sensacional e todos comeram de se lambuzar. Tanto que não sobrou nem um tiquinho pra contar história. Mas, cá pra nós, o lombinho nem interessa tanto assim, o que interessa é que ontem, almoçando a comida que eu mesmo tive o prazer em fazer, na presença da minha família, fui envolvido por uma aura de emoção que pode até parecer piegas para muitos de vocês, mas que para mim não é. Desde pequeno eu sonhava em constituir uma família pra poder reunir todo mundo em volta de uma mesa farta, onde o respeito e o amor fossem peças fundamentais. E eu tive a sorte de conseguir realizar este sonho.
Até porque, não é todo mundo que tem a sorte de reunir a família numa mesa de almoço em pleno domingo; não é todo mundo que tem a sorte de ter filhos bacanas por perto e saber o valor que isso tem; não é todo mundo que sabe quanto vale uma família sólida e como é importante ter uma família como alicerce para todo o resto na vida. Ou então desperdiçam a oportunidade de conviver em família e vão em busca de sabe-se lá o quê. Isso sem dizer que não é todo mundo que tem a sorte de ter o que almoçar, seja num domingo ou em qualquer outro dia.
Eu pensei nestas coisas todas ontem enquanto almoçava. Tenho certeza que ninguém percebeu que eu pensava. Não sei se tinha mais alguém emocionado ali. Acho que não. Depois do almoço e da louça lavada, uns ficaram conversando na sala e outros na varanda. As crianças desceram para brincar no play. E eu fui pro quarto. Eu, meus botões e minha imagem de São Jorge. Agradeci a ele por me dar conta destas coisas boas da vida. É por estas e outras que a vida vale a pena. Ou não é?

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Memória afetiva


Tenho uma amiga, a Érica, que assim, de cara, a gente não se gostava. Ela era amiga de uns outros amigos meus e volta e meia nos encontrávamos na casa de um ou de outro. No máximo nos cumprimentávamos com um "oi, tudo bem?" sem ao menos um beijo no rosto ou sequer um aperto de mão. Era uma frieza só. Isso pra não dizer indiferença. Um belo dia eu soube que ela tinha ido morar em Nova Iorque e por lá acabou ficando uns bons dois anos, não sei. Só sei que não senti a menor falta dela e de certo que ela também nunca deve ter lembrado de mim lá pela Big Apple.

Os tais dois anos se passaram e numa noite de segunda-feira, das sem-lei, em pleno Baixo Gávea, dei de cara com a Érica e, incrível, nos abraçamos feito amigos do peito que não se encontravam há decadas. Foi tipo cena de cinema, daqueles filmes água com açúcar da sessão da tarde, com direito a corridinha em slow motion e trilha sonora ao fundo. Uma coisa. Beirava o ridículo... Lembro que quando nos demos conta, olhamos para a cara um do outro e caímos numa gargalhada sem fim. Pausa para outro abraço. Corta.

Só sei que daquela noite em diante viramos bons amigos. Ela foi trabalhar na mesma produtora que eu semanas depois e passamos a fazer parte do dia a dia um do outro e com direito a muita cumplicidade. Ela é dona de um mau humor que já virou lenda e só quem conhece a figura sabe que aquilo tudo faz parte de uma espécie de escudo que criamos para nos defender. Na verdade acho que só os mais frágeis precisam de escudos. Alguns outros precisam de máscaras. Talvez o certo fosse aprender a usar os dois sem esquecer da hora em que devemos nos despir por inteiro e deixar escapar o que somos de verdade. Mas isso é tema para outro post. O que vale é que eu consegui conhecer o lado doce desta minha amiga Érica, da qual eu gosto muito e guardo as melhores lembranças.

Hoje em dia não nos vemos com tanta frequência mas sempre que nos encontramos temos sorrisos para distribuir. Uma vez ela me disse que isso é a tal da memória afetiva e eu acredito. Afinal, os anos teimam em passar depressa. Cada vez mais rápido, aliás, e gente teima em guardar no cofre das boas lembranças os tesouros que encontramos nesta vida. A amizade é um desses tesouros. Um dos maiores, posso afirmar. E eu tenho a sorte de ter muitos amigos.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

O processo criativo


Esta semana um amigo me perguntou por que eu nunca postei nenhum texto aqui sobre o meu processo de criação. Na hora eu respondi que nunca tinha pensado nisso e que talvez fosse muito pretensioso da minha parte expor tais peculiaridades, até porque eu teimo em não me considerar tão criativo ou mesmo talentoso. Isso faz parte da minha falsa modéstia, é óbvio. Na verdade eu sou muito crítico com tudo aquilo que faço ou produzo. Lembro que minha primeira poesia eu escrevi aos 9 anos de idade, mas só aos 16 ou 17 foi que mostrei meus escritos a alguém e sempre com a incerteza se os elogios eram apenas por educação ou pelo fato daquela pessoa pra quem eu mostrava o que escrevia elogiava só pra me deixar contente.
O certo é que desde os 9 anos escrevo poesias e elas, na maioria das vezes, já nascem prontas e são sussurradas no meu ouvido. Quantas eu já deixei passar por conta de não ter onde anotar na hora em que elas "baixam" e quantas outras foram modificadas porque somente um verso ou outro ficou na lembrança. Mas eu gosto de escrever poesias. Me parece fácil e rápido. Gosto do ritmo em que elas se impõem; gosto da sonoridade que costumam ter; gosto de ler e reler depois uma centena de vezes até não aguentar mais; gosto quando gostam e pedem mais. Aí eu vou e digo que preciso esperar a inspiração chegar.
Depois de crescido resolvi que ia escrever roteiros, só que por muitas vezes eu escrevi roteiros em que me baseava num ritmo poético, pois eu queria emocionar e creio que conseguia. Tem um roteiro meu, de um documentário que fiz para o SESC Rio há uns 6 anos sobre um tema triste pacas, a fome, que não há quem não se emocione. E olha que o documentário não tem nada de piegas ou sensacionalista. É que ali eu consegui encontrar uma personagem com uma história tão rica, que na hora da edição foi fácil dar o tom da emoção sem precisar apelar ou usar este ou aquele artifício que muitas vezes deixa tudo muito chato, inclusive. Nunca mais vou me esquecer da cara do então gerente responsável pelo projeto quando assistiu ao primeiro corte do documentário nem da minha cara de pau de ligar pra ele num final de semana e aprovar o texto que seria lido em off pela atriz Miriam Freeland, dona de uma das vozes mais suaves que já ouvi. Foi naquele momento que eu percebi que eu também tinha o maior jeito pra vender meu peixe. E deu supercerto.
Outro momento de criação bacana também foi junto com minha amiga Benita Prieto, quando ela me convidou para fazer o roteiro do documentário "Histórias" sobre a tradição da oralidade e a arte de contar histórias. Bastou um papo animado para logo surgir a pergunta "como seria um mundo sem histórias?" e daí, então, surgiu o roteiro. Fácil, dinâmico, rico, profundo e cheio de boas histórias, "Histórias" foi um trabalho que me deu enorme prazer em fazer e me rendeu milhares de elogios, além de uma viagem a Cuba para participar de um festival onde o documentário foi exibido. A direção é do Paulo Siqueira e tenho certeza de que este filme também o deixa cheio de orgulho.
Mas não sei responder se criar é algo fácil ou difícil. Muitas vezes a tela do meu computador em branco me angustia, mas de outras vezes a mesma tela em branco me inspira e é o meio pelo qual eu melhor consigo me expressar. Não sou muito bom quando me pedem para falar. Em público, então, tremo na base literalmente. A voz desaparece, o coração sai pela boca, fico vermelho, tenso. Um vexame. Prefiro escrever. Mas não tenho uma regra. O que tenho é inspiração. Ainda bem.