sábado, 20 de dezembro de 2014

Nu

E eu,
que não sou nada disso,
não reconheço mais o inverso
que há em mim.

Então, eu recomeço,
recrio, invento,
tento.
Tudo ao mesmo tempo.

Ouça:

Ao meu redor ainda há outras rimas
procurando nas meninas
a alma, a pele, a coisa cristalina,
aquela luz que alumia o verso
até expandir meu plexo
e dar início à cantoria.
Clave de sol para esquentar minhas horas
e um sopro leve no final do dia.

O resto é sombra.
É rastro.
É pó de pedra no chão
de terra batida onde corre o rio.

E eu, que ora estou nu,
há muito já não sei para onde vou.



quarta-feira, 1 de outubro de 2014

As horas passam rápido demais

Mesmo se ela chegasse ao som de música e me abreviasse a dor,
talvez eu não percebesse.
Eu ando mesmo muito desatento ultimamente com a poesia.
Há o descompasso, o ritmo acelerado e todo o barulho que faz do lado de fora,
o caos que teimam em chamar de vida em alguns livros e filmes por aí.

Então eu penso que já pode ter chegado a hora
e recolho tudo o que eu ainda não disse.
Eu guardo todas as palavras no meu velho baú,
junto as cartas nunca escritas e outras tantas que eu também não li,
é só silêncio no meu interior.

Eu já não ouço mais os versos que ali havia e que me sopravam todas aquelas rimas.
Eu ando mesmo saudosista esses dias.

Se minha avó ainda estivesse viva, ela ia cantar uma canção para eu dormir agora,
feito aquelas que ensaiava quando eu deitava em sua cama
nas noites em que eu não tinha sono.

Naquela época eu inventava histórias e prestava atenção em tudo o que eu via:
as crianças na praça, as mulheres na esquina, o cigarro aceso nas mãos do meu pai.

Eu sempre tive os olhos pequenos, porém ligeiros e sorridentes.
Os gestos lentos, estes se aproximaram com o passar dos anos
e foram se instalando por aqui.

Eu era o fruto bom amadurecendo devagar até me desprender do caule ao chão.
De uma só vez, eu semeei a terra úmida e quente que me amorteceu a queda
e me recebeu inteiro.
Porque jamais me desfiz em pedaços.
Jamais.

A morte pode ser lenta, eu sei, mas as horas pelas manhãs passam rápido demais.

sábado, 13 de setembro de 2014

Palavra

Quisera eu que a palavra fosse simples palavra,
um substantivo concreto escrito em linhas tortas,
um rabisco em círculos na parede fosca,
um som, um verbo, um grito que sai da minha boca.
Quisera.

Tomara ela fosse palavra solta,
dessas que o vento faz que traz e noutras vezes carrega.
Palavra ventania. Palavra tempestade.
Palavra atemporal.
Tomara.

Quem dera essa palavra fosse pressa,
e ficasse presa em minha garganta,
deixasse algumas frases incompletas,
e uma ou outra oração sem o sujeito.
Seria perfeito.

Quem sabe fosse então palavra de honra,
um compromisso que se assume verbalmente,
o juramento que se fez um dia por escrito,
o documento, só o que vale, tudo aquilo que já foi dito.
Só isso.


domingo, 7 de setembro de 2014

Hábito

Naquela manhã, ele, como de hábito, não tomou café, não leu os jornais, não ligou a TV. Naquela manhã, ele, como de hábito, não falou com ninguém. Andou pela casa descalço, abriu todas as janelas, deixou a luz entrar. Como de hábito.

Naquela manhã, havia com ele todos os não saberes, todos os questionamentos acumulados durante as noites mais escuras. Ele, então, como de hábito, abriu os braços, fechou os olhos, encheu o pulmão de ar até quase estourar. Um dois, três, quatro, cinco, seis, contou, e soltou tudo bem devagar.

Às vezes a vida é cristal transparente. Visão de lente sem filtro. Manhã de luz muito rara, pensou.

Pensou também no seu analista e no por quê de nunca mais tê-lo encontrado. Há certas coisas que somem de nossas vistas. Isso é fato. Melhor se fosse apenas um hiato.

Lembrou das tardes nas encostas do bairro da Glória, do cheiro de chuva que batia na pedra onde a água escorria, do vai e vem nas ladeiras altas, do sobe e desce nas escadarias, num tempo em que tudo dentro dele já não era só vazio e silêncio. Uma conversa interna, tantas outras personas, algumas não tão íntimas.

Quantos ainda lhe caberiam ser?, perguntou.

Toda aquela multiplicidade aparente e a vida, bem ali na frente, feito boca de cena, palco iluminado, peça de teatro. Tudo isso logo naquela manhã em que ele, como de hábito, queria respostas prontas e diretas.

(como se a vida já não fosse o óbvio)

segunda-feira, 28 de julho de 2014

Flores azuis miúdas

Se não estou enganado, foi numa noite turva de inverno que ele apareceu. O botequim da esquina ainda estava aberto. Dois ou três velhotes bêbados apoiavam-se no balcão gorduroso. Um deles carrega um rádio de pilha ligado, volume baixinho, numa estação cuja trilha sonora era a fina flor da música dor de corno. Um gato amarelo, já quase cego e sem rabo pousa esparramado entre garrafas empoeiradas de aguardente, equilibradas numa prateleira torta, pendurada precariamente na parede que um dia foi coberta de azulejos portugueses. Logo acima, um altar com a clássica imagem de São Jorge, o santo guerreiro, acompanhado de uma bandeirola já surrada do Vasco da Gama, umas fitas coloridas do Senhor do Bonfim, um copo de geleia com água e, dentro, uns galhos de arruda murcha e uma semente de olho de boi para espantar o mau olhado.

Abigail, a gorda, estava no caixa. Unhas impecavelmente pintadas de vermelho, bochechas rosadas, cabelos negros, ondulados, oleosos e displicentemente penteados para o alto, como de costume. Vestido preto, de corte vulgar, malha barata, marcando bem o excesso de curvas que se derramavam num decote generoso e revelavam o colo suado e o semblante cansado depois de um dia inteiro contando dinheiro entre um gole e outro de cerveja preta mais uns pedaços de carne assada. Abigail, além de ser gorda, era mal humorada, pavio curto e volta e meia desfiava todo o rosário de palavrões e xingamentos. Bastava se sentir acuada. Dava medo. Com ela não tinha fiado, não tinha conversa mole. Falava grosso. Era praticamente o homem da casa. Cliente nenhum tirava casquinha. Quem não a conhecia ainda tentava chegar perto, arriscar uma piada, um gracejo, uma cantada, mas levava logo um passa fora. Vivia sozinha nos fundos do botequim, numa espécie de meia-água que ela mesma ajudou a construir. O que ninguém jamais soube é por que ela chorava tanto todas as noites, pouco antes de pegar no sono.

Um choro que molhava todo o seu rosto e encharcava toda a sua cama, escorrendo pelo chão de cerâmica fria, transbordando todo o quarto, saindo pelas janelas, lavando ruas, ladeiras, vielas. Toda noite era assim. O pranto de Abigail ecoava feito canto, som agudo que doía, estuprava nossos tímpanos, causava em todos um certo espanto, um grito, um berro ao invés de um verbo, um verso simples, uma poesia única que rimasse todas palavras de todos os alfabetos do mundo com apenas uma: amor. Aí, então, ela acordava. Abria os olhos ainda úmidos. Espreguiçava afastando os braços nus e um bocejo de hálito forte. Levantava o corpo pesado devagar. Mexia com os dedos dos pés, sentava na beirada da cama, soltava um longo suspiro e ia se lavar. Dali a pouco precisava abrir o botequim. Todo dia era assim.

Quando ele chegou já era tarde.

- Está quase na  hora de fechar, Abigail foi logo avisando. Não sai mais nada da cozinha, a cerveja está quente, aqueles ali já estão bêbados e eu estou cansada. Só dá para te servir uma pinga, um refrigerante ou uma água. É pegar ou largar.

- Uma água sem gelo, disse ele tranquilamente, ignorando a grosseria.

Ele parecia feliz. Tinha os olhos grandes e iluminados, a sobrancelha perfeita, os gestos largos, um nariz grande meio torto, a boca carnuda e cheia de dentes emoldurada por uma barba espessa e áspera. Bonito ele. Usava um terno cinza amarrotado, porém bem cortado, caimento perfeito, gravata de seda afrouxada, um molho de chaves, um maço de cigarros e um ramalhete de flores azuis miúdas nas mãos. Bebeu a água num só gole. Fazia frio. Tinha chovido. Ele não pretendia demorar. Só não sabia muito bem para onde ir. Não encontrara até então um lugar neste mundo. Ele não era daqui, pensava.

- O moço é daqui de perto?, perguntou Abigail.

- Não, eu não sou daqui, respondeu espantado com a coincidência da pergunta. Na verdade, acho que eu não sei de onde eu sou. A moça, por acaso, sabe de onde ela é?

Abigail desviou o olhar. Pela primeira vez desde que ela se conhecia por gente sentiu um certo constrangimento, um lampejo de timidez. A voz daquele homem tinha um timbre suave, agradável, firme e a maneira como ele a abordou a deixou sem graça.

- Sei, acho que sei.

- Já eu, sei que nada sei. Que nem o filósofo, sabe?

- Não, não sei.

- Esquece. O que eu quis dizer é que só importa a surpresa, aquilo que você ainda vai descobrir, o que você jamais imaginou e vai mudar teu rumo quando você menos espera. A carta da roda da fortuna no tarô cigano, o capricho vaidoso do destino, o homem quando deixa de ser menino, a derrapada na curva.

- O moço é poeta, é?

- Não sei. Sei que lhe trago flores, disse, oferecendo-lhe o ramalhete de flores azuis miúdas.

Abigail ficou muda.

Ele pagou a água com duas notas. Não quis o troco. Despediu-se. Desapareceu.

Daquela noite em diante Abigail nunca mais chorou. Também nunca mais dormiu. Sorria acordada, insone, durante toda a madrugada, olhos vidrados no ramalhete de flores azuis miúdas.
.

quarta-feira, 4 de junho de 2014

Casa

Eu quero uma casa de pedra,
de paredes altas,
janelas abertas,
muros baixos,
figueiras frondosas no quintal,
frutos caídos pelo chão
de terra batida
num pátio iluminado,
onde eu possa ver o céu mudar de cor.

Eu quero a casa.
Eu quero a pedra.
Eu quero eu mesmo abrir as janelas,
deixar o sol se debruçar,
colher o doce mel do figo
com as minhas próprias mãos,
pisar com os pés descalços
o barro de onde eu vim.

Minha casa vai ter jardim,
flores, muitas, mato,
cheiro de capim mulato,
canários da terra,
melros,
pintassilgos e sabiás.

Todos soltos num laraiá laiá.

A casa vai ser minha
e também das minhas crianças,
e também dos meus amigos.

Todos vão poder chegar.

Sem precisar de convite,
sem precisar cerimônia,
sem precisar avisar.

Minha casa vai ser assim,
bem desse jeito que eu descrevi.

Sê bem-vindo.

sexta-feira, 28 de março de 2014

A velha, o lixo e os versos

Não faz nem quinze minutos que ele encontrou aquela velha já quase cega no corredor a despejar seu lixo e a lhe dizer, sem dó nem piedade, que ela havia lido seus escritos e que ele não passava de um autor menor, sem originalidade, sem estilo, do tipo que só consegue escrever sobre o mesmo tema e, mesmo assim, de modo raso, tal e qual um aluno mal aplicado que ao estudar piano não consegue dedilhar uma nota afinada sequer. Disse-lhe tudo assim, de uma tacada só, enquanto arrastava duas sacolas de restos de comida e umas latas de onde escorria uma água imunda e mal cheirosa.

Ele havia acabado de chegar de mais um dia tenso na repartição, o calor ainda castigava, o terno suado já sem a gravata, o sapato a lhe apertar os pés inchados, os mais de dez processos que pesavam na pasta que trazia a tiracolo e a vontade incontrolável de chegar em casa, tirar toda aquela roupa, tomar um banho, ligar o velho ventilador e se esparramar no sofá da sala depois de comer qualquer coisa que fosse, pois não sentia mesmo muita fome à noite. Ele só pensava em descansar um pouco, esticar as pernas, ver um programa na televisão, arejar as ideias por alguns instantes, antes de levantar e debruçar sobre a papelada que ainda precisava analisar para a reunião da manhã seguinte.

A situação na repartição não estava nada boa, os clientes estavam cada vez mais escassos, as cobranças estavam maiores que nunca e para piorar havia o fantasma de uma demissão em massa que deixava o clima ainda mais intragável. O cargo que ele exercia, que não era lá grande coisa, claro, deveria estar na reta, pensava, enquanto aquela velha, bem ali na sua frente, ao lado da lixeira, que há anos vivia sozinha, sem ao menos uma visita da filha ou dos netos, a descarregar todos aqueles impropérios sem sentido, sem necessidade, sem razão. Ela apertava os olhos na tentativa de melhorar a visão e apontava o dedo indicador em direção ao rosto dele enquanto falava com a voz arranhada pelo tempo.

Disse-lhe na cara dura que ele era um frouxo, um covarde, que ele jamais deveria ter feito o que fez e que se ela fosse um pouco mais jovem e ainda tivesse forças dava-lhe uma boa surra de cinto, com a fivela lanhando a carne, porque era aquilo que ele merecia desde criança, já que seus pais não souberam educá-lo e por isso mesmo ele havia se tornado um homem sem caráter, um descansado, sem nenhum valor. Afirmou que para ela e para todos os moradores do condomínio era uma vergonha tê-lo como vizinho e que dia após dia ela rezava e fazia uma dezena de promessas a todos os santos para que ele mudasse dali.

Ele também não via a hora de mudar daquele apartamento, de sair daquele bairro, de nunca mais encontrar com aqueles vizinhos insuportáveis que pareciam sempre estar mais interessados no que se passava na sala ao lado do que com as suas próprias vidas. Todas aqueles festinhas de finais de semana, regadas a galhofas, fofocas e cerveja de má qualidade, o deixavam irritado e deprimido por saber que ele não pertencia àquilo. Não era aquele o mundo que haviam lhe prometido. Não que ele fosse melhor que ninguém - muito embora fosse - mas tudo ali parecia muito pequeno, uma vida sem sentido, dormir e acordar feito máquina que a gente liga e desliga e pronto. Ele precisava de mais. Ele sabia que merecia mais.

E aquela velha ali a entorpecer-lhe a mente, a confundi-lo com um discurso equivocado, uma anciã que foi esquecida por todos, cuja única companhia eram os livros velhos que ela fazia questão de ler uma centenas de vezes, sempre os mesmos, e vivia a repetir em voz alta, sozinha, na cama de viúva de madeira nobre, sempre os mesmos versos de Andorinha, um poema de Manuel Bandeira, "passei o dia à toa, à toa... passei a vida à toa, à toa".

Era como se ela soubesse, como se anunciasse a sentença de não ter sido quem ela realmente gostaria de ser. Ela, a velha, havia se tornado amarga, indesejável, repugnante, só que a idade avançava e a deixava anestesiada, sem que ela fosse capaz de perceber o que quer que fosse definitivamente real ao seu redor.

Ele, que jamais escrevera uma rima, que não tinha a menor aptidão com as palavras, frases e orações, que jamais sonhara com sucesso ou reconhecimento, que só pensava em levar uma vida digna e ganhar um pouco mais de dinheiro para poder sair dali, alugar um apartamento num bairro melhor, também estava meio que anestesiado e não deu muita importância ao que a velha tinha para lhe falar.

Ele, que morria de pena dela e de toda aquela solidão, estendeu-lhe a mão, pegou as sacolas com os restos de comida e as latas velhas e despejou no lixo sem falar nada. Apenas olhou a velha senhora bem dentro dos olhos e, num arroubo de gentileza, deu-lhe um abraço, ajeitou-lhe os cabelos, acompanhou-a até a porta de casa, deu-lhe um beijo e se despediu. Em silêncio.

Ele, então, virou as costas e seu andar arrastado foi tudo o que se ouviu no corredor.

Lá dentro, a velha já não lembrava mais se havia lido os versos e pôs-se a procurar os livros. Os mesmos livros.





terça-feira, 25 de março de 2014

Todo poeta

Todo poeta é um mistério
e eu também tenho cá as minhas questões profundas:
sou subsolo, sou santuário,
sou um misto de palavras desenterradas à boca do estômago.

E me pergunto, então, por que às vezes minha poesia é como vômito?

Estrofe por estrofe, verso por verso, rima por rima,
é a poesia quem rasga minhas entranhas e se expõe,
se traduz e se apodera do ritmo vacilante que outrora havia em minhas mãos.

Faz-se a mágica e com ela surge o lado íntimo que se abre na fissura,
rasga feito a fenda, escorrega, ri, brinca,
navega contra a corrente e deixa de lado toda e qualquer razão.

Todo poeta é um laço
e eu gosto mesmo é dos abraços daqueles que se fazem poetas:
os que inventam, os que criam,
os que vivem soltos e deixam correr livre a imaginação.

Onde estão eles?
Onde eles estão que não aqui na harmonia breve das minhas ideias?

Porque o tempo dos poetas é lírico, eu sei,
e se eterniza no silêncio leve da madrugada,
quando a melodia invade a nossa alma
e tudo ao redor se transforma em canção.

Não há barulho lá fora, eu não falo nada
e já não enxergo mesmo muito bem.
Aqui dentro de mim o céu.

Todo poeta é infinito.


quarta-feira, 19 de março de 2014

Alone

Um dia como outro qualquer
Um vento que sopra abafado
Um céu de nuvens carregadas
Um nó que aperta no peito.

Um jeito que parece incerto
Um gesto como se fosse o único
Um gosto amargo que sobra na boca.

O fel.

Um momento que é quase nada
Um tempo que se desfaz inteiro
Um rio que vai dar no mar
Um cais outrora repleto.

Nem ao menos um navio
Nem se ouvia alguém por perto
Nem se eu implorasse um breve adeus.

Só eu ali, alone, e mais ninguém.

Por que me fiz deserto?


terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Vergonha

Desde aquela tarde em que os termômetros marcavam mais um recorde de altas temperaturas na cidade, era como se ao redor dele tudo fosse se distanciando, perdendo o foco, saindo do seu campo de visão. Gradativamente. Melhor assim.

Aquele verão havia sido de um calor apocalíptico, pele constantemente suada, céu azul sem nuvens, sem água nas torneiras, sem trens, sem respeito algum. O trânsito ultrapassava os limites do suportável, infernal. A população inteira parecia estar vivendo à beira do caos, o IPTU, o IPVA, outras tantas contas a pagar e aquelas pessoas todas nas ruas, nas redes, tantas vozes estridentes e a porrada comendo solta em plena luz do dia.

Perderam a noção, ele dizia, ao mesmo tempo em que, pela tela plana da TV, ainda enxergava mais um homem morrer na praça, antes mesmo do sol se pôr.

O corpo daquele trabalhador havia tombado, a cabeça explodido, correria ao seu lado, imagina você a confusão que se formou. Já temos um mártir, anunciavam alguns. Foi assassinato, berravam outros tantos. Imprensa, polícia, vândalos, deputados, manifestantes, black blocs, milícia. Debates acalorados no palanque virtual. Um diz que é o certo. O outro afirma que nunca esteve errado. De ambos os lados, ânimos exaltados. Eles gritam estridentemente e ninguém mais pode se fazer de surdo.

No fundo ele tinha certeza do por quê daquilo tudo: nunca fizeram nada. Tal e qual um filho recém-parido que é abandonado na roda da sorte, o cidadão daquelas bandas era tão desassistido como um órfão esquecido no dormitório úmido do asilo junto a tantos outros iguais, largados ao Deus dará. Ele também se sentia sozinho.

O estado havia sido omisso desde os primórdios, as autoridades só enxergavam a si próprios, se escondiam nos palácios com seus assessores bem remunerados, covardes como sempre, enquanto ordens extremas liberavam o braço armado em cima de quem quer que fosse. O que começou pacífico, plural, espontâneo, bonito até, transformou-se numa luta desigual, ele sabia.

Cidades no país inteiro viraram palco de batalhas sangrentas como nunca antes na história desse país. Manifestante virou vândalo. Protesto virou baderna. Os ninjas quase viraram imprensa. A imprensa virou chacota. Enquanto os telejornais por um momento tentavam esconder, a internet mostrava tudo a quem quisesse ver: fogo, corre-corre, gás lacrimogêneo, jornalistas acuados na tentativa de cumprir seu dever, jovens machucados e a polícia agindo como se estivesse à caça de bandidos.

E ele então não esquecia que meses antes a mesma polícia deixava traficantes escaparem aos olhos de todos, mas agora, por todos os cantos, de todos os lados, era só tiro, porrada e bomba. Você precisava ver.

Dias difíceis, ele já suspeitava. Como o carro que derrapa na curva, a parábola que não tangencia o arco, o circo pegando fogo e tudo mais fora do controle. Maniqueísmos explícitos, partidos políticos chafurdados na lama, radicais inflamados, anarquistas desinformados, fascistas facínoras, psicopatas infiltrados, coxinhas bem arrumados, que tais, todos deixavam cair suas máscaras, as verdades descortinadas, preconceitos nus. Vergonha ele sentia.

Eu também sentia. Muito antes daquela tarde quente.



sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Úmida

Desliza tua língua (sobre mim)
e deixa um rastro de saliva úmida (eu quero).

Junta o gosto ácido da palavra,
conjuga o verbo intransitivo do amor,
a frente, o verso,
a frase, a rima,
vem você aqui em cima,
espalha em minha carne o teu suor.

Debruça lentamente sua cabeça (no meu peito)
e afaga o que de mim ainda é seu (para sempre).

Percebe no meu toque o gesto simples,
segura firme com as suas minhas mãos,
lê todas essas linhas, montes, vênus,
desvenda meus segredos,
aperta os laços, intensifica os abraços,
seus lábios assim tão perto dos meus.

Desliza tua língua
no rastro da saliva úmida.

(certas noites morro de calor)




domingo, 19 de janeiro de 2014

Eu sei

Eu,
que apenas observo o mundo,
sigo tantas vezes calado,
me finjo de mudo,
noutras sou surdo,
mas cego nunca fui.

Do pouco que eu vi de tudo,
esse tudo me parece tão pequeno,
um quase nada,
um breve instante,
um leve sopro,
a mão suave a desfazer o nó.

Eu,
que já não sigo assim tão só,
persigo o que não conheço,
persisto nos mesmos apreços,
resisto até não poder mais,
insisto que eu existo.

Sou eu mesmo, juro.

Meu discurso nunca foi outro.
Minha vontade também não.
Mentiras se dispersam,
só as verdades me interessam,
sou aquele que se vai,
estou naquele que já vem.

Eu apenas observo aqueles que me observam.
Não enxergo nada além.

Nem eles, eu sei.